26 de Julho de 2020, 17º Domingo do Tempo Comum: “Assim, pois, todo mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (v. 52).

17º Domingo do Tempo Comum 

1ª Leitura: 1Rs 3,5.7-12

A escolha desta leitura prepara uma interpretação das parábolas do evangelho de hoje: a sabedoria vale mais do que outros valores. Ouvimos isso na oração do jovem rei Salomão durante um sonho.

Salomão era o filho de Davi com Betsabeia, mas conseguiu chegar ao trono com muita dificuldade. Sua mãe conseguiu, junto com o profeta Natã, convencer o velho Davi a designar Salomão como sucessor, contra seu meio-irmão Adonias que era mais velho e pretendia ser o próximo rei. A mando de Davi, Salomão montou numa mula, foi aclamado pelo povo e ungido rei pelo profeta Natã e o sacerdote Sadoc. Depois da morte de Davi, o jovem eliminou seus rivais e tomou posse. Mas o próprio Deus ainda não se manifestou a respeito da escolha do novo rei. A presente leitura oferece a peça que faltava.

Em Gabaon o Senhor apareceu a Salomão, em sonho, durante a noite, e lhe disse: “Pede o que desejas e eu to darei” (v. 5).

Querendo o favor de Deus, Salomão “foi a Gabaon para oferecer um sacrifício, porque esse era o lugar alto mais importante. Salomão ofereceu mil holocaustos naquele altar” (v. 4). Gabaon fica cerca de 10 km a noroeste de Jerusalém e já foi mencionada na história deuteronomista (cf. Js 9-10; 2Sm 2,12-17; 20,8; 21,1-4). Segundo o redator cronista, encontravam-se ali a tenda sagrada e o altar dos holocaustos (1Cr 21,29; 2Cr 1,3,13), até a construção do templo em Jerusalém que Salomão empreenderia mais tarde (cf. 2Rs 5-8). Os vv. 2-4 (omitidos pela leitura de hoje) talvez queiram desculpar o sacrifício de Salomão num desses “lugares altos” onde os cananeus praticavam cultos pagãos e os hebreus adoravam Javé.

A Bíblia do Peregrino (p. 617) observa: O esquema se parece com alguns modelos egípcios: o rei se afasta da corte para visitar um santuário famoso, aí oferece um sacrifício, tem em sonhos uma visão com deus lhe ordenando alguma coisa ou confirmando seus planos, volta à corte e comunica a visão a seus ministros.

Os sonhos eram, antes dos profetas, um dos principais meios de comunicação entre Deus e os homens (cf. Gn 20,3-7; 28,10-22; 31,11s.24; 37,5-7; 40-41; Nm 12,6).

Em Israel, o rei era considerado intermediário entre Deus e o povo. É através do rei que Deus governa; o rei é seu instrumento, seu servo (cf. v. 7). Como os juízes e reis antes dele, Salomão estava em contato direto com o Javé Deus e, portanto, era rei não somente por direito hereditário – sempre contestável – mas pela vontade divina.

E Salomão disse: “Senhor meu Deus, tu fizeste reinar o teu servo em lugar de Davi, meu pai. Mas eu não passo de um adolescente, que não sabe ainda como governar. Além disso, teu servo está no meio do teu povo eleito, povo tão numeroso que não se pode contar ou calcular (vv. 7-8).

Os títulos correlativos “Senhor, meu Deus” – “Teu servo”, expressam aqui a relação de soberano e vassalo. “Não passo de adolescente” (a mesma objeção na vocação de Jeremias em Jr 1,6). Um “povo tal numeroso” (“é glória para o rei”, Pr 14,28; cf. Dt 7,7s), “que não se pode contar” (cf. Gn 15,5; Davi o contou em 2Sm 24).

No v. 6 (omitido), Salomão reconhece o início do cumprimento da promessa a seu pai Davi, feita pelo profeta Natã em 2Sm 7,12.16. A Bíblia do Peregrino (p. 617) comenta os vv. 6-9: A oração do rei é composta e desenvolvida com certa amplidão. Em vez de pedir imediatamente, atrasa o pedido, colocando antes dupla confissão, de onde resulta uma estrutura ternária. As duas confissões têm por tema Davi e Salomão, os dois começos sublinham o paralelismo, e sobretudo a iniciativa divina. A oração recorde o Deuteronômio e também algum salmo (por exemplo, 89). O livro da Sabedoria, atribuído por ficção a Salomão (embora tenha sido escrito mais de nove séculos depois), amplia com grande riqueza esta oração (Sb 9).

Dá, pois, ao teu servo, um coração compreensivo, capaz de governar o teu povo e de discernir entre o bem e o mal. Do contrário, quem poderá governar este teu povo tão numeroso?” (v. 9).

Salomão não considerava sua função como um privilégio pessoal, mas como um ministério a exercer em favor do povo do Senhor; ele não pede favores pessoais (cf. v. 11), mas a sabedoria, ou seja, a faculdade de assumir eficazmente seu cargo, para o bem do povo. Salomão pede uma sabedoria prática, não para governar-se a si mesmo, mas para governar o povo (cf. 5,13; Ex 31,3).

Para ser “capaz de governar”, Salomão pede um “coração compreensivo”, lit. ouvinte, mente dócil, ou seja, a arte de “escutar” (cf. Dt 6,4: “Shema Israel – Ouve, Israel”) e de “discernir entre o bem e o mal”, que é suprema sabedoria (cf. Gn 2-3; Is 7,15; 5,20; Mq 3,2; note-se no livro dos Provérbios como são frequentes as avaliações: “é bom”, “é melhor”, “não é bom”). A principal tarefa da autoridade consiste em saber ouvir, é requisito básico não só para resolver casos no tribunal (cf. a famosa sentença de Salomão em vv. 16-28), mas também para o exercício do governo. Autoridade justa age sempre a partir de assessoramentos que lhe permitam ouvir as legítimas aspirações e reivindicações do povo.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 503) comenta: O rei é considerado o sucessor dos Juízes. Está encarregado de fazer reinar no meio do povo o direito e a ordem de Deus. Será também responsável diante dele por seu modo de estabelecer o direito (cf. Sb 8,9-12). O Salmo 72 dá uma ideia uma visão idealizada do reino de Salomão.

Esta oração de Salomão agradou ao Senhor. E Deus disse a Salomão: “Já que pediste estes dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem riquezas, nem a morte de teus inimigos, mas sim sabedoria para praticar a justiça, vou satisfazer o teu pedido; dou-te um coração sábio e inteligente, como nunca houve outro igual antes de ti, nem haverá depois de ti” (vv. 10-12).

A resposta de Deus também é muito estilizada. A construção se reduz ao esquema: pediste/não pediste; dou o que pediste/também o que não pediste (nossa liturgia omitiu o v. 13: “Mas dou-te também o que não pediste, tanta riqueza e tanta glória como jamais haverá entre os reis, durante toda a tua vida”). Há uma desproporção entre os dons e o pedido. A sabedoria extraordinária de Salomão, descrita nos capítulos seguintes e valorizada nos livros atribuídos a ele (Pr, Eclo, Ct, Sb; cf. Sl 72; 127), é dom de Deus. Também Ezequias e Josias serão considerados reis inigualáveis (“nunca antes de ti nem depois…”, cf. 2Rs 18,5; 23,25). Só Jesus será “maior do que Salomão” (Mt 12,42p).

 

2ª Leitura: Rm 8,28-30

Continuamos no capítulo central da carta aos Romanos sobre a vida no/pelo Espírito; ouvimos no domingo passado sobre a intercessão do Espírito em nosso íntimo e hoje sobre a glorificação dos eleitos. O projeto eterno de Deus é predestinar, chamar, tornar justo e glorificar a cada um e a todos os seres humanos, fazendo com que todos se tornem imagem do seu Filho e se reúnam como a grande família de Deus. O projeto não exclui ninguém. Mas o homem é livre: pode aceitar ou recusar tal projeto, pode escolher a vida ou a morte, salvar-se ou condenar-se.

Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus (v. 28).

“Tudo contribui (concorre) para o bem”. Alguns manuscritos põem Deus como sujeito: o sentido não muda. Um exemplo é a história de José no Egito, na qual Deus converte o mal em bem (cf. Gn 50,20).

Pois aqueles que Deus contemplou com seu amor desde sempre, a esses ele predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito numa multidão de irmãos (v. 29).

A imagem de Deus (Gn 1,27), deformada pelo pecado, se refaz como imagem ou semelhança do irmão mais velho. O unigênito do Pai e o primogênito de Maria (Lc 2,7) será o “primogênito” da humanidade. A filiação é correlativa da fraternidade.

Cristo é a “imagem de Deus invisível” (Cl 1,15, cf. Hb 1,3). O Pai (Deus) reproduz a imagem do Filho naqueles que participam da sua filiação (vv. 16-17), “a esses predestinou a serem conformes à imagem de seu Filho”, resultado de uma transformação interior e progressiva (2Cor 3,18) que só será plena e total na parusia (segunda vinda de Cristo).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2133s) comenta: Por uma nova criação (2Cor 5,17), veio restituir à humanidade decaída o esplendor desta imagem divina, que o pecado havia embaciado (Gn 1,26; 3,22-24; Rm 5,12). Ele, imprimindo-lhe a imagem mais bela de filho de Deus (aqui), que restabelece o “homem novo” na retidão do discernimento moral (Cl 3,10), restitui-lhe o direito à glória que o pecado havia feito perder (Rm 3,23). Essa glória que Cristo possui como própria, sendo imagem de Deus (2Cor 4,4), penetra sempre mais no cristão (2Cor 3,18), até o dia em que o seu próprio corpo será dela revestido, à imagem do homem “celeste” (1Cor 15,49).

E aqueles que Deus predestinou, também os chamou. E aos que chamou, também os tornou justos; e aos que tornou justos, também os glorificou (v. 30).

É um processo de cinco fases: “contemplou” (v. 29), “predestinou”, “chamou”, “tornou justos” (lit. justificou) “glorificou” (v. 30). Paulo não pensa numa sucessão cronológica exata entre etapas, algumas das quais podem coincidir, mas quer manifestar um movimento que tende para um termo: o final é “glorificar”, ou seja, comunicar ao homem sua glória, vinculada agora à sua imagem (que é o ser humano) e que não pode ser comunicada à falsa imagem, que é o ídolo (cf. Is 42,8; 48,11). Cristo já possui esta glória que nos será ainda comunicada por ele. A certeza deste termo, cujas primeiros frutos já temos pelo Espírito (v. 23) justifica o emprego do passado (“os glorificou”; cf. 2Ts 2,13s; Ef 1,11-13).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2134) comenta: Deus tudo ordenou para a glória que ele destina a seus eleitos, glória para a qual são chamados à fé e justificados pelo batismo e da qual já estão como que revestidos por antecipação.

Na revista Vida Pastoral (2017), Aíla L. Pinheiro de Andrade comenta a predestinação: O que isso significa? Ao escrever isso, Paulo tem em mente que, desde toda a eternidade, Deus tem um projeto de amor, a saber, a salvação do ser humano. Significa que a salvação do ser humano está prevista nos planos de Deus desde sempre; é nesse sentido que somos predestinados, ou seja, no sentido de que isso estava previsto, faz parte do plano divino …

A salvação prevista no plano de Deus não é algo abstrato, mas significa que quem aderir a Jesus, vivendo como ele viveu, identifica-se com ele e, por isso, liberta-se do egoísmo e do pecado. Para isso, o Espírito Santo vem em nosso auxílio em todas as circunstâncias da vida, e, por isso, tudo concorre para o nosso bem.

Dizer que “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (v. 28) não é no sentido de que tudo vai dar certo, que nada de ruim vai nos atingir e que seremos blindados contra os dissabores da vida, como muitos pregam hoje em dia. Significa que Deus fará com que todas as circunstâncias, inclusive as coisas ruins que nos acontecem, concorram para a nossa santificação. Tudo o que nos acontece fica submetido à finalidade principal de nossa vida, que é a salvação e a participação no reino de Deus, para as quais fomos criados.

As coisas ruins que nos acontecem devem servir para nos ajudar no caminho da santificação, porque nada que nos acontece poderá mudar o projeto de Deus que é nos levar à plenitude do Reino. Mas tudo isso exige sabedoria para colocar em primeiro lugar o reino de Deus, o verdadeiro valor de nossa existência.

O capítulo vai encerrar com um canto triunfal (vv. 28-39, cf. próximo domingo) ao amor que Deus e Cristo nos têm. Por ele podemos vencer em qualquer processo e derrotar os mais fortes inimigos coligados. Embora o parágrafo todo comece com o amor do homem a Deus (v. 28: “daqueles que amam a Deus”), a iniciativa não é do homem, pois foi Deus que começou “destinando” e “chamando” (cf. Dt 7,7-8; Jr 31,2).

 

Evangelho: Mt 13,44-52

Ao longo do seu Ev, Mt apresenta cinco discursos de Jesus, em alusão aos cinco livros da Lei de Moisés (chamada Torá, “Lei”, em hebraico; ou Penta-Teuco, “cinco livros” em grego). No terceiro discurso, Mt usa e amplia o discurso de parábolas já existente em Mc 4. Agora finaliza este discurso com três pequenas parábolas que só se encontram no evangelho dele: as parábolas do tesouro, da pérola e da rede e mais uma conclusão que talvez seja um autorretrato do próprio evangelista.

(Naquele tempo, disse Jesus à multidão:)

Na verdade, a introdução colocada pela nossa liturgia está errada. No v. 34, “Jesus falou tudo isso às multidões em parábolas”, mas depois “deixando as multidões, entrou em casa” onde explicou a parábola do joio a seus discípulos (vv. 36-43, cf. domingo passado) e continua falando com eles até o final do discurso. Os destinatários do evangelho de hoje são, portanto, os discípulos (cf. vv. 51s).

“O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola (vv. 44-46).

As duas parábolas formam um par (cf. a semente da mostarda e o fermento em vv. 31-33) com a mesma conclusão: Não importa, se um “encontra” por acaso e outro “procura” há tempo, quem acha o Reino dos Céus deve deixar tudo para entrar nele (cf. 4,22; 8,19-21; 9,9; 19,21.27-30; Lc 9,57-62).

Consideradas fora do seu contexto, essas duas parábolas dão ensejo a vários sentidos possíveis: valor do tesouro e da pérola, alegria da descoberta, obrigação de vender tudo. O tema “escondido/revelado” é primordial e traduz-se pela “alegria”. Enquadradas entre duas ameaças terríveis da “fornalha ardente” (13,42.50) que contrastam violentamente com a alegria, estas parábolas passam a ser uma exortação a vender tudo para possuir esta alegria.

O camponês teria tido outras opções: poderia ter retirado o tesouro em segredo, poderia ter obedecido à lei e publicar seu achado para ver se encontrar-se um dono legítimo, ou poderia fazer um empréstimo no banco. Mas ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo”.

O comprador de perolas é um empresário que importa ou exporta. Pérolas foram importadas da Índia e desde Alexandre Magno estavam na moda, tornando-se símbolos de preciosidade (cf. 7,6). Não interessam aqui as circunstâncias da compra, exceto que ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola”.

Para entrar no Reino de Deus é necessária uma decisão total. Apegar-se a seguranças, mesmo religiosas, que são falsas ou puras imitações, em troca da justiça do Reino de Deus, é preferir bijuterias a uma pedra preciosa de “grande valor” (cf. 6,33: “Procurai, em primeiro lugar, o reino de Deus”).

Já a sabedoria do Antigo Testamento foi comparada com tesouros, pérolas, pedras e metais preciosos (Pr 1,9; 4,7-9; Sb 7,9; …). Enquanto uns aplicaram a sabedoria à Lei (Eclo 24), Mt aplica esta preciosidade ao (evangelho do) reino dos céus; o discípulo “cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra” este valor máximo que é o reino; cf. a vocação fracassada do jovem rico em 19,16-23p: “Vai, vende seus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu … um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus”.

Chama atenção o fato de que Jesus não precisa explicar estas duas parábolas, como outras antes e depois. Os discípulos já devem entender seu significado: é preciso apostar tudo no reino e não se apegar nas muitas coisas deste mundo (13,22: “o cuidado do mundo e a sedução da riqueza sufocam a palavra”; cf. 6,19: “Não juntais para vós tesouros na terra, … mas ajuntai para vós tesouros no céu…”).

O site da CNBB comenta: A comparação com o tesouro nos mostra o valor que o Reino de Deus deve ter nas nossas vidas, um valor que não pode ser superado por nenhum outro valor deste mundo. A pérola nos mostra a preciosidade inigualável que é o Reino de Deus para todas as pessoas. E tanto o valor como a preciosidade do Reino de Deus significam que todas as outras coisas perdem sua importância diante dele e só têm sentido enquanto contribuem para que o homem possa chegar até Deus.

O Reino dos Céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo tipo. Quando está cheia, os pescadores puxam a rede para a praia, sentam-se e recolhem os peixes bons em cestos e jogam fora os que não prestam (vv. 47-48). 

É a última parábola neste discurso. Mt está interessado apenas no final da pesca. Compara o reino com a rede, porque não queria associar aqui o reino aos “pescadores de homens” (4,19p). Para onde vão os peixes que não prestam? Mt não fala aqui do fogo como o do joio (cf. v. 30), apenas “jogam fora” (cf. 3,10; 5,13; 7,19; 8,12; 18,8; 22,13; 25,30). Na pesca real, os peixes “que não prestam” são jogados de volta na água, onde sobrevivem, enquanto os bons acabam assados no fogo.

Para distinguir os peixes “bons” e os “maus” (cf. 7,17-19; 12,33; 13,37-43; 25,31-46), os pescadores “sentam-se” (cf. o sentar-se do Filho do Homem (19,28; 25,31; 26,64; cf. Cl 3,1; Ef 1,20; Ap 4-5). De certo modo, a parábola retoma a cena inicial do discurso, onde Jesus “foi sentar-se às margens do mar da Galileia. Uma grande multidão reuniu-se em volta dele. Por isso Jesus entrou numa barca e sentou-se, enquanto a multidão ficava de pé, na praia” (vv. 1-2).

Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos, e lançarão os maus na fornalha de fogo. E ai, haverá choro e ranger de dentes (vv. 49-50). 

Os ouvintes já foram preparados para interpretação: a parábola da rede (vv. 47-50), bem como a do joio (vv. 13,24-30.36-43; cf. domingo passado), acentua a coexistência de maus e bons até o “fim dos tempos” (quando a rede está “cheia”, v. 48); em compensação, aqui não se insiste na paciência (nada de intervenção dos discípulos na parábola do joio), mas na ameaça que pesa sobre “os que não prestam”.

Aqui, Mt não associa a rede com a missão da Igreja (4,18-22), mas com o mundo no juízo final (como o campo em v. 38). A consumação do Reino se realiza através do julgamento que separa os “bons” dos “maus”. Os “justos”, ou seja, os que vivem a justiça anunciada por Jesus tomarão parte definitiva no Reino; os que não a vivem serão excluídos para sempre. É preciso decidir desde já.

O acento está mais nos que não prestam. A “fornalha de fogo” expressa o juízo (vv. 42.50; cf. Dn 3,6-22; 25,41; Jr 29,22; Dt 3,6). Mt costuma falar de “chorar e ranger os dentes” para expressar as dores dos condenados (cf. 8,12; 13,42.50; 22,13; 24,51; 25,30). Mas aqui não fala nada do destino brilhante dos homens bons, como antes na parábola do joio: “os justos brilharão como o sol” (v. 43; cf. Dn 12,2s). Aqui não se fala que os justos seriam transferidos para o céu (cf. 1Ts 4,17 etc.), mas que os maus serão retirados da terra.

Compreendestes tudo isso?” Eles responderam: “Sim” (v. 51).

Finalizando seu discurso, Jesus pergunta: “Compreendestes tudo isso?” Os ouvintes (desde v. 36 são os discípulos) respondem: “Sim”. Para Mt, a fé não é mero sentimento, mas precisa de compreensão (vv. 13s.23.36; 15,10) para levar a uma boa prática (7,15-27; 25,31-46) e trazer frutos.

Então Jesus acrescentou: “Assim, pois, todo mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas” (v. 52).

As parábolas revelam os “mistérios do Reino dos Céus” (13,10-17) para aqueles que têm fé. Por isso, o mestre/doutor da Lei que se torna discípulo de Jesus é capaz de ver a ligação entre o Velho e o Novo (Antigo e Novo Testamento). Em Jesus tudo se renova e toma novo sentido.

Depois da instrução aos discípulos a menção de um “mestre da Lei” nos surpreende. Já encontramos um mestre da lei querendo ser discípulo em 8,19 (cf. Mc 12,34). Este escriba instruído acerca do Reino tanto pode ser um ouvinte qualquer que compreendeu o ensinamento de Jesus (isto pressuporia que Mt se dirigisse especialmente a ouvintes letrados, versados nas escrituras), como o próprio evangelista (o que insinuaria que o autor de Mt fosse um escriba convertido ao cristianismo).

Pode-se “tirar do seu tesouro” (ou baú) coisa boa ou má (12,35p). Porque um pai de família iria tirar coisas novas e velhas, e não grãos, frutos, roupas, ferramentas etc.? Mas um mestre da Lei há de abrir os tesouros da sabedoria (cf. Eclo 1,24; 20,30; 40,18s; 41,14; Sb 7,14) e atualizar a sabedoria dos antigos. O “tesouro” (mesma palavra na parábola do v. 44) designa quer o ensinamento tradicional dos escribas judeus, renovado pela fé em Cristo, quer o pensamento do Antigo Testamento apresentado como “cumprido” (5,17) pelo escriba cristão, quer o ensinamento de Jesus (já antigo na época da redação cerca de 80 d.C.) apresentado aqui pelo evangelista como fonte das coisas antigas e novas que anseia sejam compreendidas por sua comunidade.

O doutor que se tornou discípulo de Cristo possui e administra toda a riqueza antiga, acrescida das perfeições da nova. Esse elogio do “escriba cristão” resume todo o ideal do evangelista e tem bem a aparência de ser a sua assinatura discreta. No mínimo, ele pertence a um grupo destes escribas cristãos, cuja tarefa era revelar e demonstrar o elo entre o antigo e o novo (cf. 5,17-48; 13,35) e que são enviados por Jesus ao lado dos profetas e sábios em 23,34. A autoria deste evangelho pode ser atribuída muito mais a um mestre da lei do que a um cobrador de impostos chamado Mateus (9,9).

A atribuição deste evangelho ao apóstolo Mt é contestada hoje, porque? Vale a pena lembrar que tudo que temos do Novo Testamento foi escrito em grego e nenhum dos quatro evangelistas assinou com seu nome. São obras anônimas atribuídas posteriormente a apóstolos (Mt e Jo) ou discípulos de apóstolos (Mc e Lc).

Mt não foi o primeiro Ev. Uma análise literária demonstra claramente que o primeiro Ev foi Mc. Mt e Lc já usaram Mc e melhoraram seu estilo mais primitivo. O que Mt e Lc tem comum? Quase todo o texto de Mc, e mais uma coleção de palavras (chamado fonte Q; se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir de Mt e Lc)!

Isso pode se verificar também pelo relato da vocação do publicano Levi (Mc 2,13-17; Mt 9,9-13; Lc 5,27-32; cf. o comentário do 10º Domingo do Ano A ou de sexta-feira da 13ª semana do Tempo comum). Se o autor do Ev de Mt fosse um realmente um apóstolo, porque copiaria sua própria vocação de outro Ev (Mc), só trocando de nome (de Levi para Mateus) e acrescentando apenas uma citação do AT (Os 6,6)? Não usaria mais detalhes e palavras próprias, já que se trata da própria vocação? Provavelmente foi um judeu-cristão da segunda geração (cerca de 80 d.C., depois da destruição de Jerusalém de 70 d.C. em 22,7), talvez um discípulo de Mateus (ou de Pedro, cf. Mt 14,28-31; 16,16-19; 17,24-27) que escreveu este Ev, usando Mc e trocando o nome Levi por Mateus, porque era um nome mais conhecido (um dos doze; cf. 10,3).

A antiga opinião de Mt ser o primeiro evangelho, escrito em hebraico antes de ser traduzido, baseia-se no testemunho de Papias, bispo de Hierápolis (primeira metade do séc. II): “Mateus-Levi escreveu na linguagem hebraica”, mas podemos entender também por “estilo hebraico”, porque não tem evidência de um evangelho em hebraico, ao contrário: para seus leitores cristãos que vieram do judaísmo, o Ev de “Mt” cita muito do Antigo Testamento (AT) – e não a versão hebraica, mas geralmente a tradução grega (por ex. Mt 1,23 cita a tradução grega de Is 7,14: virgem, e não o texto hebraico jovem mulher). Portanto, o evangelista “Mateus” escreveu seu original na língua grega, copiando Mc, mas seu conteúdo e estilo (e seus leitores) estão mais ligados ao Antigo Testamento, por isso sua posição na Bíblia – mais perto do AT – ainda é justificada.

O site da CNBB comenta: A presença do Reino de Deus na nossa história não pode ser obscurecida pela presença do mal no mundo. As pessoas devem ser capazes de analisar toda a realidade a partir dos critérios do Reino para, à luz do Espírito Santo, ser capaz discernir o bem do mal e escolher o que contribui para que ela possa se aproximar cada vez mais de Deus. Mas esta distinção não dá ao cristão o direito de condenar os que erram, ao contrário, ele deve ser um instrumento nas mãos de Deus para que todos sejam capazes de fazer esta distinção e trilhar os caminhos do bem.

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