28 de agosto de 2016 – 22º Domingo Ano C

1ª Leitura: Eclo 3,19-21.30-31 (grego 17-18.20.28-29)

A primeira leitura foi escolhida em vista da sentença no evangelho de hoje: “Quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (Lc 14,11; 18,14).

O livro de Eclesiástico não faz parte da Bíblia dos protestantes e nem dos judeus, apesar de ser escrito inicialmente em hebraico, por Jesus Ben Sirá (50,27; 51,30). Seu neto o traduziu para o grego em 132 a.C. (cf. prólogo). S. Jerônimo (séc. IV) o conhecia ainda na língua original. Depois foi transmitido nas versões grega, latina e siríaca. Só entre 1896 e 1964 encontraram-se boas partes do texto hebraico (Cairo, Qumran, Massada). As diferenças na contagem dos versículos devem-se a estas versões. O nome “Eclesiástico” provém do uso oficial na Igreja (Eclésia em grego e latim), é conhecido também por “Sirácida”.

Ben Sirá é o último representante canônico da sabedoria judaica na Palestina, ligado aos assideus, “piedosos”, (1Mc 2,42) apegados a lei. Sua teologia se aproxima a dos sacerdotes, dos essênios e dos fariseus. Muitos temas correspondem ao que encontramos em Jó e Ecl, e sente-se forte influência de Pr.

Na cap. 3, depois de explicar os deveres para com os pais, passa as relações com os outros: a humildade (3,19-31a) e a caridade (3,31b-4,11). As duas virtudes humanas são também virtudes religiosas, realização do respeito devido a Deus.

Filho, realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais do que um homem generoso (v. 19).

Como de costume no ensino da sabedoria, o mestre chama seus discípulos de filhos (2,1; 3,1.14.19; 4,1 etc.; cf. Pr 1,1,8.10.15; 2,1 etc.).

Em 1,34 (grego v. 27) falava da humildade (hebraico) ou da “mansidão” (grego) diante de Deus. Aqui, da humildade diante de outros homens. O versículo introduz o tema: a atitude humilde, que sabe manter-se à altura dos outros, é mais apreciável que o costume de “dar presentes” (“homem generoso”, lit. “doador de presentes” hebr.; “agradável“ grego), se a este falta a franqueza. Um presente feito com soberba pode ferir: 18,15-18.

Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade, e assim encontrarás graça diante do Senhor. Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios. Pois grande é o poder do Senhor, mas ele é glorificado pelos humildes (vv. 20-21).

O v. 20b encontra-se apenas em alguns manuscritos gregos (Grego 248 e sir): “Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que ele revela seus mistérios” (cf. o ensinamento de Jesus em Mt 11,25p.29).

Sem ele, temos uma dupla (vv. 20a.21) que se refere a aprovação divina: não simples bênçãos, mas a terna compaixão, misericórdia divina (traduzida aqui por “graça” em v. 20 e “poder” no v. 21 grego). O “misericordioso” é um dos títulos do Senhor (Sl 103,8.17; 145,8; Ex 34,6).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1246) comenta: Assim se sublinha a condescendência de Deus, que se coloca ao alcance dos mais humildes. Mas o hebr. “pois grande é a misericórdia de Deus, aos humildes ele revela seus segredos”, exprime uma ideia mais frequente no AT: Deus cumula de graça aquele que se humilha (Pr 3,34; Sl 25,14; cf. Mt 11,25; Lc 1,52).

Para o mal do orgulhoso não existe remédio, pois uma planta de pecado está enraizada nele, e ele não compreende. O homem inteligente reflete sobre as palavras dos sábios, e com ouvido atento deseja a sabedoria (vv. 30-31).

O orgulhoso ou cínico é um tipo humano presente em Provérbios (Pr 3,34; 21,24), também está em Sl 1,1. O orgulhoso se acha mais do que os outros, o cínico despreza e zomba os valores dos outros, enquanto o homem inteligente (sábio ou douto) é figura contraposta que tem apreço pelos colegas e deseja aprender sempre mais.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 17,21) comenta: O orgulho é o mal fundamental, que se manifesta pela obstinação do coração, cf. Ex 7,14; 8,28. Depois de ter-se enraizado, é incurável.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 858) comenta nossa leitura alertando contra o abuso do discurso: Deus cumula de graça os que se humilham (cf. Pr 3,34; Sl 25,14; 1Sm 2,7; Mt 11,25; Lc 1,52). Esse discurso legitima e justifica a dominação e acomodação na sociedade. A advertência contra o orgulho demonstra um dos problemas que a sabedoria judaica estava enfrentando em meio ao helenismo, que apregoava a supremacia do saber especulativo (cf. v. 24).

2ª Leitura: Hb 12,18-19.22-24a

Nesta leitura, o autor anônimo de Hb finaliza seu sermão expondo outra vez a oposição entre a antiga e a nova aliança (cf. 8,6-13; cf. Jr 31,31-34; 2Cor 3), entre a experiência do povo antigo na monte Sinai e a experiência nova dos cristãos.

Vós não vos aproximastes de uma realidade palpável: “fogo ardente e escuridão, trevas e tempestade, som da trombeta e voz poderosa”, que os ouvintes suplicaram não continuasse” (vv. 18-19).

O fogo é elemento clássico da divindade (vv. 18.29; Gn 15,17-18; Dt 4,24; Is 30,27.33; Sl 18,9; Sf 1,18; 2,2) e se junta aqui com as trevas (cf. Ex 20,21; Jl 2,2; f 1,15; Sl 1,8,10). O autor insiste na natureza terrestre dos fenômenos, “realidade palpável” no Sinai (Ex 19,16-19; 20,18-21; Dt 4,11). Na ciência das religiões temos o fenômeno do sagrado, que se caracteriza por dois aspectos: o fascinante e o terrificante (R. Otto). No Sinai, era mais terrificante; até Moisés teve medo (v. 21 omitido pela nossa liturgia; cf. Dt 9,19).

Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste; da reunião festiva de milhões de anjos; da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus; de Deus, o Juiz de todos; dos espíritos dos justos, que chegaram à perfeição; de Jesus, mediador da nova aliança (vv. 22-24a).

Na iniciação cristã, porém, tudo é serene, celeste e espiritual (cf. Ef 2,6), mesmo passando pela cruz (aspecto terrificante). A “aproximação” de Deus (4,16; 10,22) não se realiza mais numa teofania ameaçadora como no monte Sinai (vv. 18-21), mas numa cidade construída por Deus (v. 22), aquela à qual os ancestrais aspiravam (Abraão e Sara em 11,11.16), a “Jerusalém celeste” (Ap 21,2.10-27). A cidade de Davi era sua prefiguração (Sl 48,9; 87,1.5; Is 28,16; 54,11) e o “monte Sião” onde foi construído o templo prefigura o santuário celeste (cf. 8,2; 9,11.24; Ap 14,1), lugar da “reunião festiva de milhões de anjos” (Dn 7,10) e da “assembleia dos primogênitos” (cf. Nm 3,12-13; Tg 1,18), “cujos nomes estão escritos nos céus “ (v. 23). Os livros do céu, onde estão escritos os nomes dos eleitos, são uma imagem clássica no gênero apocalíptico (cf. Dn 12,1; Ap 3,5; 13,8; 17,8; 20,12.15; 21,27).

Jesus é o “mediador da nova aliança” (cf. 7,22; 9,15; Lc 22,20; 2Cor 3,6), e da “aspersão do sangue” (cf. 9,19-20; Ex 24,8), “mais eloquente que o de Abel” (v. 24b omitido pela nossa liturgia; cf. 11,4; Gn 4,10). Daí a advertência seguinte: “Atenção: não rejeiteis aquele que vos fala” (v. 25). O sangue da nova aliança (cf. 1Cor 11,25p) fala com maior autoridade que o de Abel e o do Sinai (Ex 24,1-8), quem profana este sangue e rejeita a palavra de Jesus arca com uma responsabilidade mais grave (cf. 10,28s).

O Deus do AT se apresenta em aspectos fascinantes e também terrificantes, o Deus do NT é o Deus do amor e da graça. Se ele nos considera “amigos” e “filhos”, quanto mais é a responsabilidade nossa (cf. o final do sermão em vv. 25-29; Rm 5,5-9; 8,14-17; Jo 1,17; 1Jo 4,8.16-18,15,12-15). O cap. 13 de Hb contém ainda umas recomendações e saudações, motivo pelo qual este sermão foi chamada uma “carta”.

 

Evangelho: Lc 14,1.7-14

No cap. 14, Lc junta quatro cenas que têm a ver com banquete, ou convites à refeição, numa espécie de simpósio ao estilo grego (cf. 5,29a; cf. no AT, as instruções sobre banquetes e convidados em Eclo 31,21-32,13). Como na multiplicação dos pães (9,10-17p), nesse banquete se prefigura a Eucaristia e se anuncia o banquete celeste.

Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de um dos chefes dos fariseus. E eles o observavam (v. 1).

Em Lc, Jesus é convidado várias vezes por fariseus (7,36; 11,37), aqui “num dia de sábado”. A primeira frase do evangelho de hoje introduz a cura de um hidrópico (vv. 2-6, omitidos pela liturgia de hoje), na qual Jesus mostrou mais uma vez que a vida (cura) vale mais do que uma regra no sábado (não trabalhar, cf. 6,6-11p; 13,10-17).

Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares. Então contou-lhes uma parábola: (v. 7).

Aqui “parábola” tem seu sentido bíblico de sentença de sabedoria, com em Mc 7,17.

“Escolhiam os primeiros lugares”, lit. “leitos”. É o que Jesus critica nos escribas em 20,46. Nas refeições solenes da época, não se sentava à mesa; mas os convidados se estenderam sobre os leitos, sofás no estilo greco-romano (11,37; 12,37; 13,29; 14,7-10; 17,7; 20,46; 22,14; 24,30).

”Quando tu fores convidado para uma festa de casamento, não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu, e o dono da casa, que convidou os dois, venha te dizer: ‘Dá o lugar a ele’. Então tu ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar. Mas, quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar. Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: ‘Amigo, vem mais para cima’. E isto vai ser uma honra para ti diante de todos os convidados” (vv. 8-10).

Ao invés de ser um momento de partilha e confraternização, a ceia a qual Jesus foi convidado, era mais um meio para marcar diferenças sociais e discriminar as pessoas consideradas menos importantes. A Bíblia do Peregrino (p. 2505) comenta: Num banquete de casamento, o protocolo designa rigorosamente os lugares. A parábola fala de consequência, não de finalidade. Pois, se alguém se dirige ao último lugar para provocar a honra de ser chamado ao primeiro, está incorrendo na mesma vaidade, inclusive mais refinada: “É melhor ouvir: suba para cá do que ser humilhado diante de um nobre” (Pr 25,6-7).

A Tradução Ecumênica (p. 2009) comenta: À primeira vista, Jesus nos dá nos vv. 8-10 uma lição de habilidade social, comparável a Pr 25,6-7. Mas o seu conselho termina no v. 11 com uma lição de humildade que se opõe às preocupações hierárquicas do mundo judaico (cf. Qumran).

Porque quem se eleva, será humilhado e quem se humilha, será elevado” (v. 11).

Trata-se de um aforismo (sentença breve e conceituosa, cf. Pr 15,33: “À frente da glória caminha a humildade”) de valor geral, que pode desprender-se do contexto (cf. Ez 17,24; 21,34; cf. o Magnificat em Lc 1,51-53). Exemplo máximo é o próprio Jesus que se fez servo (Fl 2,6-11; Jo 13). Aqui condena a segurança orgulhosa dos fariseus (cf. 16,15) e será repetida em 18,14 (parábola do fariseu e do publicano no templo).

Em disse também à quem o tinha convidado: “Quando deres um almoço ou um jantar, não convides teus amigos nem teus irmãos nem teus parentes nem teus vizinhos ricos. Pois estes poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa (v. 12).

Sobre retribuição ou generosidade desinteressada, Jesus já falou no sermão da planície em 6,32-33 (cf. Mt 5,46s e a “recompensa” em Mt 6). Os convites mútuos, como costume social, criam e afiançam um círculo de bem-estar, do qual são excluídos (ou se excluem) os mais necessitados.

Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos. Então serás feliz! Porque eles não te podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos” (vv. 13-14).

A generosidade para com os pobres é motivo tradicional (Is 58,7-12; Sl 112,9; Eclo 7,32-33). A novidade está no modelo de convidados (todos os enumerados são pobres e excluídos) e na recompensa escatológica (cf. o reino de Deus em v. 15; 6,20). A “recompensa na ressurreição dos justos” (cf. Dn 12,2s; 2Mc 7) é a glorificação a exemplo e pelo dom de Jesus Cristo (no dia da sua vinda; cf. 17,22-37).

A Bíblia do Peregrino (p. 2506) comenta: A caridade que Jesus prega e pratica rompe esse círculo de convites mútuos a favor dos indigentes e também em proveito de quem é caridoso. O convite interesseiro atinge seu pagamento neste mundo e nesta vida. A caridade desinteressada tem pagamento transcendente.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2009) comenta: Apoiando-se neste texto e em 20,35, vários pensam que Lc não admitia ressurreição para os pecadores (este conceito se encontra em certos meios do judaísmo de então). Mas Lc anuncia em At 24,15 uma ressurreição dos justos e dos pecadores. As suas expressões aqui e em 20,35 explicam-se pelo fato de que só os justos chegarão à verdadeira vida.

Segundo 2Rs 5,8 (versão grega), os cegos e os aleijados não podiam entrar no Templo (mas mendigavam na porta, cf. At 3,2; Jo 8,59-9,1; cf. Lc 19,35p). A comunidade de Qumran não aceitava aleijados e surdos no meio dela. Jesus, porém, dá preferência a eles no reino de Deus. A nossa sociedade atual ainda está no começo de dar preferência a eles (ex. assentos no ônibus, fila preferencial etc.). O que a comunidade cristã está fazendo para incluí-los mais na vida da Igreja e na Eucaristia?

O site da CNBB comenta:

O mundo em que vivemos é marcado pela concorrência, pela luta constante no sentido de superar as outras pessoas. É sempre uma luta de um contra os outros para vencer, estar por cima, e, por causa dessa concorrência, nunca sobra lugar para a amizade, o amor e a fraternidade. Jesus nos mostra que entre nós, que somos seus discípulos, não deve ser assim. Devemos buscar a promoção das pessoas, valorizar aqueles que estão ao nosso lado, a fim de que, promovendo as pessoas, elas também nos promovam, de modo que temos o crescimento de todos e não apenas de alguns e vivamos como irmãos, filhos do mesmo Pai que está nos céus, e não como inimigos em uma batalha constante.

O nosso relacionamento com as pessoas não pode ter como ponto de partida o interesse ou a retribuição, mas a gratuidade. Afinal de contas, Deus nos ama gratuitamente e nos concede tudo o que somos e temos sem nada exigir em troca. Mas o amor de Deus para conosco vai além da gratuidade: ele nos retribui por tudo o que fazemos gratuitamente em favor dos nossos irmãos e irmãs. Vivamos a gratuidade para que o próprio Deus seja a nossa eterna recompensa por tudo o que fizermos em favor dos sofridos e marginalizados deste mundo, que não têm ninguém por si e que são rejeitados em todos os ambientes, por não poderem retribuir de acordo com os critérios do mundo.

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