28 de Agosto 2019, Quarta-feira: Ai de vós, mestres da lei e fariseus hipócritas! Vós sois como sepulcros caiados: por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão!

21ª Semana do Tempo Comum
Memória de Santo Agostinho, grande Bispo e Doutor da Igreja

 Leitura: 1Ts 2,9-13

Descrevendo sua ação missionária entre os tessalonicenses, Paulo propõe as atitudes fundamentais de um discípulo missionário, ou seja, agente de pastoral (vv. 1-12, cf. leitura de ontem): coragem de anunciar o Evangelho, mesmo que precise enfrentar fortes oposições de grupos interesseiros; não agir com segundas intenções, à moda de espertalhões que aproveitam de sua função para se promoverem à custa de bajulações; não abusar da própria autoridade, mas ter profundo amor pela comunidade; não colocar o dinheiro como motivação do apostolado.

Paulo recorda sua atividade em Filipos e Tessalônica (cf. At 16,19-40; 17,1-10) com as expressões “vos lembrais”, “bem sabeis”, “sois testemunhas”, numa espécie de amável cumplicidade: embora já o sabem, vou dizer a vocês. Há expressão de raro afeto, ilustrado com comparações sugestivas: como mãe (v. 7), como pai (v. 11).

Irmãos, certamente ainda vos lembrais dos nossos trabalhos e fadigas. Trabalhamos dia e noite, para não sermos pesados a nenhum de vós. Foi assim que anunciamos o evangelho de Deus (v. 9).

Em At 18,3 temos a notícia de que Paulo era fabricante de tendas. Paulo teria direito de receber da comunidade uma recompensa para a sua manutenção, mas, por amor, prefere trabalhar para se manter (1Cor 9,6-18; Mt 10,10, Lc 10,7; 1Tm 5,17s). Com o trabalho de carpinteiro, Jesus dignificou o trabalho (Mc 6,3; cf. Jo 5,17). Na antiguidade, o trabalho manual era visto como coisa de escravos, enquanto os nobres se dedicaram ao ócio; ao escravo foi negado o ócio (daí a palavra “neg-ócio”).

Vós sois testemunhas, e Deus também, de quão santo, justo, irrepreensível foi o nosso proceder para convosco, os fiéis (v. 10).

O apóstolo tem a coragem de invocar a comunidade e até ao próprio Deus como testemunhas de sua retidão.

Bem sabeis que, como um pai a seus filhos, nós exortamos a cada um de vós e encorajamos e insistimos, para que vos comporteis de modo digno de Deus, que vos chama ao seu reino e à sua glória (vv. 11-12).

Paulo descreve seu comportamento com duas comparações complementares, como mãe, como pai. Pai e mãe ocupam lugar privilegiado na educação sapiencial, até o ponto de o mestre se apresentar com o titulo de pai e chamar os discípulos de filhos (Pr 1,6; etc.; Eclo 2,1; 3,1 etc.; cf. 1Jo 2,1 etc.).

Com o tratamento terno e afetuoso da mãe, Paulo já se comparou nos vv. 7s (leitura de ontem; cf. Gl 4,19; Sl 131; Nm 11,12-14); agora se compara “como um pai a seus filhos” na sua educação exigente e solícita (vv. 11s; cf. 1Cor 4,15; Fm 10; Hb 12,5-7; Dt 8,5; etc.). Paulo se vê como pai da comunidade que fundou, na sua evangelização e solicitude pastoral que produzem filhos e filhas para Deus. Não parece conhecer ou levar em conta a advertência de Mt 23,9 que também não impede a Igreja Católica de chamar seus presbíteros de “padres” (pais) e o sumo pontífice de “papa”.

No AT, o título “pai” era usado para os antepassados (cf. Ex 20,5; Jr 31,29s), para um ancestral (Js 19,47; 2Rs 16,2) ou fundador de profissão (Jr 35,5s), como título honorífico (Is 9,5), no tratamento educado (1Sm 24,12) e na metáfora (Jó 38,28); o mestre considera seus alunos de filhos (cf. na leitura sapiencial Pr 1,8.10.15; 2,1 etc.; Eclo 2,1; 3,1 etc.). Poucas vezes, Deus é chamado de Pai no AT (Dt 32,6; Jr 3,4; 31,9; 2Sm 7,14; Is 63,16; 64,7; Ml 2,10), ele tem Israel (Ex 4,22s; Dt 1,31; 8,5; 14,1; 32,19; Is 1,2; Jr 31,9; Os 11,1; Ml 1,6) ou o rei ungido (2Sm 7,14; Sl 2,7) como seu filho.

Por fim, Paulo expressa a regra suprema da seu ministério, da sua pastoral: fazer com que a vida da comunidade seja testemunho da presença do “reino” onde Deus reina com sua “glória”. O chamado (“vos chama”) complementa a escolha (1,4; cf. 1Pd 5,10).

Paulo escreveu poucas vezes sobre o “Reino de Deus” (Rm 14,17; 1Cor 4,20; 6,9s; 2Ts 1,5; Cl 1,13) talvez por ser um termo demais judaico e politizado na época dele (nas vésperas da guerra judaica 66-73 d.C. (cf. Mc 1,15p; Mt 3,2 etc.; cf. At 1,3; 8,12; 14,22; 19,8; 20,25; 28,23.31). O apóstolo dos pagãos prefere anunciar aos gregos e romanos o único Deus e seu Filho Jesus Cristo, crucificado e glorificado, como representante deste reino (1,9s; 1Cor 15,24; Fl 2,5-11; cf. At 17,11; Ap 11,15; 12,10 etc.).

No AT, o termo próprio do reino de Deus só aparece nos escritos tardios (Dn 2,44; 7,13s), mas destacam-se desde cedo as afirmações de que Javé Deus reina, no universo, mais do que os outros reis e para sempre (cf. Ex 15,18; Nm 23,21; Jz 8,23s; 1Sm 8; 12,12s; Sl 22,29; 24,7-10; 29,10; 47; 93,1-2; 95,3; 96,10; 97,1; 98,6; 99,1; 103,19; 145,11-13; Is 52,7 etc.).

Por isso, agradecemos a Deus sem cessar por vós terdes acolhido a pregação da palavra de Deus, não como palavra humana, mas como aquilo que de fato é: Palavra de Deus, que está produzindo efeito em vós que abraçastes a fé (v. 13),

A Palavra de Deus “está produzindo efeito” ou talvez “tornou-se ativa”, pois Deus age por meio de sua palavra naqueles que crêem (cf. 1,8; 2Ts 3,1; Hb 4,12). “Agradecemos a Deus sem cessar”; Paulo retoma a ação de graças de 1,2-6 para expor em concreto a tribulação sofrida. Antes completa ou enriquece a doutrina sobre a palavra do evangelho (1,5). A pregação do evangelho é “palavra humana”, pronunciada por Paulo e seus companheiros; mas é também “palavra de Deus” e como tal, ativa por si e não só pelos recursos humanos de persuasão.

O termo “palavra de Deus” aplica-se no AT sobretudo à palavra profética, normalmente como“palavra de Javé” (oráculo de Yhwh). Nas cartas do apóstolo se refere ao “evangelho” (euanggelion = boa notícia) de Jesus, anunciado oralmente (não excluiu a aplicação à sua versão escrita, a primeira por Mc em 70 d.C. e depois seguiram os outros evangelistas) e descreve a “tradição apostólica” em que a palavra é primeiramente “recebida” (4,1; 2Ts 3,6; 1Cor 11,23; 15,13; Gl 1,9; Fl 4,9; Cl 2,6), isto é “ouvida” (Rm 10,17; Ef 1,13; cf. At 15,7 etc.). Depois penetrando no coração (cf. Rm 10,8-10), é “acolhida” (1,6; 2,13; 2Ts 2,10; 2Cor 11,4; cf. Mc 4,20; At 8,14 etc.); o ouvinte reconhece que Deus fala por meio de seu enviado (4,1s; 2Cor 3,5; 13,3).

Evangelho: Mt 23,27-32

No discurso em Mt 23 sobre os fariseus e mestres da lei, Jesus critica e condena os líderes religiosos, os doutores da lei e os fariseus. Na época de Mt não havia mais os sacerdotes saduceus, porque sua área de atuação, o templo de Jerusalém, foi destruído em 70. d.C. Os fariseus ficaram como único partido e liderança do judaísmo.

Mt é duro na sua crítica: Os fariseus destacam a lei e sustentam um sistema formalista e hipócrita: não consideram o Reino de Deus como dom nem respeitam a liberdade dos filhos de Deus. Tal sistema impede de entrar no Reino (v. 13), pois não leva à conversão, mas à perversão e destrói o verdadeiro espírito das Escrituras, chegando a matar até mesmo os enviados de Deus (vv. 34-35). Jesus mostra que a religião formalista e jurídica não é meio de salvação, mas produz uma prática escravizadora; portanto, é frontalmente oposta àquela que deve ser vivida por qualquer comunidade cristã. Ouvimos hoje as duas últimas e mais graves de sete lamentações, introduzidas por “ai de vós” (cf. evangelhos de ontem e antes de ontem).

Ai de vós, mestres da lei e fariseus hipócritas! Vós sois como sepulcros caiados: por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda podridão! Assim também vós: por fora, pareceis justos diante dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e injustiça (vv. 27-28).

No sexto “ai”, retoma-se a contraste de “dentro” e “fora” (cf. vv. 25s). Sem mencionar certa ação dos fariseus, eles são comparados com sepulcros caiados. Os judeus da época costumavam enfaixar e enterrar o cadáver num túmulo cavado na rocha ou numa caverna acessíveis por fora. Depois de um ano, quando restava só o esqueleto, os ossos foram retirados e colocados em cestas ou sacolas, enterrados de novo nos campos ou em cavernas chamadas “casa de ossos”. Para serem visíveis também na noite, estes lugares foram pintados com cal e cada ano, depois da chuva, renovava-se a pintura, porque cadáveres e sepulcros produziam por contato a máxima contaminação e deviam ser evitados (Lv 21,11; Nm 6,6; 19,11-21; Eclo 34,25). Por outro lado, os túmulos eram ornamentados para honra dos defuntos. A comparação dos hipócritas com o mundo da morte é violenta, quase macabra. Pode chegar à conclusão que eram extremamente abomináveis e podres e o contato com estas pessoas devia ser evitado para não se contaminar com eles.

Como a cor branca é só uma pintura que esconde ossos mortos, assim a justiça dos fariseus é só aparência por fora; os doutores da lei se preocupam para parecerem justos e corretos, mas por dentro estão cheios de “hipocrisia e iniquidade (injustiça)”; Mt emprega estas duas palavras com preferência (cf. 7,23; 13,41). Por outro lado, os rabinos fariseus consideravam como iniquidade (“fora da lei”) a interpretação da lei por Jesus no sermão da montanha.

Aí de vós, mestres da lei e fariseus hipócritas! Vós construís sepulcros para os profetas e enfeitais os túmulos dos justos, e dizeis: ‘Se tivéssemos vivido no tempo de nossos pais, não teríamos sido cúmplices da morte dos profetas’. Com isso, confessais que sois filhos daqueles que mataram os profetas (vv. 29-31).

O costume de erigir mausoléus ou monumentos funerários é documentado (de Raquel: Gn 35,20; de Sobna: Is 22,16; do poderoso: Jó 21,32). O último “ai” se refere à veneração aos profetas e justos. Para este fim, os fariseus e os mestres lei construíam túmulos e sepulcros para eles. O que está errado nisso? Nada, se estes monumentos documentassem uma mudança de pensamento, ou seja, a conversão que as gerações negaram quando ouviram as palavras dos antigos profetas. Mas a fala dos fariseus e mestres da lei demonstra que são filhos dos pais que mataram os profetas. Também eles se negam a converter e matarão de modo violenta os “profetas, sábios e escribas” (cf. Jr 18,18) que Jesus enviará a eles (cf. vv. 34-35).

Completai, pois, a medida de vossos pais! (v. 32).

Esta frase pode ser uma alusão irônica a morte próxima do próprio Jesus. Os mestres da lei completam a medida (cf. Gn 15,16), matando o último e maior profeta (Dt 18,15), o Filho de Deus, Jesus (cf. 21,38s).

O discurso de Mt 23 com os sete “ais” é o contraste negativo à sermão da montanha que começou com as bem-aventuranças. Todo este discurso de Mt 23 reflete a situação da comunidade de Mt em 80 d.C.: depois da guerra de 66-73 e da destruição do templo pelos romanos restaram apenas os fariseus como lideres judaicos e começaram impor sua interpretação da lei como pensamento único perseguindo os cristãos (no ano 90 os excluíram, excomungavam da sinagoga; cf. Jo 9,22, 16,2).

Hoje a situação é diferente. Depois de séculos de perseguições que os judeus sofreram por parte dos cristãos, cabe a Igreja fazer uma autocrítica e pedir desculpas a “nossos irmãos mais velhos” na fé (como fez João Paulo II em 2000). Hoje a relação entre cristãos e judeus é de respeito e certa amizade. Jesus dirigiu esse discurso aos próprios discípulos (23,1) para eles não repetirem os erros de uma religião praticada pelos fariseus que afasta de Deus. Então, hoje somos nós os convidados à reflexão e conversão.

O site da CNBB comenta: Devemos sempre estar alertas em relação à nossa vivência da fé porque, se não nos cuidarmos, podemos criar um abismo muito grande entre o que falamos e o que vivemos ou, pior ainda, podemos viver uma religiosidade de aparências, uma religiosidade ritual em detrimento de uma real vivência de fé, de uma resposta pessoal aos apelos que nos são feitos para que assumamos os compromissos do nosso batismo a partir de uma vida verdadeiramente profética que denuncie os contra-valores do mundo e anuncie a verdade dos valores que foram pregados por Jesus Cristo. Deste modo, a nossa vida religiosa não será simplesmente ritual, mas também compromisso.

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