27 de setembro de 2016 – Terça-feira, 26ª semana

Leitura:Jó 3,1-3.11-17.20-23

O livro de Jó foi escrito entre os anos 450 e 350 a.C., no período pós-exílio, mas continua atual, porque em qualquer vida humana pode surgir a pergunta: “Qual o sentido do meu sofrimento?” É castigo por uma conduta má, como afirma a teologia antiga da retribuição? Há sempre uma correspondência entre o que a gente faz e a gente sofre?

O prólogo em prosa (1,1-2,10) apresentou a aposta entre Deus e Satanás:o rico e justo Jó continuaria fiel a Deus, se estivesse privado de seus bens, de sua família e de sua saúde?Então, dentro de poucos dias, seus filhos morreram num furacão, seus bens foram roubados, uma doença terrível o acometeu e sua esposa zombou da piedade dele, porque, apesar de tudo isso, Jó não amaldiçoou Deus, mas disse: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, bendito seja o nome do Senhor” (1,20).

Depois deste prólogo que se baseia numa história popular (cf. a menção de Jó em Ez14,14.20), inicia-se a parte central do livro que não mostram mais um Jô paciente e resignado. São diálogos em forma de poemas,organizados em três ciclos (4-14; 15-21 e 22-27) com discurso de cada um dos amigos Elifaz, Baldad e Sofarque vieram visitar o doente Jó (cf. 2,11-13) e as respostas dele. O cap. 3 faz a abertura, com a lamentação de Jó. Estes diálogos têm como tema a impaciência de Jó e seus questionamentos frente à teologia da retribuição, pois os amigos vêm para convencê-lo de que o sofrimento representa o castigo de Deus. Tanto a lamentação inicial quanto as palavras de Jó tentam desconstruir a imagem que seus amigos apresentam sobre Deus.

Jó abriu a boca e amaldiçoou o seu dia,dizendo:”Maldito o dia em que nascie a noite em que fui concebido (vv. 1-3).

Estamos diante do que podemos chamar de “anticriação”. Depois de sete dias sem dizer uma palavra (2,13), Jó rompe o silêncio, e sua voz soa como um grito da profundeza (cf. Sl 22; 130) revoltando-se contra Deus (no hebraico Eloá, Senhor do dia, da noite e da fecundidade, no v. 4; cf. Gn20,18; 29,31s; 30,22; 1Sm 1,5).

A aposta de Satanás era que Jô amaldiçoaria Deus na cara; em vez disso, Jó amaldiçoa o dia em que nasceu, ou seja, sua existência inteira desde sua raiz temporal, concepção e nascimento, junto com toda criação (vv. 3-10; vv. 4-10 foram omitidos por nossa liturgia). Depois (vv. 11-19) Jó se queixa com a pergunta clássica “por quê?”: é uma fórmula que pode significar protesto, rebelião, como em Ex 17,2s; Nm 11,4-6; 14,3; também pode significar súplica dolorida e confiante, como em muitíssimos salmos. Na terceira parte (vv. 20-26), repetindo a queixa, Jó se dirige a Deus e olha para si.

São duas maldições paralelas, a do dia do nascimento e a da noite da concepção “em que fui concebido”; lit.“foi concebido um varão”. Varão sugere força e nobreza: o herdeiro dinástico ou homem abençoado por Deus.

O profeta perseguido Jeremias já amaldiçoara o dia em que nascera (20,14) e deplorara o fato de sua mãe havê-lo trazido ao mundo (15,10). Várias expressões podem estar inspiradas na última confissão de Jr 20,14-18. Dia e noite, pulso normal da vida humana, se concentram num dia e numa noite; o ritmo conhecido e desejado de luz e escuridão fica absorvido numa treva total, violenta e contínua (cf. o contrário em Zc 14,7; Is 60,19-20; cf. Ap 21,23; 22,5). É a treva da não-existência, vista nostalgicamente a partir de uma existência nas trevas.

Por que não morri desde o ventre materno,ou não expirei ao sair das entranhas?(v. 11).

O desejo da morte sempre é visto como uma anomalia no AT. Um exemplo clássico é o profeta Elias quando fugia da perseguição (1Rs 19,4). Ao pedir antes a morte do que a salvação, Jó demonstra de que a calamidade atingiu profundamente seu espírito.

Jó repetirá em 10,18s: “… ser como se não estivesse existido, levado do ventre para o sepulcro”. A Bíblia do Peregrino (p. 1066) comenta: Na outra extremidade da vida está a morte. Já é impossível abolir o nascimento e desfazer até o começo o tempo, ao menos pode-se invocar e desejar a outra extremidade: chegar à não-existência pela saída da morte. Do novo a morte é vista com nostalgia, a partir da dor; e a nostalgia transforma em valores positivos o que é simples negação: não se distinguem, não trabalham, não sofrem, não há perversos. Seria melhor ler o versículo 16 depois do 12.

Por que me acolheu um regaço e seios uns me amamentaram?Estaria agora deitado e poderia descansar,dormiria e teria repouso,com os reis e ministros do país,que construíram para si sepulcros grandiosos;ou com os nobres, que amontoaram ouro e prata em seus palácios (vv. 12-15).

Jó deseja o repouso; cf. Eclo 6,5: “Não viu o sol e nem o conhece: há mais repouso para ele do que para outro.”

A menção a “reis”,“ministros” (conselheiros) e “nobres” (funcionários)em vv. 14s corresponde à administração persa (cf. Esd 7,28; 8,25). “Que construíram para si sepulcros grandiosos”,lit. “que constroem ruínas para si”. A expressão poderia significar, à luz de Is 58,12 e 61,4, “reconstruir ruínas”. No antigo Oriente, os reis se diziam construtores dos monumentos que restauravam.Mas a expressão “para si” remete antes às construções funerárias de antemão levantadas em lugares desertos. Era este o caso do Egito (as pirâmides e os túmulos no vale dos mortos).

“Ouro e prata em seus palácios”;lit.: “suas casas”, isto é, suas “casas de eternidade” (cf. Ecl 12,5), ou residências funerárias (cf. Sl 49,12). De fato, as escavações arqueológicas (em Ur ou no Egito) revelaram as riquezas acumuladas nos túmulos de reis ou de príncipes (ex. o de Tut-enk-amun era um dos poucos não descobertos por ladrões de túmulos).

Ou, então, enterrado como aborto,eu agora não existiria,como crianças que nem chegaram a ver a luz.Ali acaba o tumulto dos ímpios,ali repousam os que esgotaram as forças (vv. 16-17).

“Ali”, ou seja, no Xeol (cf. Nm 16,33+),“acaba o tumulto dos ímpios”,ou “não mais agitam-se”. O apóstolo Paulo comparou a vocação da sua indignidade como a de um aborto (1Cor 15,8).

O Xeol(grego: hades)é um lugar escuro onde os mortos não têm relação com Deus (cf. Gn 37,35; Nm 16,30-30.33; Dt 32,22; 1Sm 28,12-19; Is14,9-11; 38,18; Ez 32,17-32; Sl 6,6; 30,10; 88,6.11-13; 89,49; 115,17; Ecl3,20; 6,4s; 9,3-6.10). Contudo, o poder do Deus vivo se exerce mesmo nesta habitação desolada (1Sm 2,6; Sb 16,3; Am 9,2). A doutrina das recompensas e das penas de além-túmulo e a da ressurreição (preparadas pela esperança de Sl 16,10s; 49,16; cf. Jó 19,25s), só aparecem depois de Jó, já no fim do Antigo Testamento (Sb 3,4s; 2Mc 7; 12,38; Dn 12,2s).

Por que foi dado à luz um infelize vida àqueles que têm a alma amargurada?(v. 20).

“Foi dado à luz”lit. “concedeu ele a luz”,designa a Deus. As traduções antigas têm: é dada, este passivo pode manifestar a intenção de inocentar a Deus desta infelicidade.

Eles desejam a morte que não veme a buscam mais que um tesouro;eles se alegrariam por um túmuloe gozariam ao receberem sepultura (vv. 21-22).

“Buscam (a morte)”,lit. escavam buscando-a. O reino da morte está escondido debaixo da terra; cava-se uma sepultura como se cava buscando um “tesouro.

Por que, então, foi dado à luz o homem a quem seu próprio caminho está oculto,a quem Deus cercou de todos os lados?” (v. 23).

As primeiras palavras (“por que”) deste v. estão subentendidas no hebraico (cf. v. 20a).  Ao“homem” retoma ao sofredor (v. 20a). “Deus cercou de todos os lados”, cercava com muro (cf. 19,8 e Lm 3,7) ou alusão sarcástica a 1,10.

A Bíblia do Peregrino (p. 1067) comenta: Os dois extremos da vida, os dois acesso ao não-ser, estão nas mãos de Deus, e Deus é responsável por eles. Quando Jó amaldiçoava, tinha presente o nascimento; quando Deus se apresenta à sua consciência, Jó se queixava sem compreender: por que Deus nos confia a vida antes contar conosco?, por que dá vida a quem desejam morte?, a vida é um bem, ou é bem é o que alguém deseja? Das breves frases de resignação, pronunciadas nos capítulos 1 e 2 até aqui, a consciência de Jó avançou em profundidade, e foi a dor quem intensificou a consciência.  

Evangelho: Lc 9,51-56

Nos últimos capítulos,Lc seguiu o roteiro de Mc, mas a partir do evangelho de hoje, de 9,51 até 18,14,Lc se afasta de Mc. Ele apresenta, no quadro literário fornecido por Mc 10,1, uma subida a Jerusalém (9,53.57; 10,1; 13,22.33; 17,11; cf. 2,38). Neste caminho a Jerusalém (em nove capítulos!), ouvimos ensinamentos aos discípulos, parábolas, milagres e controvérsias. A viagem é balizada por referências sem muita preocupação com a geografia (9,52; 17,11; 18,35; 19,1.28). Lc apresenta aí materiais que hauriu de uma coleção igualmente utilizada por Mt (chamada de fonte Q) e de outras tradições que lhe são próprias. Enquanto Mt desmembrou essa coleção para espalhar os fragmentos por todo o evangelho, Lc preferiu reproduzi-la em bloco, precisamente nesta seção 9,51-18,14, para a qual fornece a contribuição principal.

Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém ( v. 51).

Neste versículo começa a parte central do evangelho de Lc, a subida de Jesus para Jerusalém (a capital está 800 metros acima do nível do mar), é o mesmo caminho para a cruz e para o céu. O substantivo grego (analempsis)corresponde ao verbo de “arrebatamento” de Elias (2Rs 2,3.5, solicitado em 1Rs 19,4). O significado é “tomar, levar”(em latim assumire); logicamente se aquele que toma está no alto, no céu, tomar é levantar (cf. 2Rs 2,11; Eclo 48,9). A “assunção” ou o “arrebatamento” de Jesus (cf. 2Rs 2,9-11; Mc 16,19; At 1,2.10-11; 1Tm 3,16) compreende os últimos dias de seu destino de sofrimento e os primeiros dias de seu destino glorioso (paixão, morte, ressurreição e ascensão; cf. o significado do “êxodo” em 9,31). Jo empregará para o mesmo conjunto o termo mais teológico, “glorificar” (Jo 7,39;12,16.23;13,31s); a crucifixão será para ele uma “elevação” (Jo 3,14; 12,32).

Jesus já sabe o que enfrentará na capital (cf. v. 22.44), o início desta viagem é um ato consciente e decidido, “tomou a firme decisão”lit. “endureceu a sua face para…”. Jesus não apresenta moleza, é decidido como o servo sofredor de Deutero-Isaías: “Por isso não me acovardava, por isso endureci o rosto como pedra” (Is 50,7), como a dureza de Jeremias: “coluna de ferro, muralha de bronze” (Jr 1,18), como Ezequiel: “Parti decidido e inflamado” (Ez 2,6).

E enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho, e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus. Mas, os samaritanos não o receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém (vv. 52-53).

A viagem começa solenemente, enviando à frente quem prepare o caminho e alojamento(como João Batista na primeira parte, depois dois discípulos em 19,29p e Pedro e João em 22,8). Logo tropeça em resistência. Desta vez são os antigos rancores dos samaritanos contra os judeus, radicados na conquista do reino do nortepela Assíria (2Rs 17,24-41), rancores esses manifestados no tempo de Esdras quando se opuseram a reconstrução do templo pelos judeus (Esd 4). Os samaritanos tinham a lei de Moisés (Torá, ou seja, Pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia), mas seu templo estava no monte Garizim enão reconheciam o de Jerusalém (cf. Jo 4,20).

Os samaritanos, sempre muito mal dispostos para com os judeus (cf. Jo 4,9), deviam mostrar-se particularmente hostis para com os peregrinos que se dirigiam a Jerusalém. Os judeus evitavam as relações com os samaritanos, a quem odiavam por causa de suas origens bastardas e divergências religiosas (Eclo 50,25-26; Jo 4,9). Assim evitava-se geralmente a travessia de seu território (cf. Mt 10,5).Lc e Jo( 4,1-42) são os únicos a mencionar a passagem de Jesus pelo território cismático (cf. 17,11.16). Logo em seguida, a Igreja primitiva imitará o seu Mestre.Jesus rompe com essas querelas (cf. 10,33-37; 17,16-19). Lc deve ver nisto um prelúdio à missão de Filipe na Samaria (At 8,5-25).

Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?”Jesus, porém, voltou-se e os repreendeu. E partiram para outro povoado(vv. 54-55).

Tiago e João se mostram verdadeiros “filhos do trovão” (Mc 3,17) que querem aplicar o mesmo castigo que Elias infligia a seus adversários (cf. 2Rs 1,10-12). Numerosos manuscritos acrescentam “como fez Elias” e uma resposta de Jesus: “não sabeis de que espírito sois. Pois o Filho do homem não veio para perder a vida dos homens, mas para salvá-la” (cf. 19,10).Por enquanto, nem os samaritanos entendem que Jesus vai a Jerusalém para salvá-los (cf. Jo 4). E os discípulos não imaginam que a Samaria será um dos primeiros lugares que eles evangelizarão ao saírem de Jerusalém (At 1,8; 8,1-25). Mais uma vez, Jesus mostra tolerância à divergência religiosa (cf. vv. 49-50p; evangelho de ontem) e não quer usar de violência nem quando é insultado (cf. 6,27-35; 23,34). Jesus é coerente à sua mensagem; na história, a Igreja nem sempre foi (inquisição coma pena da fogueira, cruzadas em terras de outra religião e etnia etc.).

O site da CNBB comenta: A mentalidade dos homens é bem diferente da mentalidade de Deus e o Evangelho de hoje nos mostra muito bem essa verdade. Deus não abandona o homem ao poder do pecado e da morte, mas vem em seu socorro através do seu próprio Filho que, com sua morte, destrói o pecado e a morte, e conquista para todos nós a vida. Os apóstolos agem de maneira completamente diferente. Diante da resistência do povo da Samaria em receber Jesus, querem que caia fogo do céu e devore a todos. Os homens querem punição e morte, enquanto Deus quer misericórdia e vida.

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