25 de Setembro 2019, Quarta-feira: “Não leveis nada para o caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem mesmo duas túnicas. Em qualquer casa onde entrardes, ficai aí; e daí é que partireis de novo (vv. 3-4).

25ª Semana do Tempo Comum

Leitura: Esd 9,5-9

No pós-exílio, o centro da reforma de Esdras e Neemias não era apenas a reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém, mas pôr fim aos casamentos mistos (com mulheres estrangeiras; cf. Ne 13). Hoje, tal medida dura (cf. 10,3) nos parece esquisita, intolerante, racista e xenofóbica (medo do estrangeiro), mas há de levar em conta a situação histórica. Esses matrimônios ainda não eram proibidos no antigo Israel (Gn 41,45; 48,5s; Ex 2,21; Nm 12,1; Is; Rt 1,4; 2Sm 3,3; cf. Dt 20,13s; 21,20), mas foram proibidos por partes do Deuteronômio, para combater a idolatria que as mulheres pagãs poderiam introduzir em seus lares e passar para os filhos (Dt 7,1-4; cf. 23,4s; Ex 34,16). Os letrados tinham que interpretar os textos segundo a situação presente. Depois do exílio, o perigo redobrou sem duvida porque os repatriados eram na maioria homens. O motivo da ruptura é ainda religioso (9,1-11), mas transparece um outro, a preocupação com a pureza da raça e a perda da identidade nacional (9,2: “a semente santa misturou-se”, cf. Is 6,13; Sl 106,35).

Esdras, que era sacerdote e escriba, reprova estes casamentos, porque pouco valia um templo restaurado, se as famílias o acompanhavam com cultos e ritos estranhos. Na história passada havia exemplos que ameaçavam a fé e levaram a ruína de Israel, por ex. a idolatria das mulheres estrangeiras de Salomão (1Rs 11,1-13) e o sincretismo da Samaria, 1Rs 16,31ss; 2Rs 17). Esdras se identifica com os pecados dos antepassados; num gesto teatral num lugar aberto do templo, pronuncia uma oração penitencial, para contagiar os outros e provocar uma mudança de atitude. A oração de Esdras, que é também uma pregação, inspira-se em Deuteronômio e nos profetas (vv. 11s).

Na leitura de hoje, não ouvimos nada do contexto concreto destes matrimônios mistos, mas esta confissão dos pecados corresponde a um modo repetido depois do desterro (Ne 9; Dn 9; Br 1,15-3,8). O texto lido aqui é típico, adaptado à situação presente. Esdras se faz porta-voz da comunidade. Não é difícil, nas suas palavras, escutar reminiscência de salmos penitenciais.

Na hora da oblação da tarde, eu, Esdras, levantei-me da minha prostração. E, com as vestes e o manto rasgados, caí de joelhos, estendi as mãos para o Senhor, meu Deus. E disse: “Meu Deus, estou coberto de vergonha e confusão ao levantar a minha face para ti, porque nossas iniquidades multiplicaram-se acima de nossas cabeças e nossas faltas se acumularam até ao céu (vv. 5-6).

“Eu, Esdras” é acréscimo da nossa liturgia. A “hora da oblação da tarde” é a hora penitencial (Sl 30,6; Dn 9,21); “de joelhos” é postura cultual (1Rs 8,54; 19,18; Dn 10,10). A culpa “chega ao céu” por sua quantidade, que se acumula; também porque provoca o olhar e reação de Deus (cf. Gn 4,10).

Desde os tempos de nossos pais até este dia, uma grande culpa pesa sobre nós: por causa de nossas iniquidades, nós, nossos reis e nossos sacerdotes, fomos entregues às mãos dos reis estrangeiros, à espada, ao cativeiro, à pilhagem e à vergonha, como acontece ainda hoje (v. 7).

Nesse tipo de confissão é frequente remontar aos pecados dos antepassados, fazendo-se solidário com eles; o pecado se aplica com agravantes diversos; repetição, gravidade, não se corrigir; depois vem a súplica de perdão e a promessa de emenda. A “situação atual” continua a procedente enquanto os judeus são um povo vassalo, simples província de um império estrangeiro.

Mas agora, por um breve instante, o Senhor nosso Deus concedeu-nos a graça de preservar dentre nós um resto, e de permitir que nos fixemos em seu lugar santo. Assim o nosso Deus deu brilho aos nossos olhos e concedeu-nos um pouco de vida no meio de nossa servidão (v. 8).

O “breve instante… de graça” é o favor do soberano (rei persa, v. 9). Is 54,8 afirma que a cólera de Deus é brevíssima, mas o seu favor, duradouro. Esta oração de Esdras é mais pessimista, falando de “resto” e “estaca”: “permitir que nos fixemos”, como “estaca” (lit.) na qual prende uma tenda de campanha (terra e cidade como grande tenda de campanha que acolhe os cidadãos, cf. Is 54,2), ou como prego na parede em que penduramos utensílios (cf. Is 22,23-24). Em ambos os casos, a estaca seria metáfora do chefe da comunidade, designada aqui como “resto (de sobreviventes)”. Trata-se aí do chefe civil, ou seja, Neemias, se ainda exercia o poder (não parece referir-se ao descendente de Davi, Hatus, filho de Sequenias, cf. 8,3)? Ou é o próprio Templo onde se formará a nova liderança?

Deus dá “luz, brilho” aos olhos e conserva a vida (cf. Sl 13,4; Pr 29,13). A “servidão” é a vassalagem, evocando de passagem a escravidão do Egito.

Pois éramos escravos, mas em nossa servidão o nosso Deus não nos abandonou. Antes, conseguiu para nós o favor dos reis da Pérsia, deu-nos bastante vida para podermos reconstruir o templo do nosso Deus e restaurar suas ruínas, e concedeu-nos um abrigo seguro em Judá e em Jerusalém” (v. 9).

O “abrigo seguro” figura como metáfora de proteção de limites: referido a Jerusalém é a muralha reconstruída por Neemias; referido a Judá, é a fronteira definida diante dos povos vizinhos.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 505) comenta as medidas contra os casamentos mistos: Medida realmente brutal, que exclui definitivamente o povo da terra, reforçando o isolamento da comunidade dos fiéis repatriados reunida ao redor do Templo de Jerusalém.  A determinação de Esdras e Neemias marca assim a vitória política e religiosa dos repatriados contra o povo da terra. Por outro lado, fez com que a comunidade dos repatriados ficasse totalmente dependente do apoio oficial do império persa.

 

Evangelho: Lc 9,1-6

Ouvimos no evangelho de hoje sobre a missão dos doze que continua de modo ideal a sua escolha (6,12-16p). Depois da sua chamada e a escuta e aprendizagem (8,1) são enviados. “Apóstolos”, em grego quer dizer “enviados”, era o título que Jesus lhes havia imposto (6,13p). São os “doze”, como corpo ou colégio compacto (lembrando as doze tribos de Israel). O próprio Jesus foi enviado (para anunciar a Boa Nova, o Evangelho; cf. 4,18.43; Mc 9,37; Jo 3,17.34 etc.), agora ele envia (cf. Jo 20,21) e comunica o poder que possui (4,36). Assim se estende seu raio de ação sem ele deixar de ocupar o centro. Como em Mt 10, essa missão prefigura a definitiva, antes da ascensão (24,48; cf. Mt 28,16-20).

Jesus convocou os Doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças, enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a curar os enfermos (vv. 1-2).

Aqui, Lc segue a sua fonte Mc 6,7-13, que falou apenas da autoridade sobre os demônios. Lc acrescenta a palavra “poder” (4,36, cf. 5,17; 6,19; 8,46; 10,19; At 3,12; 10,38) e as finalidades: “para curar” (duas vezes em vv. 1-2) e “proclamar o Reino de Deus” (v. 2). Aqui Lc omite (e Mt 10,5 também) o envio de “dois a dois” (Mc 6,13), mas não o descarta, o transfere para o segundo envio dos 70 discípulos em 10,1 (cf. Lc 24,13; At 3,1); aqui ele entende os apóstolos como colégio, um conjunto estabelecido por Jesus (cf. At 1,15-26).

E disse-lhes: “Não leveis nada para o caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem mesmo duas túnicas. Em qualquer casa onde entrardes, ficai aí; e daí é que partireis de novo (vv. 3-4).

Lc encontrou estas recomendações para missão no evangelho de Mc (cajado permitido), mas também na fonte comum com Mt, chamada Q (coleção de palavras; “nem cajado, nem sandálias, nem dinheiro”; cf. Mt 10,9s). Os apóstolos devem anunciar o reino de Deus (que é dos pobres, 6,20) e confiar na providência divina, e não escandalizar por um estilo consumista. Evangelizando num povoado, devem se hospedar numa casa só (cf. At 9,43; 16,15; 18,3s.20; 21,7s) em vez de trocar toda hora como fazem missionários vagabundos.

A Bíblia do Peregrino (p. 2484) comenta: As instruções servem para inculcar aos enviados o desprendimento e a confiança em Deus e para que experimentem a hospitalidade da boa gente. São dois fatores correlativos: o desprendimento e a confiança em Deus fazem que o povo lhes dê crédito e confie neles. Pode-se recordar a hospitalidade prestada a Eliseu por uma mulher: “Vê, esse que sempre vem à casa é um profeta santo…” (2Rs 4,8-10). Também isso é ensinamento para os futuros missionários do evangelho, como o experimentará Paulo (At 16,15) e João o recomenda (3Jo 3-8).

Todos aqueles que não vos acolherem, ao sairdes daquela cidade, sacudi a poeira dos vossos pés, como protesto contra eles” (v. 5).

A mensagem dos apóstolos é “Boa Nova” (evangelho) para os que a recebem, mas torna-se juízo de condenação para os que a rejeitam. Os apóstolos serão testemunhas de acusação, e sacudir a poeira é um gesto que atesta o rompimento. Nada da cidade incrédula, nem o pó dela, deve apegar-se a seus pés (assim Paulo faz em At 13,51).

Os discípulos partiram e percorriam os povoados, anunciando a Boa Nova e fazendo curas em todos os lugares (v. 6).

Mc 6,12s falava da pregação para arrependimento (cf. João Batista e Jesus em Mc 1,4.15) e da expulsão dos demônios e da cura através da unção com óleo (cf. Tg 5,14s). Lc não entra em detalhes, mas fala de maneira geral e otimista do anúncio da “Boa Nova” (evangelho) do Reino de Deus e das “curas” (cf. vv. 1-2). Com isso, Lc tem em vista já a missão após a ressurreição, “em todos os lugares”. O profeta Deutero-Isaias no exílio expressou de foram poética: “Quão formosos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a Boa Notícia…, que diz a Sião: Teu Deus já reina” (Is 52,7).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje é uma espécie de “Manual do Evangelizador”. Ele nos mostra que o evangelizador não age em nome próprio, pois ele não evangeliza por que quer, mas porque é enviado por Deus. Os poderes que tem para evangelizar não são próprios, são recebidos para serem usados em uma finalidade própria. Os bens materiais não podem ser um empecilho para o trabalho, nem podem ofuscar a força do anúncio e do testemunho. A inserção e a participação na vida das pessoas e das famílias é fundamental. Mas o mais importante são os dois objetivos que caracterizam o profetismo: a luta contra toda espécie de mal, que se manifesta na ordem da cura, e a proclamação da presença do Reino de Deus na vida de todas as pessoas.

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