27 de janeiro de 2019, Domingo: E veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura (v. 16).

1ª Leitura: Ne 8,2-4a.5-6.8-10

A 1ª leitura foi escolhida por apresentar uma liturgia da palavra que deu origem ao culto da sinagoga do qual também Jesus participava ativamente fazendo leituras e pregando (cf. evangelho).

Os livros de Esdras e Neemias fazem parte da história Cronista (1-2Cr) e continuam a história de Israel, relatando os acontecimentos entre 538 e 400 a.C. O tema central é a organização da comunidade que se formou a partir da volta dos judeus que estavam exilados na Babilônia.

Em conjunto, os vinte e três capítulos não se encontram na ordem cronológica e literária original. Para entender nossa leitura de hoje, precisa saber a sequência histórica:

No ano 445, Neemias, funcionário judeu na corte do rei persa Artaxerxes, vai a Jerusalém para construção da muralha (Ne 1-2) e é nomeado governador (Ne 5,14). Em 433, Neemias volta para Susa na Pérsia (Ne 13) e o profeta Malaquias atua em Jerusalém. Em 430, Neemias e Esdras estão juntos em Jerusalém para a leitura da lei (Lei de Moisés) e o início das reformas (Ne 8-10; 13). Em 429, Artaxerxes autoriza Esdras a promulgar a Lei (Esd 7-8).

Logica e cronologicamente, Ne 8 é a continuação de Esd 8,36: Esdras viera da Babilônia para promulgar a lei (Esd 7,25s). O cronista utiliza aqui o relatório de Esdras.

O sacerdote Esdras apresentou a Lei diante da assembleia de homens, de mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. Era o primeiro dia do sétimo mês (vv. 1-2).

Esdras que era ao mesmo tempo escriba e sacerdote (v. 9) aparece aqui pela primeira vez no livro de Ne. Dá impressão que a cerimônia é celebrada por iniciativa popular e em lugares profanos, ao passo que as cerimônias litúrgicas são convocadas pelos sacerdotes. Atua Esdras, não o sumo sacerdote (Elisiab ou Joiad): talvez porque este não era partidário ou entusiasta da reforma. Dt 31,12 menciona “homens, mulheres, crianças e migrantes”. Um acréscimo do cap. 13 inclui também as crianças antes do uso da razão. O lugar da praça é a sudeste do Templo, num território não sagrado (v. 1).

O livro lido pode ser o Deuteronômio de Josias (cf. 2Rs 22), talvez ampliado (Dt 4,44-28,68), ou um Pentateuco relativamente completo, ou seja, narração, lei e parênese, que oferecia leitura para vários dias. Esta primeira parte da Bíblia (cinco livros: penta-teuco) talvez já constituísse a Torá (Lei), cuja autoridade aumentará cada vez mais no judaísmo (cf. Esd 7,14).

O “primeiro dia do sétimo mês” corresponde a meados de setembro. A leitura da Lei deverá ser repetida a cada sete anos na festa das Tendas (v. 14) que inicia no décimo quinto dia do sétimo mês (sukkot, a festa dos tabernáculos ou cabanas em outubro; cf. Dt 31,9-13; Lv 23,33-43; Nm 29,12-38). Antes do exílio, esta festa alegre do sétimo mês (setembro-outubro) inaugurava o “ano novo” (Ex 23,16; 34,22; Lv 23,24s; Nm 29,1). Salomão realizou a trasladação da Arca da Aliança e a inauguração do templo durante esta festa (1Rs 8,2). A arca da Aliança que continha as tábuas da lei, porém, foi perdida na destruição de Jerusalém em 586 a.C. pelos babilônios e nunca mais encontrada (cf. Jr 3,16; a Igreja Copta da Etiópia afirma que guarda esta aliança em segredo).

Assim, na praça que fica defronte da porta das Águas, Esdras fez a leitura do livro, desde o amanhecer até ao meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei (v. 3).

Nos seus últimos dias (cf. Dt 31,9-13), Moisés deu a ordem da leitura ritual da lei; em Ex 24,3-8 a leitura no Sinai foi acompanhada por um rito de sangue da aliança.

Impressionante a capacidade do povo de prestar atenção à leitura “desde o amanhecer até ao meio-dia”.

Esdras, o escriba, estava de pé sobre um estrado de madeira, erguido para esse fim (v. 4a).

Com Esdras, aparecem quatorze pessoas na tribuna (v. 4b), leigos importantes cujos nomes foram omitidos na leitura de hoje (como também os dos levitas em v. 7).

Estando num lugar mais alto, ele abriu o livro à vista de todo o povo. E, quando o abriu, todo o povo ficou de pé. Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos: “Amém! Amém!” Depois inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com o rosto em terra (vv. 5-6).

O rito indica que o povo escuta a leitura como lei ou instrução do Senhor; encontramos todos os elementos da liturgia da palavra na sinagoga e na Igreja, diferente do culto celebrado no templo onde os sacrifícios eram o elemento central. Quando o templo estava em ruínas, durante o exílio, valorizou-se a palavra e surgiu a “sinagoga” (uma reunião de pelo menos dez homens para rezar e ouvir a Palavra de Deus). Os elementos são a leitura proferida num ambão (mesa da palavra, púlpito), a explicação (exortação, homilia) e a benção, o povo se levanta e responde por aclamações (a palavra hebraica Amén significa “assim seja, creio firmemente, confio que é verdade”, etc.) e gestos de devoção, oração (erguer as mãos) e adoração (prostração).

E leram clara e distintamente o livro da Lei de Deus e explicaram seu sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura (v. 8).

Nossa liturgia omitiu o v. 7 que é uma adição do redator cronista que quer dar aos levitas a importante função que eles exercem no culto mais recente: ler e explicar a leitura. Na versão grega do v. 8, só “Esdras leu”; em hebraico: eles “leram”.

A Bíblia do Peregrino (p. 849) comenta o v. 8: É duvidoso e discutido o sentido da palavra hebraica mprsh. Se lhe damos o sentido de “traduzir”, indicaria que o povo já não entendia o hebraico e já precisava de uma tradução aramaica. Se traduzimos “por partes”, indicaria que do púlpito Esdras lia uma seção, e os levitas a repetiam em grupos a seu alcance e a comentavam.

O governador Neemias e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo, disseram a todos: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus! Não fiqueis tristes nem choreis”, pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei (v. 9).

Junto a Esdras está governador Neemias (v. 9), em bom acordo do poder civil com um representante do religioso; como na época da reconstrução do templo (cf. Ag 1,1 em 520 a.C.) Zorobabel (sucessor de Davi) estava junto com Josué (sumo sacerdote). Alguns, porém, pensam que a presença de Neemias no v. 9 se deve a um acréscimo, porque o livro apócrifo 3Esd omite “Neemias”; o texto grego omite “governador” (lit. “sua excelência”); essas menções vem do redator.

“Todo o povo chorava”; este choro podia ser devido às ameaças e repreensões que escutavam (como em Jz). Era um gesto de pesar antecipado, reservado para a liturgia penitencial. Pode ser uma alusão ao Yom Kippur, o dia das Expiações (Lv 16). Entre o primeiro dia do sétimo mês e o dia 15, quando começa a festa alegre das cabanas, celebra-se o dia das Expiações (Lv 16) no dia 10. Este grande dia de penitência que devia constar entre a leitura da Lei por Esdras e a festa das cabanas é ignorado em nossa narrativa, que antecipa o tempo de alegria.

E Neemias disse-lhes: “Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor. Não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor será a vossa força”
(v. 10). 

Pode se traduzir: “a alegria (a festa) do Senhor será vossa força”. A alegria deve ser partilhada entre todos, como ensina Dt 26,11 e 16,11. Em Ex 24,1-11, diante do povo reunido no pé do monte Sinai, Moisés leu as palavras de Deus (10 mandamento e talvez o código da aliança), o povo proclamou seu acordo, Moisés realizou o rito da aliança e depois celebrou-se uma refeição mística com os representantes do povo.

Toda esta assembleia relatada em Ne 8 pode se considerar como fundação do judaísmo: o povo que sobreviveu o exílio quer viver agora segundo a Lei (Torá), bem entendida como orientação e felicidade, ou seja, “graça” como diria Paulo (cf. Rm 9,4s). A religião do judaísmo (como também do cristianismo e do islamismo) é uma religião do livro com o qual sobreviveu até hoje mesmo sem templo. A explicação da Palavra (por ex. catequese, homilia) traz alegria (cf. o documento “A Alegria do Evangelho” do Papa Francisco).

 

2ª Leitura: 1Cor 12,12-30 (ou vv. 12-14.27)

Nos caps. 12-14, Paulo escreve sobre o bom uso dos dons do Espírito (carismas), concedidos à comunidade como testemunho visível da presença do Espírito. Os coríntios eram tentados a apreciar principalmente os carismas mais vistosos e a utilizá-los em ambientes anárquico, semelhante ao de certas cerimônias pagãs.

A Bíblia do Peregrino (p. 2257s) comenta o cap. 12: Em Corínto, ao que parece, os dons espirituais ou “carismas” davam origem a divisões por inveja ou competição, por vaidade comparativa. Paulo responde desenvolvendo duplo argumento: origem e função. A origem é única e mantém um controle unificado: o Espírito. A função é plural, mas de forma orgânica, ou seja, existe uma diferenciação a serviço da unidade do organismo (como os membros diversos de um único corpo)… 12,12-30 propõe o segundo argumento, desenvolvendo a imagem (não alegoria estrita) de um organismo. É óbvio o aspecto da diversidade funcional, é essencial o aspecto da correlação e interdependência. A pluralidade e variedade a serviço da unidade. Unida ao Messias, a Igreja é como um corpo. Não é legítimo identificar cada membro mencionado com a função específica na Igreja; é legítimo, sim, observar o interesse do autor pelos membros mais fracos, mais escondidos, menos vistosos.

Como o corpo é um, embora tenha muitos membros, e como todos os membros do corpo, embora sejam muitos, formam um só corpo, assim também acontece com Cristo (v. 12).

Paulo recorre a um tema bem conhecido da cultura greco-romana: o corpo humano, como imagem do corpo social ou estado, incita ao respeito à diversidade de seus membros e à necessária unidade de todos na execução de um objetivo comum (cf. as oposições “um-todos” ou “um-muitos (vários)”. O apóstolo, porém, modifica profundamente o significado desta imagem do “corpo”, à luz da sua experiência cristã e da prática eucarística do “corpo de Cristo” (cf. o tema anterior em 11,17-34).

“Assim também acontece com Cristo”; subentende-se: ele (Cristo) é um, tem vários membros (como “o corpo” no v. precedente). Como o corpo humano une a pluralidade de seus membros, assim Cristo, princípio unificador da sua Igreja, constitui todos os cristãos na unidade do seu Corpo.

De fato, todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num único Espírito, para formarmos um único corpo, e todos nós bebemos de um único Espírito (v. 13).

Comparado com o trecho sobre o batismo em Gl 3,28, falta aqui o binômio “homem e mulher” (cf. 11,2-16: as mulheres na assembleia); “gregos” equivale a pagãos (não-judeus).

Este v. não faz parte da narrativa-parábola, mas já fornece, por antecipação, uma explicação teológica baseada no batismo e na Eucaristia. O primeiro membro é paralelo a 10,2: “Todos foram, em Moisés, batizados na nuvem e no mar”; o segundo é paralelo a 10,4: “Bebiam uma bebida espiritual”, era uma alusão à Eucaristia. O Espírito (= vento) toma no batismo uma forma líquida: o homem se submerge nele e o absorve. Ou seja, o beber/absorver alude à eucaristia (cf. 11,17-34). “Todos no único Espírito” (cf. Ef 4,4-6).

Com efeito, o corpo não é feito de um membro apenas, mas de muitos membros. Se o pé disser: “Eu não sou mão, portanto não pertenço ao corpo”, nem por isso deixa de pertencer ao corpo. E se o ouvido disser: “Eu não sou olho, portanto não pertenço ao corpo”, nem por isso deixa de pertencer ao corpo. Se o corpo todo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se o corpo todo fosse ouvido, onde estaria o olfato? De fato, Deus dispôs os membros e cada um deles no corpo, como quis. Se houvesse apenas um membro, onde estaria o corpo? Há muitos membros, e, no entanto, um só corpo (vv. 14-20).

Paulo apresenta a alegoria (não restrita) de um organismo. Já na antiguidade, a sociedade era comparada com um corpo humano. A primeira parte desta parábola do corpo (vv. 14-20) desenvolve o tema da diversidade necessária. A segunda parte fala da importância e necessidade também dos membros mais fracos e desprezados no corpo da comunidade (vv. 20-26).

A Bíblia do Peregrino (p. 2758) comenta: É óbvio o aspecto da diversidade funcional, é essencial o aspecto da correlação e interdependência. A pluralidade e variedade a serviço da unidade. Unida ao Messias, a Igreja é como um corpo. Não é legítimo identificador cada membro mencionado com uma função especifica na Igreja; é legítimo, sim, observar o interesse do autor pelos membros mais fracos, mais escondidos, menos vistosos… “Ouvido que escuta, olho que vê: ambas as coisas foi o Senhor quem as fez” (Pr 20,12; cf. Sl 94,9).

“Deus dispôs os membros e cada um deles no corpo, como quis” cf. Gn 2,7; Sl 139,13-16: Deus modelou o corpo do ser humano

O olho não pode, pois, dizer à mão: “Não preciso de ti”. Nem a cabeça pode dizer aos pés: “Não preciso de vós”. Antes pelo contrário, os membros do corpo que parecem ser mais fracos são muito mais necessários do que se pensa. Também os membros que consideramos menos honrosos, a estes nós cercamos com mais honra, e os que temos por menos decentes, nós os tratamos com mais decência. Os que nós consideramos decentes não precisam de cuidado especial. Mas Deus, quando formou o corpo, deu maior atenção e cuidado ao que nele é tido como menos honroso, para que não haja divisão no corpo e, assim, os membros zelem igualmente uns pelos outros. Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se é honrado, todos os membros se regozijam com ele (vv. 21-26).

A segunda parte da parábola do corpo (vv. 21-26) desenvolve o tema da solidariedade dos membros do corpo: uns sem os outros, nada podem, mas pelo contrário obtêm a alegria na própria unidade e ajuda mútua (amor fraterno).

Em v. 22, Paulo lembra a existência dos cristãos que chamou de “fracos” em 8,7-13 e de cujas consciências ele insistiu em reclamar respeito. Em v. 26, com os verbos “sofrer” e “ser honrado (ou: glorificado)”, Paulo já abandona o terreno da parábola. Com efeito, esses verbos exprimem, em outra ocasião, a paixão/morte e ressurreição/glória de Cristo.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1399s) comenta: A metáfora ou comparação do corpo humano como imagem do corpo social era comum na literatura antiga. Mas era usada para manter a estrutura hierárquica e para justificar o poder de dominação. Paulo inverte o uso da comparação, para colocar o Cristo como cabeça, isto é, origem da comunidade (Rm 12,4-5). Outra inversão está na diversidade entre as pessoas que compõem a fraternidade. E a inversão principal é o critério de atenção aos membros mais fracos. A comunidade cristã, já marginalizada, corria o perigo de marginalizar outras pessoas. Então o Apóstolo insiste: que haja unidade na diversidade, o que implica maior atenção aos membros mais fracos.

Vós, todos juntos, sois o corpo de Cristo e, individualmente, sois membros desse corpo (v. 27).

A Igreja é o corpo “de Cristo” por ser cada batizado (cristão), antes do mais, membro de Cristo: a expressão “vós sois seus membros” deve compreender-se como “vós sois membros de Cristo”, assim como “vós sois o corpo de Cristo”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2163s) comenta este “corpo místico” de Cristo:

Embora utilize o clássico apólogo que compara a sociedade a um corpo unido nos seus diversos membros, não é a esse apólogo que Paulo deve a sua concepção de Corpo de Cristo. Ela é inspirada pela fé cristã de Paulo (cf. 9,4s; Gl 1,15s), fé em Jesus ressuscitado num corpo vivificado pelo Espírito (Rm 1,4), primícias do mundo novo (1Cor 15,23), ao qual os cristãos se unem em seus próprios corpos (Rm 8,11), pelos ritos do batismo (1Cor 12,13; cf. Rm 6,4) e da eucaristia (1Cor 10,16s). Os cristãos tornam-se assim “membros” de Cristo (1Cor 6,15); unidos todos ao seu corpo pessoal constituem com ele o Corpo de Cristo que chamados “místico” (1Cor 12,27; cf. Rm 12,4s). Esta doutrina de grande realismo, que já aparece em 1Cor, ocorre de novo, e com mais amplidão, nas cartas do cativeiro. Sem dúvida, é no Corpo de Cristo crucificado segundo a carne e vivificado pelo Espírito (Ef 2,14-18; Cl 1,22) que se realiza a reconciliação dos homens, membros de Cristo (Ef 5,30). Mas Paulo acentua principalmente a unidade desse corpo, que reúne todos os cristãos no mesmo Espírito (Ef 4,4; Cl 3,15) e a identificação de tal Corpo com a Igreja (Ef 1,22s; 5,23; Cl 1,18.24). Esse corpo, concebido como uma pessoa (Ef 4,12s; Cl 2,19), tem o Cristo como Cabeça (Ef 1,22; 4,15s; 5,23; Cl 1,18; 2,19; comparar 1Cor 12,21), certamente por influência da concepção de Cristo Cabeça das Potências angélicas (Cl 2,10). Enfim, a noção de Corpo de Cristo chega a englobar, de certo modo, o universo inteiro reunido sob o domínio do Kyrios (Ef 1,23; cf. Jo 2,21). 

E, na Igreja, Deus colocou, em primeiro lugar, os apóstolos; em segundo lugar, os profetas; em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar; depois, outras pessoas com dons diversos, a saber: dom de milagres, dom de curas, dom para obras de misericórdia, dom de governo e direção, dom de línguas. Acaso todos são apóstolos? Todos são profetas? Todos ensinam? Todos realizam milagres? Todos têm o dom das curas? Todos falam em línguas? Todos as interpretam? (vv. 28-30).

Uma nova lista de carismas estabelece uma espécie de propriedade entre apóstolos, profetas e doutores, mas não prioridade organizada nem exaustiva; o mesmo se nota na lista anterior (vv. 8-10, cf. leitura do domingo passado) e nas demais (Rm 12,6-8 e Ef 4,11).

Vv. 28-30 aplicam à Igreja a primeira parte da parábola do corpo, o desenvolvimento sobre a diversidade. Assim como Deus “colocou” (dispôs) os membros do corpo (v. 18), assim também Deus “colocou homens na Igreja”. E estes exercem várias funções que não poderiam, sem contrassenso, ser reduzidas a uma só (vv. 29-30).

Estes dois elencos não coincidem com o precedente (vv. 8-10) em números ou em todos os momentos; Há alguns carismas novos, “de governo e assistência”. Destacando-se na sequência os que podemos chamar “cargos”; participam do dinamismo dos carismas, mas têm função de direção: os “apóstolos, profetas e mestres” (cf. Rm 12,6-8).

“Em primeiro lugar, os apóstolos”, são aqueles que tiveram um encontro com Jesus ressuscitado e por isso tem um envio especial para anunciar (cf. 9,1; Rm 1,1; Gl 1,11-16).

“Em segundo lugar, os profetas” (14,1; Ef 4,11; Rm 12,6; Lc 11,49); tanto no NT como no AT, a profecia só secundariamente consiste em predizer o futuro (At 11,28; 21,10-14). O profeta é essencialmente um homem ou uma mulher (cf. 1Cor 11,2) que fala em nome de Deus sob a inspiração do Espírito, que revela o mistério do seu desígnio (13,2) e sua vontade divina nas circunstâncias presentes. Ele edifica, exorta, encoraja (14,3) e descobre os segredos dos corações (14,24s).

“Em terceiro lugar, os que têm o dom e a missão de ensinar” (lit. os mestres). Os mestres ou doutores são os encarregados, em cada Igreja, do ensinamento regular e ordinário (cf. At 13,1), são responsáveis pela formação doutrinal dos fiéis, pela catequese que aprofunda o kerigma (anúncio inicial).

“Dom de governo e direção”; o dom de administrar e dirigir as Igrejas. “Dom para obras de misericórdia”, lit. assistência. O dom de dedicação às obras de amor fraterno.

Observa-se que Paulo coloca duas vezes a glossolalia (“falar em línguas”) em último lugar, talvez em contraste à supervalorização deste dom que os coríntios lhe davam (cf. 13,1; cap. 14). Na lista de Rm 12,6-8 não é mencionado.

Em seguida, Paulo apresenta o maior dos dons/carismas: o amor-caridade (agape) a qual Paulo dedica um hino em seguida (cap. 13; cf. 2ª leitura do próximo domingo)

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2220) comenta: 1Cor 12-14 são a resposta de Paulo às questões suscitadas pela existência em Coríntio, de fenômenos espirituais (“pneumatiká”; cf. 14,1.37). Na assembleia cristã, certos coríntios e coríntias eram arrebatados pela inspiração e tomavam a palavra para louvar a Deus ou exorta os outros, quer no idioma dos participantes (“profecia”), quer em idiomas desconhecidos ou compostos de sílabas sem nexo inteligível (“glossolalia”). Antes de reconhecer nesses fenômenos um cunho positivo (cap. 14), Paulo procede a uma reordenação: o que é mais útil à comunidade, são os “dons-da-graça” (ou “carisma”, cf. vv. 4 e 31), que são muito mais numerosos e diversificados que as manifestações espetaculares a que os coríntios atribuíam à comunidade. Enfim precisa ser informado pelo amor (“ágape”) que, em meio a esta diversidade, manterá unida a comunidade (cap. 13).

 

Evangelho: Lc 1,1-4; 4,14-21

O evangelho de hoje apresenta o início do evangelho de Lucas, depois salta quatro capítulos e apresenta Jesus no culto da sinagoga de Nazaré.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1966) comenta: Lc inicia seu livro com um prólogo à maneira dos escritores gregos do seu tempo. Menciona os seus predecessores, seus cuidados com a informação e a construção literária, e dedica sua obra a um personagem importante, Através desses modos de agir aparece o seu propósito de historiador sagrado: ele quer escrever um evangelho a partir da tradição.

Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra. Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo. Deste modo, poderás verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste (1,1-4).

Pelo que o próprio autor deste evangelho escreve, não foi o primeiro evangelista. Na nossa Bíblia, o evangelho de Mateus encabeça o Novo Testamento, porque se achava que fosse escrito por um apóstolo (cf. Mt 9,9) e porque mais se liga com o Antigo Testamento (genealogia e cumprimento das profecias). Mas a autoria de Mt por um apóstolo é questionada hoje; nenhum evangelista assinou com seu nome. Os quatro evangelhos são obras anônimas; só no séc. II receberam nomes de supostos autores do âmbito apostólico.

Mas a exegese moderna com sua análise linguística demonstra que o primeiro evangelho escrito foi o que chamamos de Marcos. Hoje se reconhece a “teoria das duas fontes” que diz o seguinte: Mt, Mc e Lc são os evangelhos “sinóticos” (=os que olham juntos, tendo a mesma visão, ou seja, roteiro): Marcos é o evangelho mais velho, e Mateus e Lucas escrevem independentemente um do outro. Mas Mt e Lc usam Mc (como base da narrativa) e mais outra fonte, chamada Q (do alemão Quelle = fonte) que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir de Mt e Lc (parábolas e outras palavrs de Jesus, partes do sermão da montanha, etc.). Mt e Lc tem também fontes particulares.

Além dos que já escreveram antes dele, Lc menciona “testemunhas oculares e ministros da palavra” (cf. At 4,31; 6,2.7; 11,1) sem dúvida os apóstolos (cujo título ele restringe aos doze, cf. At 1,21s; exceto At 14,4.14). É possível que contenha informações também de familiares de Jesus. Na arte cristã, são Lucas é retratado como pintor de Maria, porque apresentou a infância de Jesus do ângulo de Maria (Mt o faz do ângulo de José). Seu símbolo, o touro, vem dos quatro seres vivos do Apocalipse (4,6s) e é relacionado com o templo onde começa a Lc narrativa de Lc (1,5-25).

Lc escreveu dois volumes: o Evangelho e os Atos dos Apóstolos. Ambos os livros iniciam com uma dedicação à mesma pessoa: “Teófilo” (nome do patrocinador ou nome simbólico, significa “amigo de Deus”, cf. Lc 1,1-4; At 1,1-2). “Excelentíssimo”, lit. excelente; tratamento de um personagem mais ou menos oficial (cf. At 23,26; 24,3; 26,25). Lc decidiu “escrever de modo ordenado”, não quer dizer cronológico, mas de ordem literária e didática.

Desde o século II, a tradição identificou como autor o médico “Lucas” que acompanhou Paulo (Cl 4,14; Fm 24; 2Tm 4,11), porque os Atos tem trechos em primeiro pessoa plural (“nós”). Mas esta autoria é incerta (porque pouco se encontra da teologia de Paulo em At), mas com certeza pode se afirmar que o autor é grego e tem formação superior, pois escreve o melhor estilo em grego de todo o Novo Testamento.

Como o evangelho de Lc depende de Mc (escrito por volta de 70 d.C.) como base, a data da redação do Evangelho de Lc e dos Atos estima-se entre 80 e 90 d.C. O autor escreve para leitores pagãos convertidos (gregos e romanos) explicando os costumes judaicos com simpatia (cf. Lc 1-2), critica a injustiça social (cf. 6,20-26; 16,19-31 etc.) e dá mais atenção às mulheres (Maria e Isabel, Marta e Maria…). Lc é chamado o evangelho da misericórdia, porque apresenta Jesus misericordioso para com os pobres e pecadores (cf. 7,36-50; 15,11-32; 23,39-43).

Nossa liturgia salta toda história da infância e batismo de Jesus (cf. tempo de Advento e Natal, e também a tentação dele (cf. 1ª domingo da Quaresma).

(Naquele tempo) Jesus voltou para a Galileia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se por toda a redondeza. Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam (vv. 14-15).

Seguindo o evangelho mais velho de Mc, Lc narra como Jesus foi batizado e tentado antes de começar sua pregação pública (3,1-4,13p; cf. Mc 1,1-13). Superada a prova no deserto, o Espírito continua guiando Jesus (vv. 14.18; cf. 3,22; 4,1). Antes de voltar a Nazaré (em Mc só em 6,1-6), Lc resume o início da atividade pública de Jesus na região que lhe rendeu fama e elogios.

Jesus “ensinava”, mas ainda não realizou curas; a primeira será o exorcismo na sinagoga de Cafarnaum, o primeiro milagre em Mc que Lc copia em seguida (4,31-37 cf. Mc 1,21-28). Mas Lc não quer começar a atividade pública de Jesus com um exorcismo, sim com uma pregação programática na sinagoga de Nazaré.

E veio à cidade de Nazaré, onde se tinha criado. Conforme seu costume, entrou na sinagoga no sábado, e levantou-se para fazer a leitura (v. 16).

Lc apresenta a primeira pregação do messias de maneira mais extensa do que Mc 1,14s, não numa montanha como Mt 5-7, mas numa sinagoga (como depois os missionários cristãos em At 9,20; 13,5; 14,44 etc.). O lugar não é a sinagoga de Cafarnaum (cf. vv. 23.31; Mc 1,21-28; Jo  6,59), mas de Nazaré (cf. Mc 6,2; Mt 13,54). Sendo judeu piedoso e praticante, Jesus frequentava o culto na sinagoga no dia de sábado. Só em Jerusalém existia o templo onde sacerdotes celebravam os sacrifícios que o povo oferecia. Nos outros lugares, o povo se reunia nas sinagogas que surgiram no tempo do exílio quando não havia templo e continuam até hoje sendo o lugar para assembleias religiosas do judaísmo no mundo inteiro. O templo, porém, foi destruído em 70 d.C. e no século VII substituído por um santuário muçulmano.

Aos sábados celebra-se nas sinagogas um culto da Palavra, cantando salmos e lendo (em pé) da Lei do Moises (Torá – Pentateuco) e dos profetas seguida de uma homilia (sentada). Nesta, qualquer judeu adulto podia tomar a palavra, mas as autoridades da sinagoga chamavam geralmente aos que eram versados nas escrituras (cf. At 13,15).

Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus achou a passagem em que está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (vv. 17-19).

A cena e programática: síntese e modelo da pregação de Jesus. Providencialmente oferece-se o livro de Isaias. Jesus não escolheu, mas achou a passagem de Is 61,1; o texto original invoca a consagração de um profeta (cf. 1Rs 19,16) ou do messias (cf. Is 11,1-2; 42,1) apresentando seu programa de governo (cf. Sl 72). Jesus se refere ao Espírito que ele acaba de receber no batismo e faz dele a fonte de sua mensagem e ação salvadora. Lc e At destacam o papel do Espírito Santo (cf. Lc 1-2; At 2 etc.).

O “evangelho” (palavra grega que significa “Boa Nova”), ou seja, a boa notícia do Reino de Deus (cf. Mc 1,14-15p), inclui a libertação de qualquer tipo de opressão: econômica, os pobres; política, os cativos; a física (e intelectual), os cegos. Ao Is 61,1, Lc acrescenta Is 58,6 antes de proclamar um “ano de graças” (v. 19; Is 61,2a). Lc interrompe a citação antes do final ameaçador (Is. 61,2b: “um dia de vingança para nosso Deus”). O ano da graça designa o ano jubilar fixado pela lei de 50 em 50 anos para perdoar dívidas (cf. Lv 25,10-13). Para Lc, o messias veio para proclamar a graça e a misericórdia de Deus e não a sua vingança (cf. Lc 6,36s; 15; 23,34.43). O ano de graças agora é a atividade pública de Jesus, que demora um ano (nos evangelhos sinóticos) desde a pregação na Galileia até a Páscoa em Jerusalém (em Jo, são três anos).

Depois fechou o livro, entregou-o ao ajudante, e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (vv. 20-21).

No texto de Is 61,1, um profeta anônimo fala na primeira pessoa. Quem é este eu? Muitos leram estes versículos, mas seu sentido sempre ficara a meio caminho. “Hoje se cumpriu esta passagem da escritura” (v. 21). Agora chegou este Eu que pronuncia este texto autenticamente que será cumprido e estará cheio de sentido. A todos que tem “os olhos fixos nele”, Jesus declara-se messias (cf. 1,32.35; 2,11; 3,22; 22,67-71).

Em Lc, “hoje” é termo significante para salvação, cf. o anúncio do anjo aos pastores na noite de Natal em 2,11 (cf. 5,26; 19,5.9; 23,43; cf. 19,47; Mc 1,15). Este “hoje” faz o tempo parar para a transcendência (mundo eterno de Deus) entrar em nosso mundo e nossa história.

O evangelho de hoje termina aqui, mas Lc continuou narrando as dúvidas e a rejeição dos nazarenos (4,21-30; evangelho do próximo domingo; cf. Mc 6,2-6p) que se seguiam ao primeiro entusiasmo e levaram até a tentativa de homicídio. Assim Lc une nesta única narração na sinagoga de Nazaré a admiração pelos costumes judaicos, o programa do messias (anunciado em Is 61,1 e identificado com Jesus), a recusa oposta por uma parte de Israel e a pregação da salvação aos pagãos (vv. 24-27; cf. At 28,25-28, conclusão da obra de Lc).

Para nós fica o convite de acreditarmos “hoje” no messias Jesus, conhecê-lo melhor a partir das Sagradas Escrituras e colaborar na sua missão libertadora.

O site da CNBB resume: Jesus é enviado por Deus, ungido e consagrado pelo Espírito Santo para a missão evangelizadora, que implica não somente na salvação da alma, mas na libertação integral da pessoa humana. Isso significa para nós que a missão da Igreja, que é continuadora da missão do próprio Cristo, não pode ser reduzida à dimensão espiritual da pessoa humana, mas deve levar em conta a pessoa humana como um todo, considerando todas as dimensões da existência humana. Sendo assim, todos os problemas relacionados à existência humana são de competência da Igreja e objetos da ação evangelizadora.

Voltar