27 de fevereiro de 2018 – Terça-feira, Quaresma 2ª semana

 

Leitura: Is 1,10.16-20

Na leitura de hoje, o profeta Isaías chama à conversão o povo da sua cidade de Jerusalém e critica o culto no templo (onde é chamado para profetizar, cf. 6,1-13). Isaías condena a hipocrisia de uma sociedade que se contenta com festas religiosas sem consequências para a vida prática.

O oráculo data provavelmente do primeiro período do ministério de Isaías em Jerusalém antes de 740 a.C. Como o profeta contemporâneo Amos no reino do norte de Israel (Am 5,21-27) e depois Jeremias na capital do Sul, em Jerusalém (Jr 7), Isaías luta contra um ritualismo que disfarça a injustiça social.

Ouvi a palavra do Senhor, magistrados de Sodoma, prestai ouvidos ao ensinamento do nosso Deus, povo de Gomorra (v. 10).

Com o Sl 50(49), a leitura de hoje seja talvez o exemplo mais claro do pleito bilateral de Deus com seu povo. Aqui, Deus não é juiz, mas parte do processo (v. 18: “vinde, debatamos – diz o Senhor”). Os “magistrados” são chefes, príncipes, líderes do “povo” da mesma cidade de Jerusalém, igualada a Sodoma e Gomorra (vv. 9-10; 13,19; Gn 18,20; 19; Dt 29,22; Sf 2,9; Rm 9,29; em Mt 11,23s, Jesus compara Cafarnaum com Sodoma).

A crítica ao culto é omitida na leitura de hoje (vv. 11-15). O problema não é a oposição entre culto formalista e culto sincero, mas a relação entre culto e justiça. Enquanto o povo vive na injustiça, o culto torna-se falso, um suborno (cf. Eclo 35,14s), um anti-culto que não agrada Deus: “Não posso suportar iniquidade e solenidade” (v. 13). Assim, o lugar santo de Jerusalém torna-se a cidade do pecado e da violência como Sodoma e Gomorra.

Nos dias de festas, “luas novas, sábados, assembléias… solenidades” (v. 13), o templo de Jerusalém estava lotado, os sacerdotes recebiam grande “número de sacrifícios… carneiros, cevados, bezerros, cordeiros e bodes” (v. 11), e o cheiro da carne destes animais sacrificados misturou-se com o incenso (cf. Lv 1-5). Dava a impressão de um povo religioso e zeloso pelas coisas de Deus.  As mãos dos sacerdotes, “cheias do sangue” dos animais imolados, não testemunhavam a seriedade dos sacrifícios e orações? Deus não abençoaria tal devoção e zelo religioso?

Mas a palavra do Senhor através do profeta qualifica o culto como inútil e perverso. “Não aguento mais crimes e festas, … não vos escutarei, vossas mãos estão cheias de sangue” (vv. 13-15). Isaías insinua que as mãos dos sacerdotes estão cheias de sangue não apenas dos animais sacrificados, mas de pessoas injustiçadas. Por isso, segue a ordem “lavai-vos, purificai-vos…” (v. 16), lembrando o preceito dos sacerdotes (cf. Ex 30,18-21):

Lavai-vos, purificai-vos. Tirai a maldade de vossas ações de minha frente. Deixai de fazer o mal! Aprendei a fazer o bem! Procurai o direito, corrigi o opressor. Julgai a causa do órfão, defendei a viúva (vv. 16-17).

Depois da crítica ao culto, o profeta descarrega um fato de imperativos urgentes, exigindo a conversão e a justiça: “Lavai… purificai… tirai a maldade… deixai… aprendei… procurai o direito… corrigi… julgai a causa do órfão, defendei a viúva” (vv. 16-17). Órfãos e viúvas representam as classes mais pobres que a lei protege (Ex 22,21s; Dt 10,18; 14,29; 24,17; 27,19 etc.) e por quem os profetas intercedem (Jr 7,6; 22,3; cf. por contraste Is 9,16; Jr 49,10s; Ez 22,7).

Vinde, debatamos – diz o Senhor. Ainda que vossos pecados sejam como púrpura, tornar-se-ão brancos como a neve. Se forem vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como lã (v. 18).

A série de imperativos (vv. 16-17) desemboca no convite “vinde” (v. 18). Deus não rejeita, mas atrai. No fim propõe uma alternativa, uma promessa de perdão que se realizará na medida em que o povo corresponder, “ainda que vossos pecados sejam como púrpura, tornar-se-ão como neve”.

No NT, Jesus também faz umas críticas ao culto no templo (Mc 7,6s; 11,15-18), chama à conversão e oferece perdão, mas substitui o culto do templo pela doação da própria vida, ou seja, do seu Corpo e Sangue (cf. Jo 2,13-22; 4,21; Hb 9,11-14 etc.). Este seu sangue não suja, mas purifica e salva, como afirma Ap 7,13s sobre os mártires: “Estes, trajados com vestes brancas, quem são? … Lavaram suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro”.

Se consentires em obedecer, comereis as coisas boas da terra. Mas se recusardes e vos rebelardes, pela espada sereis devorados, porque a boca do Senhor falou! (v. 19-20)

O culto que agrada a Deus é obedecer à sua Palavra (cf. 1Sm 15,22; Os 6,6; Mc 12,33; Rm 12,1s). O profeta aponta dois caminhos (cf. Mt 7,13s), vida ou morte (cf. Dt 30,15-20, leitura de quinta-feira depois de cinzas): obedecer e comer bem, ou recusar e morrer pela espada. Aqui, o contrário de comer bem não e a fome, mas a violência ou guerra. Um missionário antropólogo na Amazônia me contou que os índios daquela região não conheciam a palavra paz. O termo mais próximo era “comer bem”. Na Bíblia, “paz” (shalom) significa também felicidade, prosperidade, saúde etc.

 

Evangelho: Mt 23,1-12

Costuma-se dividir o evangelho de Mt através de cinco grandes discursos (caps. 5-7: sermão da montanha; cap. 10: sobre missão; cap. 13: parábolas; cap. 18: vida na comunidade; caps. 24-25: escatologia, ou seja, sobre os últimos tempos). Compara-se este número ao “Penta-teuco”, aos primeiros cinco livros da Bíblia chamados de “Lei (Torá) de Moisés”. Mas Mt escreveu mais um discurso que antepôs ao discurso escatalógico: é um capítulo inteiro em 23,1-39 contra “os mestres da lei e os fariseus”. Na sua primeira fonte, Mc 12,38-40, havia apenas três versículos; na sua segunda fonte (chamada Q, uma coleção de palavras em comum com Lc), apenas 13 versículos (Lc 11,39-52).

É possível distinguir um retrato de escribas e fariseus (vv. 1-12; evangelho de hoje), em seguida sete lamentações (começam com “Ai”; vv. 13-31, cf. Is 5,8-23; Hab 2,6-20), duas invectivas (vv. 32-33) e um anúncio terrível do julgamento (vv. 34-36).

Para entender melhor esta polêmica contra os fariseus, há de considerar a situação do evangelista e sua comunidade judeu-cristã. Jesus histórico não condenou a doutrina dos fariseus em todas as partes, apenas sua observância exterior da lei e sua vaidade (cf. Mc 7,1-23; 12,38-40). Entre todos os grupos religiosos da época, Jesus estava mais próximo dos fariseus, muito mais do que dos sacerdotes no templo (saduceus; não acreditavam na ressurreição, cf. At 23,8; Mc 12,18) ou dos zelotas (fanáticos políticos, terroristas, cf. Mc 15,7.27; At 5,36s) ou dos essênios (fanáticos religiosos com rituais de pureza exclusiva no deserto, em Qumran).

Mas depois da derrota dos judeus na Guerra Judaica contra os romanos e a destruição do templo (70 d.C.) restou apenas um desses grupos para liderar o judaísmo: os fariseus, ou seja, os rabinos, mestres (doutores) da lei. Por acreditarem no messias Jesus e não terem participado da guerra nacionalista, os cristãos do tempo de Mt já eram hostilizados pelos judeus. No sínodo de Jâmnia (perto de Tel Aviv) em 90 d.C., os rabinos excluíram os cristãos definitivamente da sua religião, ou seja, “excomungaram” os cristãos da sinagoga (cf. Jo 9,22). Com isso, os cristãos perderam o privilégio dos judeus de serem isentos da adoração obrigatória aos deuses romanos e ao imperador de Roma; em seguida houve perseguições dos cristãos pelos romanos (cf. Ap 13: a “besta-fera” que veio do mar é o imperador romano). Mt escreve por volta de 80 a 85 d.C., poucos anos antes da excomunhão dos cristãos pelos judeus, daí se explica sua polêmica acirrada contra os fariseus e seus rabinos. Não se deve traduzir está polêmica ao pé da letra para nossa relação com o judaísmo de hoje, a qual melhorou muito através do Concílio Vaticano II e dos papas recentes.

A crítica dura de Mt se explica pela situação histórica do autor e da sua comunidade, não é objetiva e não concorda com a descrição dos letrados fariseus por outras fontes. Por outro lado, é possível e conveniente tomar o texto como descrição de tipos que podemos encontrar em outros grupos religiosos, inclusive na nossa própria Igreja e na comunidade.

Jesus falou às multidões e a seus discípulos: “Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam (vv. 1-3).

A introdução faz o texto soar como denúncia pública “às multidões e seus discípulos” (v. 1). “Os mestres da lei e os fariseus tem autoridade para interpretar a lei de Moisés” (v. 2), lit.: “estão sentados na cátedra de Moisés”. Escritos rabinos imaginam Moisés sentado numa cadeira (cátedra) para ensinar, como fundador de uma tradição oral que os doutores dizem conservar e transmitir; significa o ensinamento autorizado de Moisés para futuras gerações (Dt 4,2; 32,46). Jesus reconhece a autoridade oficial deles, e ele mesmo “se senta” para ensinar (5,1s; 13,2; 26,55). “Deveis fazer e observar tudo o que eles dizem” de acordo com Moisés (cf. Mc 7,1-13p e o comentário de 3ª feira da 5ª semana comum). Jesus denuncia a contradição dizer e não fazer, “não imiteis suas ações, pois eles falam e não praticam” (v. 3).

Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Eles usam faixas largas, com trechos da Escritura, na testa e nos braços, e põem na roupa longas franjas. Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de serem chamados de Mestre (vv. 4-7).

Fardos pesados parecem ser as múltiplas observâncias da lei que os fariseus impõem. Jesus, porém, propõe um “jugo leve” (cf. 11,29-30), ou seja, sua interpretação da lei é libertadora, porque simultaneamente com uma lei renovada (cf. 5,20-48; 7,12; 15,1-20; 22,34-40), transmite a alegria do Reino (5,3-12; 13 etc.), cujo acesso é confiado a Pedro (16,19), mas está bloqueado pelos escribas e fariseus (v. 13: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos homens”). Os hipócritas “fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros” (v. 5; cf. 6,1-18 e o comentário de 4ª feira de cinzas).

“Eles usam faixas largas”, chamadas de filactérios, pequenos estojos que contém uma reprodução de textos essenciais da lei (Ex 13,1-10; 13,11-16; Dt 6,4-9; 11,13-21). Segundo a lei, os judeus os atam ao braço esquerdo ou sobre a testa (Nm 15,38-39; Dt 6,8-9). “Põem na roupa longas franjas”; todos os judeus, inclusive Jesus (cf. 9,20), as usavam, mas os fariseus ampliavam a largura; elas eram guarnecidas de um filete roxo, símbolo do céu e deviam recordar os mandamentos de Deus.

A vaidade dos fariseus (vv. 6-7) já foi descrito em Mc 12,38s (cf. Pr 25,6s; Eclo 13,8s; Lc 14,7-10), exceto de “gostam… de serem chamados de mestre” (lit. “rabi”, palavra hebraica que significa “meu mestre”), título oficial dos doutores judeus depois de 70 d.C. até hoje, os “rabinos”. Em Mt, só o traidor Judas chama Jesus de “rabi” (26,25.49). O próprio Jesus era chamado de “Rabbúni” (aramaico; cf. Mc 10,51; Jo 20,16).

Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de Mestre, pois um só é vosso Mestre e todos vós sois irmãos. Na terra, não chameis a ninguém de pai, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus. Não deixeis que vos chamem de guias, pois um só é o vosso Guia, Cristo. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve (vv. 8-11).

Agora Jesus dirige palavras polêmicas aos seus discípulos (vv. 8-11): “Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de mestre” (v. 8, cf. Tg 3,1). Mestre único é o “Senhor” (Javé em Is 48,17) e agora é Jesus (8,9; Jo 13,14 etc.). “Pai” parece aqui como título honorífico (Jz 17,10; Is 9,5; cf. Mt 8,21s). Esta recomendação (própria de Mt) não foi obedecida pela Igreja, ao contrário: as palavras “padre” ou “papa” significam “pai”, papel que já Paulo se atribuiu (1Cor 4,14-17; 1Ts 2,11; Fm 10; cf. Hb 12,5-7; 1Jo 2,1 etc.)

No AT, o título “pai” era usado para os antepassados (cf. Ex 20,5; Jr 31,29s), para um ancestral (Js 19,47; 2Rs 16,2) ou fundador de profissão (Jr 35,5s), como título honorífico (Is 9,5), no tratamento educado (1Sm 24,12) e na metáfora (Jó 38,28); o mestre considera seus alunos de filhos (cf. na leitura sapiencial Pr 1,6 etc.; Eclo 2,1; 3,1 etc.). Poucas vezes, Deus é chamado de Pai no AT (Jr 31,9; Is 64,7), mas ele tem Israel (Dt 8,5; Os 11,1) ou o rei (2Sm 7,14; Sl 2,7) como seu filho.

Esses versículos não proíbem exercer um ministério de mestre ou catequista (cf. 5,19; 13,52), mas criticam a quem usurpar uma autoridade que só pertence a Cristo e a Deus. Os discípulos não devem ser mais uma elite numa sociedade hierárquica com títulos e vaidades, mas humildes servidores (cf. Lc 17,7-10; 2Cor 1,24) uns aos outros: “todos vós sois irmãos” (v. 8) e “o maior dentre vos deve ser aquele que vos serve” (v. 11; cf. 20,26p; Jo 13).

O Vaticano II exprimiu muito bem que autoridade na Igreja é serviço (LG 18; 27; CD 16…), mas ainda resta perguntar-se: a nossa Igreja (comunidade) se parece mais com os fariseus ou com uma sociedade fraterna e alternativa que Jesus queria?

Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado (v. 12).

O evangelho de hoje termina com uma frase de alcance geral (v. 12; cf. Jó 22,29; Pr 15,33; 29,33; Lc 1,52) aplicada à comunidade cristã.

O site da CNBB resume: Dois elementos são importantes para nós a partir da leitura do Evangelho de hoje. O primeiro é que nenhum ser humano pode ser para nós modelo absoluto para a vivência do Evangelho, uma vez que todas as pessoas são pecadoras. O segundo é que não podemos fazer da religião forma de relação de poder e de promoção pessoal. As distinções que existem na vida religiosa devem ser de cargos e funções, porque existem ministérios diferentes, mas todos na Igreja têm uma dignidade igual: a de filhos e filhas de Deus. Mesmo dentro da Igreja, a hierarquia só pode ser concebida à luz do Evangelho e a partir do conceito de serviço.

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