26 de Maio 2019, 6º Domingo da Páscoa: Se alguém me ama, guardará a minha palavra,e o meu Pai o amará,e nós viremose faremos nele a nossa morada.Quem não me ama,não guarda a minha palavra.E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou (vv. 23-24).

Tempo pascal 6º Domingo Ano C

 1ª Leitura:At 15,1-2.22-29

 Ouvimos hoje sobre o primeiro Concílio, o dos próprios apóstolos em Jerusalém narrado por Lucas em At 15. A Bíblia do Peregrino (p. 2666) resume a caminhada nos Atos até este marco na história:

Na metade do livro se ergue, como momento decisivo, o que costumamos chamar de concílio de Jerusalém. Lucas narrador foi nos conduzindo por etapas até dividir o olhar entre duas igrejas, Jerusalém e Antioquia. Convidou-nos a reconhecer a primazia de Jerusalém e o dinamismo de Antioquia; induziu-nos a simpatizar com movimentos de abertura, a nós que somos descendentes daquele primeiro impulso.

                Simplificando um pouco podemos dizer que as duas igrejas seguem caminhos divergentes. A igreja de Jerusalém é formada ou dominada por judeu-cristãos, conservadores em certos aspectos. Consideram-se uma espécie de resto, no qual está cristalizando-se e crescendo o novo Israel, definitivo e total. São a continuidade escatológica. Garantem essa continuidade a descendência física e, espiritualmente, a circuncisão e a consequente observância da lei. De seu reduto, essa comunidade tem sido capaz de lançar expedições de difusão ou de capturar, em particular os helenistas e Pedro.

                A comunidade de Antioquia é heterogênea em sua composição, dinâmica em sua constante irradiação. Seu interior é convivência no pluralismo; para fora é abrir-se e assimilar. Judeu-cristãos convivem com helenistas e com pagãos convertidos. Os dois caminhos divergentes chegaram a ser opostos, inconciliáveis? Assim o julgam alguns grupos mais rigoristas… Segundo eles, sem a circuncisão e a lei se rompe a continuidade e não se pode formar o povo de Deus; a linha empreendida e seguida por Antioquia rompe a continuidade, não forma Igreja.

                Tal é o sentido da ação desses opositores anônimos que, por própria iniciativa (não enviados pela autoridade de Jerusalém), vêm denunciar a linha missionária de Antioquia. Em Jerusalém, é Tiago quem dirige a comunidade e o partido extremamente conservador. Em Antioquia, Barnabé e Paulo representam o impulso e a experiência da missão. A ação desses opositores tem mérito de provocar um esclarecimento oficial. Pois as tendências divergentes se prolongaram vários anos (se aceitamos o ano 48 como data mais provável do concilio).

Chegaram alguns da Judéia e ensinavam aos irmãos de Antioquia, dizendo: “Vós não podereis salvar-vos, se não fordes circuncidados, como ordena a Lei de Moisés“ (v. 1).

A “porta da fé” foi aberta aos pagãos (14,27), mas sua entrada na Igreja sem a exigência (“alfândega”, diria o Papa Francisco) da circuncisão provoca o ataque de alguns judeu-cristãos autônomos, procedentes da “Judéia” (região de Jerusalém), mas “eles não foram enviados” (v. 24) pelos apóstolos. Na sua carta polêmica aos Galatas, Paulo os chama “falsos irmãos, os intrusos que se infiltraram para espionar a liberdade que temos em Jesus Cristo, a fim de nos tornar escravos” (Gl 2,4; em Gl 2,12 os designa como “certas pessoas do círculo de Tiago”). Eles declaram a impossibilidade da salvação sem a observância da Lei (lit. “costume”) de Moisés, ou seja, sem a “circuncisão” baseada na história e na lei (Gn 17; Lv 12,3).

Isto provocou muita confusão, e houve uma grande discussão de Paulo e Barnabé com eles. Finalmente, decidiram que Paulo, Barnabé e alguns outros fossem a Jerusalém, para tratar dessa questão com os apóstolos e os anciãos (vv. 2).

A discussão é tão forte que se decide apelar a uma instância superior: Jerusalém. Essa igreja é regida há tempo por apóstolos e por um senado/conselho (“anciãos”, lit. presbíteros) no estilo judaico. É lógico escolher outra vez (cf. 13,1-3) como delegados os dois grandes e experientes protagonistas da missão, Paulo, Barnabé “e alguns outros” (Gl 2,1-3 nomeia Tito, originário da gentilidade).

Por motivos de brevidade, nossa liturgia omitiu todo debate neste concílio em Jerusalém com os discursos de Pedro e Tiago (não o filho de Zebedeu, que morreu em 12,2, mas o “irmão”/parente do Senhor, cf. vv. 3-21; Gl 1,19; 2,1-10), e nos apresenta apenas o resultado em seguida.

Então os apóstolos e os anciãos, de acordo com toda a comunidade de Jerusalém, resolveram escolher alguns da comunidade para mandá-los a Antioquia, com Paulo e Barnabé. Escolheram Judas, chamado Bársabas, e Silas, que eram muito respeitados pelos irmãos(vv.22).

Terminada a discussão em Jerusalém com um acordo, passou-se à assembleia geral, que ratifica o acordo e se dispõe a comunicá-lo, por meio de dois delegados, à comunidade de Antioquia onde surgiu o conflito. Os delegados de Jerusalém são como um intercâmbio cortês e pacífico: Judas “Bársabbas”, nome desconhecido em outros lugares (cf. 1,23), e “Silas”, futuro companheiro de missão de Paulo (15,40-18,5), e idêntico ao “Silvano” mencionado em 1Ts 1,1; 2Ts 1,1; 2Cor 1,19; 1Pd 5,12.

Através deles enviaram a seguinte carta: “Nós, os apóstolos e os anciãos, vossos irmãos, saudamos os irmãos vindos do paganismo e que estão em Antioquia e nas regiões da Síria e da Cilícia. Ficamos sabendo que alguns dos nossos causaram perturbações com palavras que transtornaram vosso espírito. Eles não foram enviados por nós. Então decidimos, de comum acordo, escolher alguns representantes e mandá-los até vós, junto com nossos queridos irmãos Barnabé e Paulo, homens que arriscaram suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, estamos enviando Judas e Silas, que pessoalmente vos transmitirão a mesma mensagem. Porque decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo, além destas coisas indispensáveis: abster-se de carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, das carnes de animais sufocados e das uniões ilegítimas. Vós fareis bem se evitardes essas coisas. Saudações!”(vv. 23-29).

Os apóstolos e os anciãos (presbíteros) de Jerusalém emitem um comunicado oficial, cujos portadores são Paulo, Barnabé e outros membros da comunidade de Jerusalém. Dirige-se à Igreja de Antioquia e às igrejas da região, “irmãos vindos do paganismo”. Não fala mais da circuncisão. A missão entre os pagãos recebe uma confirmação importante por parte da Igreja de Jerusalém, Igreja-mãe. O Concílio de Jerusalémdeixa claro que judeus e pagãos convertidos pertencem ao povo de Deus, os últimospela a fé e a graça, não pelas obras da lei judaica (como salienta Paulo em suas cartas, cf. Gl2,16.21)

Significa, que quem vem do paganismo não precisa ser submetido às leis judaicas, por exemplo, à circuncisão. Se não entram no mundo judeu, são chamados a deixar os costumes da vida pagã: sacrifícios aos deuses e imoralidade sexual. Definitivamente, os cristãos do mundo pagão, convertidos de um passado moral e cultual pregresso, têm cidadania na Igreja. A decisão foi tomada pelos homens em Jerusalém, mas eles estavam movidos pelo Espírito Santo.

Nesta carta, a liberdade a respeito da lei judaica tem quatro cláusulas “indispensáveis” que Tiago (parte conservador) já propôs (em v. 20) para afirmar o acordo: “contaminar-se com ídolos” (v. 20) é especificado aqui: não comer carne sacrificada a divindades falsas (cf. 1Cor 10,20-22). Comer “sangue” (Dt12,16.23) ou carne de “animais sufocados”(sem tirar-lhes o sangue) repugna à lei (Gn 9,4; Lv 3,17; 17,10-15) e à sensibilidade dos judeus que não comem a carne de animais imolados nos sacrifícios pagãos (cf. v. 29 e 21,25; cf. 1Cor 8,10).

Hoje as “Testemunhas de Jeová” (seita que surgiu nos EUA a partir de 1870) interpretam este texto rejeitando até a transfusão de sangue aos doentes. Serpa que Jesus aprovaria esta interpretação desumana (cf. Mc 3,4p; Lc 14,4s)?

Três das cláusulas de Tiago se referem a alimentos. A quarta à sexualidade. A palavra grega porneia (prostituição, fornicação; cf. Mt 19,9), aqui traduzida “uniões ilegítimas”, parece designar todas as uniões irregulares enumeradas em Lv 18.Perguntamos, se essas cláusulas de Tiago se justificam pelo bem da paz (convivência entre judeu-cristãos e pagãos convertidos, refeições juntos), deverão ser ainda aplicadas em comunidades formadas exclusivamente por pagãos convertidos?

A Bíblia de Jerusalém (p. 2078) comenta: O texto ocidental suprime “carnes sufocadas” e acrescenta, no fim: “e não fazer aos outros o que não se quer que se faça a si mesmo” … As reservas de Tiago mostram a natureza exata do litígio. Elas tem caráter estritamente ritual e respondem à interrogação feita em At 11,3 e Gl 2,12-14: o que é preciso exigir dos heleno-cristãos, para que os judeu-cristãos possam frequentá-los sem contrair impureza legal? De todas as leis de pureza, Tiago quis conservar apenas aqueles cujo significado religioso parece universal: comer carnes oferecidas aos ídolos comportava certa participação em um culto sacrilégio (cf. 1Cor 8-10). O sangue é expressão da vida, que só a Deus pertence, e a proibição da Lei a propósito… era tal grave que explica bem a repugnância dos judeus em dispensar disto os gentios. O caso das carnes sufocadas é análogo ao do sangue. As uniões irregulares não figuram neste contexto por sua qualificação moral, mas enquanto princípio de impureza legal.

Mas nesta carta se acrescentam mais detalhes dignos de nota. São desautorizados os extremistas judaizantes e sua ação espontânea (v. 1; cf. Gl 2,4; Mt 23,4): “Eles não foram enviados por nós” (v. 24). Em contraste, são louvados Barnabé e Paulo por seu espírito de sacrifício em prol do evangelho, “homens que arriscaram suas vidas pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 26). Apela-se ao Espírito Santo, que ratifica a decisão dos responsáveis; em termos modernos, diriam que sua decisão é carismática: “Decidimos, o Espírito Santo e nós” (v. 28).

Os antioquenos se sentem alegres (vv. 30s), aliviados da confusão e reanimados com esta carta oficial. Sua ação apostólica, a missão aos pagãos sem exigir a circuncisão foi substancialmente confirmada e restabeleceu-se a paz. As restrições de Tiago não pesam numa comunidade mista como a deles, mas eram importante para manter a comunhão numa época em que a Eucaristia ainda era celebrada junto a refeição (cf. 2,24.46; 1Cor 11,17-34). Ao comunicado se acrescenta a voz do Espírito que anima pela boca seus novos profetas que anunciam Jesus aos pagãos.

 

2ª Leitura: Ap 21,10-14.22-23

No final do seu livro, João mostra que a meta da história, para além do tempo, é a plena realização da Aliança de Deus com a humanidade, numa vida inteiramente imortal numa nova criação, na cidade “nova Jerusalém” (cf. vv. 1-2). É a realização plena da “presença de Deus entre os homens” (v. 3).

Ouvimos a continuação desta visão da cidade celeste que desce do céu, a “nova Jerusalém” que é a “esposa do Cordeiro” (v. 9; Jo 3,29; cf. leitura do domingo passado). Não faltam no Cântico dos Cânticos imagens da amada como cidade “bela como Tersa, formosa como Jerusalém” (Ct6,4); “teu pescoço é a torre de Davi” (Ct4,4); “sou uma muralha, e meus peitos são os torreões” (Ct8,10). A descrição a seguir inspirou-se nas teofanias e na visão de Jerusalém restaurada em Ez 40-48 (Ezequiel descreveu a visão de uma cidade e um templo restaurados, porque ambos foram destruídos em 586 a.C. pelos babilônios).

Um anjo me levou em espírito a uma montanha grande e alta. Mostrou-me a cidade santa, Jerusalém, descendo do céu, de junto de Deus, brilhando com a glória de Deus. Seu brilho era como o de uma pedra preciosíssima, como o brilho de jaspe cristalino (vv. 10-11).

Durante o exílio na Babilônia, Ezequiel teve uma visão: “Deus me colocou à terra de Israel e me colocou sobre um monte bastante alto, sobre o qual se erguia uma cidade” e depois conduzido por uma anjo par ver os detalhes (Ez 40,2-4). O autordo Ap, João, estava no exílio também (1,9: “na ilha de Patmos”), agora também é levado a uma montanha (“grande e alta” apenas na visão, porque na realidade, o ponto mais alta desta ilha tem 269 m acima do mar).

Daí contempla a nova Jerusalém “descendo do céu” (vv. 2.10), porque é criação (dom) de Deus. Ela não tem resplendor próprio, mas o recebe da “gloria de Deus” (cf. Is 60; Br 5,1-4; cf. 2Cor 3,18). Este brilho revela a presença divina como por ocasião da consagração da Tenda de Reunião do deserto (Ex 40,34s) e do Templo de Salomão (1Rs 8,10s; cf. Ap15,8).

A descrição a seguir (metais preciosos, medidas estereotipadas, etc.) quer sobretudo evocar a perfeição da nova Jerusalém. O brilho do ouro das pedras preciosas mostra que a cidade é a imagem do brilho de Deus (4,3). É a humanidade plenamente realizada, à imagem e semelhança do criador (cf. Gn 1,26s).

Estava cercada por uma muralha maciça e alta, com doze portas. Sobre as portas estavam doze anjos, e nas portas estavam escritos os nomes das doze tribos de Israel. Havia três portas do lado do oriente, três portas do lado norte, três portas do lado sul e três portas do lado do ocidente. A muralha da cidade tinha doze alicerces, e sobre eles estavam escritos os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro (vv. 12-14).

O anjo mostra ao vidente a cidade maravilhosa em detalhes (nossa liturgia omite os vv. 15-21).Parece interessar muito ao autor a “muralha” da cidade, com suas “portas” (Ez 48,30-35) e alicerces, disposição e materiais (Is 54,11-12) e suas dimensões (Ez 40,3-5). Nela impera o número doze, de tribos e apóstolos (recordem-se os 144 mil do cap. 7): doze mil estádios de lado, 144 (12×12) côvados a espessura da muralha (cf. vv. 16s).

A perfeição, na totalidade do novo povo, sucede à do antigo. Às “doze tribos de Israel” (cf. os 144.000 de 7,4-8; cf. Ex 24,2; 1Rs 4,7) correspondem os “doze apóstolos” (cf. Mt 19,28p; Mc 3,14; Ef 2,20). As doze “pedras preciosas” (vv. 19s) recordam as do peitoral do sumo sacerdote (Ex 28,15-21); “doze anjos” guardam os acessos (cf. Gn 3,24).Todos os números múltiplos de 12 (cf.7,4-8), nesta descrição exprimem a mesma ideia de perfeição.

Esta cidade é construída com pedras preciosas e dimensões enormes; sua forma é de um quadrado, o modelo de perfeição segundo os esquemas da época. Os números são simbólicos (cf. vv. 16s: “12.000 estádios; o comprimento, a largura e a altura são iguais”; seria um cubo de 2400 km cada lado!). A Bíblia do Peregrino (p. 2974) comenta lembrando o santíssimo do templo (1Rs 8,19-22): Estranho projeto de urbanística! Mas é preciso recordar que o camarim do templo (Sancta sanctorum) era um cubo perfeito de uns dez metros de lado e revestido de ouro puro. O cubo é considerado uma forma perfeita, e a cidade é a “Sancta sanctorum” celeste…

Um dos anjos do mesmo grupo (“das sete taças”, cf. 17,1; 21,9) mostrou antes a “prostituta”, a grande cidade da idolatria da perseguição, Babilônia nos cap. 17-18 (mas significando Roma com sua sete colinas, cf. 17,9) que foi destruída. Mas “a esposa, a mulher do Cordeiro” é a nova Jerusalém que desceu do céu (vv. 2.9). A descrição desta nova criação (humanidade) como cidade perfeita e deslumbrante é uma imagem quer mostrar a beleza e a santidade da aliança com Deus.

Por coincidência (?), João a apresenta com traços da antiga Babilônia histórica: quadrada, atravessada por uma avenida dos povos ao longo do rio, e com jardins (cf. vv. 21b.24s; 22,2.14.19). Sugere, assim, que a Jerusalém celeste é a Babilônia, prostituta purificada e transformada pelo Evangelho? De fato, se olhamos para história da Igreja, podemos dizer que o Ap não se cumpriu em tudo: sim, o Cordeiro (Jesus e sua igreja) venceu a besta-feira (o imperador romano perseguidor), mas a Roma (no Ap, Babilônia) não foi destruída como foi anunciado no Ap. Deus teve misericórdia com esta cidade grande e voltou atrás (como em Nínive, cf. Jn 3), porque Roma se converteu ao Cordeiro (em 313 d.C., o imperador Constantino acabou com a perseguição e tornou-se cristão).

Não vi templo na cidade, pois o seu Templo é o próprio Senhor, o Deus Todo-poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa de sol, nem de lua que a iluminem, pois a glória de Deus é a sua luz e a sua lâmpada é o Cordeiro (vv. 22-23).

O Templode Jerusalém foi destruído duas vezes: em 586 a.C. pelos babilônios (depois erguido em 520) e em 70 d.C. pelos romanos, e nunca mais reerguido. Quando João escreveu (cerca de 95. d.C.), não tinham mais templo em Jerusalém. Nas suas visões anteriores, viu um templo no céu (em que Deus residia, cf.11,19; 14,15-17; 15,5-8; 16,1.17), mas agora desapareceu. O lugar do novo culto espiritual é o Corpo de Cristo (o Cordeiro imolado e ressuscitado (5,6; Jo1,29.36; 2,19-22; 4,23-24; Rm 12,1).

Não há mais lugar reservado para a Presença sagrada: a comunicação com o Senhor é imediata, realização plena da “habitação de Deus entre os homens” (v. 3). Deus está presente nesta humanidade. Não é mais preciso nenhum meio para ligá-la com Deus: nem templo, nem liturgia, nem sacerdócio. É o momento do face-a-face (cf. Nm 12,8; Jo 1,18; 14,9), apenas “o trono de Deus e do Cordeiro, e seus servos lhe prestarão culto, verão sai face e seu nome estará sobre suas frontes” (22,3s). Consequentemente, também não existem outras mediações: política, economia, propaganda, comércio etc.,porque a comunhão total com Deus leva à comunhão total dos homens entre si.

A Bíblia do Peregrino (p. 2974) comenta: A cidade não necessita de templo, porque a presença de Deus e de Jesus Cristo a enche (cf. Jo 2,19-21). Tampouco precisa de “luz de lâmpada” (cf. Ex 23,31-30). Nem da luz dos dois luzeiros de criação, pois será como a Jerusalém de Is 60,1-3.19-20: “não terás mais o sol como a luz do dia, nem o clarão da lua te iluminará, porque o Senhor será tua luz perpétua”.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1525-1527) comenta o conjunto desta visão (21,9-22,5): Agora, João contempla os detalhes da nova cidade. Sua forma é de um quadro, o modelo de perfeição segundo os esquemas da época. Suas medidas e preciosidades indicam que ela reflete o brilho de Deus. Nela, a presença divina se mostra imediata. Por isso, não é necessário nenhum templo, nem outro tipo qualquer de intermediário entre Deus e a humanidade. Suas portas se abrem para todos. Nela não existe lugar para a mentira e para a injustiça. A vida nessa cidade mostra que o paraíso do Gênesis (cap.2) voltou a ser realidade: a total comunhão com Deus e entre os seres humanos é a esperança maior que alimenta a fidelidade do povo das comunidades.

Evangelho:Jo 14,23-29

Os evangelhos das últimas semanas do Tempo Pascal são tirados do discurso de despedida que o quarto evangelho apresenta na última ceiae se estende pelos caps. 13 -17, apenas interrompido ocasionalmente por perguntas dos discípulos.

A Bíblia do Peregrino (p. 2595) comenta esse discurso:

É um testamento, uma despedida, uma instrução.O gênero “testamento” está bem arraigado nas literaturas bíblica e profana da época. Um personagem ilustre, antes de morrer, reúne os filhos e pronuncia as últimas palavras, à maneira de testemunho espiritual: Jacó (Gn 49), Moisés (Dt 32-33), Samuel (1Sm 12), Davi (2Sm 23;1Rs2), Matatias (1Mc 2,49-70), Tobias (Tb 14). Não é inusitado o fato de João pôr na boca de Jesus um testemunho espiritual.

Mais que o ato puramente jurídico, o testamento é uma “despedida”, na qual se juntam as lembranças e se cruzam os conselhos. A despedida dá um tom cordial às palavras e um peso acrescido a instruções e conselhos. No caso de Jesus, a despedida é anômala, porque não é a última. Ele se vai, mas tornarão a vê-lo. A ida definitiva será a ascensão (que Lucas narra). É como se oferecessem a um personagem uma grande festa de despedida, em condições propícias, embora a partida vá realizar-se uns meses mais tarde. A de Jesus na ceia é uma despedida definitiva antecipada.

É uma “explicação”. Vai acontecer em breve algo terrível, dificílimo de entender, porque é duro de aceitar. Jesus explica de antemão o sentido profundo de uma execução humilhante que leve à glória, que é plena e definitiva. A explicação vale para os discípulos dentro do livro e para todos os futuros leitores do evangelho. Também os conselhos são legado permanente, perpétuo.

Se alguém me ama, guardará a minha palavra,e o meu Pai o amará,e nós viremose faremos nele a nossa morada.Quem não me ama,não guarda a minha palavra.E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou (vv. 23-24).

No v. precedente, Judas Tadeu acabou de perguntar: “Senhor, como se explica que te manifestarás a nós e não ao mundo?” (v. 22). Na época do iluminismo, H.S. Reimarius (1694-1758) perguntou, se Deus quisesse realmente ressuscitar Jesus, “por que não o faria à luz do dia, numa hora marcada, após um convite enviado com antecedência a todos os descrentes, e particularmente ao sinédrio e anciãos dos judeus?” Já o filósofo pagão do séc. II, Celso, argumentou assim (ad Origenes, Contra Celsum II 63.67.70).

Jesus responde insistindo no que acaba de dizer antes (vv. 15.21). O “mundo não verá mais” a Jesus (vv. 17.19), porque “não o ama, não guarda” sua “palavra” (cf. 8,37.43.47), o seu mandamento (que é o amor, cf. 13,34).Por isso não pode captar sua manifestação que será a morte e ressurreição. É preciso amar para entender (cf. 20,8b), e não existe amor sem observância dos mandamentos (cf. 1Jo 5,3). Mas o amor é relação pessoal e mútua, a máxima entre homens. Como será essa relação com Jesus e com o Pai? Um orante suplicava: “Quando virás a mim?” (Sl 101,2). O Pai e o Filho respondem ao pedido de modo inesperado (cf. Ap 3,20). Agora a morada do Pai (v. 2) e a segunda vinda do Filho (a parusiano fim dos tempos) já se antecipam no próprio discípulo: “Nós viremos e faremos nele a nossa morada”. O discípulo quem ama torna-se o lugar da presença de Deus; como antes a “habitação” do templo, agora o discípulo assume o papel que Jesus tinha no mundo (1,14; 2,21; cf. 1Cor 3,16s; 6,19; 2Cor 6,16; Ef 2,20-22).

Isso é o que vos disse enquanto estava convosco.Mas o Defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudoe vos recordará tudo o que eu vos tenho dito (vv. 25-26).

Enquanto Jesus estava com os discípulos, ele mesmo ensinava. Depois da sua partida, “o Defensor, o Espírito Santo” continua nesta função de “ensinar e recordar” as palavras de Jesus. Como o Pai enviou o Filho (cf. 3,17.34 etc.), agora enviará “outro defensor” (já em v. 16); o Espírito se chama aqui “Santo”, enviado do Pai em atenção a (“em nome de”) Jesus. Sua função de “ensinar” corresponde à sua condição de “Espírito da verdade” (v. 17; 15,26; 16,13; cf. Is 63,11; Sl 16,7; 51,12-14; Jr 31,34). É o agente da tradição recordando o passado de todo o ensinamento de Jesus, e fará progredir na sua compreensão. As palavras de Jesus são a base, pois eram palavras de Deus, agora o Espírito ajudará lembrar e compreendê-las. O autor do evangelho mantém a ficção como se Jesus falasse isso ao pé da letra na última ceia (cf. v. 25; 13,33), mas sabe que esse discurso de despedida – como o evangelho todo (cf. 2,17.22; 12,16) – se deve à atuação e atualização do Espírito (reflexão, redação).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2024) comenta: Depois da partida de Cristo, é o Espírito que o substitui junto dos fiéis (14,16.17; 16,7; cf. 1,33). Ele é o “defensor” (em grego paráclito), advogado que intercede junto do Pai (cf. 1Jo 2,1), ou que pleita diante dos tribunais humanos (15,26.27; cf. Lc 12,11-12; Mt 10,19-20p; At 5,32); ele é o Espírito de verdade (8,32), que conduz à plenitude da verdade (16,13), fazendo compreender a personalidade misteriosa de Cristo: como Cristo cumpriu as Escrituras (5,39), qual o sentido de suas palavras (2,19), de seus atos, de seus “sinais” (14,16; 16,13; 1Jo 2,20s.27; Rm 8,16), tudo que os discípulos não haviam compreendido antes (2,22; 12,16; 13,7; 20,9). Assim, o Espírito dará testemunho de Cristo (15,26; 1Jo 5,6-7) e confundirá a incredulidade do mundo (16,8-11; cf. Lc 24,49; Rm 5,5).

O site da CNBB comenta: Segundo o Evangelho de hoje, o amor a Jesus Cristo se manifesta no acolhimento dos seus mandamentos e na observância dos mesmos. Com isso, percebemos que Jesus não quer a submissão do homem a ele, mas comunhão do homem com ele. Quando o homem acolhe os seus mandamentos, na verdade está descobrindo os valores que são o seu fundamento e assumindo esses valores como causa primeira da sua felicidade. Assim, a observância dos mandamentos não significa mera obediência, mas caminho para a construção da felicidade pessoal e comunitária, e este caminho é perfeito porque tem a sua origem no próprio Deus.

Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo (v. 27a).

A Bíblia do Peregrino (p. 2598) comenta:  A paz era a saudação judaica corrente de chegada ou despedida (Ex 4,18; Jz 18,6), com frequência simples palavras convencional. São clássicos a saudação a Jerusalém (Sl 122) e o anúncio messiânico (Is 9). O mundo defende pazes injustas ou defende a paz com paliativos ou pronuncia desejos hipócritas. Não assim a saudação ou despedida de Jesus que é sentida e eficaz (cf. Sl 85,9).

“Shalom” (paz) é ainda hoje a saudação e despedida usuais dos judeus (cf. Lc 10,5p); compreende não apenas a ausência de inimigos, mas também a saúde corporal, a felicidade perfeita e a salvação trazida pelo messias. Tudo isso é dado por Deus. O ressuscitado saudará seus discípulos três vezes assim (20,19.21.26).

A paz é de Jesus (“minha”), porque não a dá “como o mundo”. Referindo-se à paz injusta do mundo, Jesus diz em Mt 10,34 eLc 12,51: “Não vim trazer a paz, mas a espada/separação”. “Dar a paz” fazia parte da ideologia do imperialismo romano (pax romana). O poder do imperador restaura a ordem, e se necessário, com uso da força (exército, violência). Mas a paz que Jesus dá, não é de submissão forçada, mas de verdade e liberdade (cf. 8,32; 18,36-38) que dá serenidade ao indivíduo resistir mesmo contra a maioria e a violência.

Como Jesus dá a paz? Através do Espírito, o defensor e consolador (paráclito) que ensina aos discípulos (v. 26) o significado da partida de Jesus de modo que possam se alegrar sobre sua volta ao Pai (v. 28). Este “Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê, nem o conhece” (v. 17). O mundo só consegue ver a aparência e o superficial (cf. 1Sm 16,7). Para ele, a morte de Jesus é só fracasso e fim da vida de Jesus, motivo de desânimo e medo para os discípulos.

Não se perturbe nem se intimide o vosso coração. Ouvistes que eu vos disse: “Vou, mas voltarei a vós”. Se me amásseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu (vv. 27b-28).

Novamente Jesus tranquiliza e consola como em v. 1; ele irá partir, mas logo voltará (cf. v. 3), não só no final dos tempos (parusia), mas já como ressuscitado e dará seu Espírito Santo (20,22) que permanecerá para sempre naqueles que guardam seus mandamentos (vv. 15s.26).

A partida de Jesus é motivo de alegria, porque é cumprimento da sua missão que é obra de Deus (cf. 5,17; 19,30) e a volta à sua origem, de onde saiu (13,3): o amor (seio) do Pai (cf. 1,18). O Pai como origem e “é maior”. Mesmo sendo igual ao Pai (10,30; cf. 8,24), o Filho tem a sua glória velada presentemente (1,14); seu retorno ao Pai a manifestará novamente (17,5; cf. Fl 2,6-9; Hb 1,3).

“O Pai é maior do que eu” é um dos textos debatidos ou defendidos na polêmica ariana. No séc. III, o presbítero Ariano insistiu que Jesus era apenas homem, apenas criatura do Pai que é o único Deus. Nos Concílios de Niceia (325) e Constantinopla (381), os bispos reunidos definiram o dogma da Trindade pelo qual o Filho é “gerado, não criado”, é da “mesma natureza” divina do Pai e existe desde sempre junto ao Pai. No Concílio de Calcedônia (451), definiu-se que Cristo tem duas naturezas: a humana (que é menor do que o Pai) e a divina (o verbo igual ao Pai, cf. Jo 1,1s).

Ao longo do evangelho e neste discurso há dados para explicar porque o Pai é maior: O Pai é a origem, ele enviou seu Filho, traçou o designo que ele deve executar, comunica-lhe o que vai dizer. Jesus representa e revela o Pai no mundo (vv. 9s), mas não é o Pai. Seu lugar está no Pai. A resposta se dá no plano da função; no plano ontológico (do ser, da natureza divina), os teólogos distinguirão “como homem, como Deus”. O mesmo evangelho afirma também a divindade de Jesus sem desistir do monoteísmo: A pré-existência do Verbo que se fez carne (1,1-18) e afirmações como “Eu e o Pai somos um” (10,30) e “Meu Senhor e meu Deus” (20,28) apoiam o dogma da Trindade (um só Deus em três pessoas distintas).

Disse-vos isto, agora, antes que aconteça, para que, quando acontecer, vós acrediteis (v. 29).

Impressiona como o quarto evangelho trabalha a morte de Jesus como abalo possível da fé. Para fortalecer a fé (dos ouvintes) repete várias vezes a predição da partida (só no discurso de despedida: 13,19; 14,29; 16,4). Anunciar de antemão é próprio de quem controla o futuro. Ao pronunciá-lo, tranquiliza, serena e conforta; ao cumprir-se pode acreditar e ilumina. O esquema encontra-se em Deutero-Isaías: “Predisse o passado de antemão, de repente o realizei e aconteceu” (48,3-5).

Em Jo, Jesus controla seu destino perfeitamente, sua paixão é entrega voluntária (cf. 10,17s; 18,4-11) para cumprir a vontade do Pai na sua “hora” prevista (cf. 2,4; 7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 17,1). Não foi um acidente, nem acaso, nem fracasso humano, mas a vitória sobre o mundo (16,33). Assim também os discípulos (e leitores) terão fé e coragem quando enfrentarem tribulações.

O site da CNBB comenta:No Evangelho de hoje, Jesus nos mostra um dos aspectos mais importantes do amor que é o desejo do bem maior para o outro. O mundo nos apresenta uma falsa ideia de amor que é o amor possessivo: quando amamos uma pessoa, queremos que ela esteja constantemente ao nosso lado porque assim somos felizes. Na verdade estamos pensando na nossa felicidade e não na da pessoa amada. Jesus diz: “Se me amasseis, ficaríeis alegres porque vou para o Pai, pois o Pai é maior do que eu”. Assim, de fato, somos nós, uma vez que nos entristecemos quando a felicidade maior do outro não é como gostaríamos que fosse. Na verdade, confundimos paixão e sentimentalismo com amor verdadeiro.

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