28 de Dezembro de 2020, Segunda–feira – Festa dos Santos Inocentes, Mártires: Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito!

Festa do Santos Inocentes, Mártires

Leitura: 1Jo 1,5-2,2

A Igreja celebra hoje o martírio dos Santos Inocentes, os meninos da idade de até dois anos que Herodes mandou matar em Belém. O rei imposto por Roma esperava que entre estes menino se encontraria o messias que havia nascido lá conforme a profecia de Mq 5,1-4 (cf. Mt 2,1-8 e o evangelho de hoje). Apesar desta data especial, nossa liturgia apresenta a continuação da primeira carta de João, iniciada ontem, dia 27, que comemorou o apóstolo João, filho de Zebedeu. Este João foi identificado pela tradição com o autor anônimo do quarto evangelho e de três cartas do mesmo estilo, porém, o evangelho apresenta como autor apenas um “discípulo amado” que ficou no anonimato (Jo 13,23; 19,25; 20,2; 21,7.20-24; sobre a identificação e sua contestação, cf. comentário de ontem).

No início da carta, o autor anônimo da carta (e do Evangelho) de Jo apresentou a (Palavra da) Vida identificando-a com o Filho (cf. 1,1-3).

A mensagem, que ouvimos de Jesus Cristo e vos anunciamos, é esta: Deus é luz e nele não há trevas (1,5).

O verbo “anunciamos” pode ser traduzido também por “desvendamos” (cf. Is 40,21; 42,9; Dn 2,2.4.7; 5,12.15). Nos vv. 5-7, o autor começa a desenvolver seu pensamento por oposições radicais (dualismo), com o símbolo clássico de luz e trevas, corrente em muitas culturas e no AT, e no NT concretamente referido a Jesus como portador da verdade no quarto evangelho (Jo 1,4-5; 3,19,21; 8,12 etc.). Aqui se aplica ao Pai, “nele não há trevas” (cf. Tg 1,17; Sl 36,10, e por contraste Is 45,7; Eclo 17,30-32).

Se dissermos que estamos em comunhão com ele, mas andamos nas trevas, estamos mentindo e não nos guiamos pela verdade. Mas, se andamos na luz, como ele está na luz, então estamos em comunhão uns com os outros, e o sangue de seu Filho Jesus nos purifica de todo pecado (1,6-7).

O símbolo de luz e trevas se aplica a conduta humana com suas consequências (cf. Is 59,9s). Deus é a fonte da revelação e por isso mesmo de toda santidade. Enquanto o misticismo pagão sonhava em aproximar-se do reino da luz pela iluminação interior, pelo êxtase ou por uma iniciação no ritual, Jo deduz do fato de Deus ser isento de trevas, a necessidade para o cristão de “andar na luz” e não “andar nas trevas” (cf. Jo 8,12; cf. a lei da santidade em Lv 19,2: “Sede santos porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”).

Também começa aqui o procedimento estilístico da oração condicional: “Se dissermos…”, muito frequente na carta (cf. 1,6.8.9.10; 2,1.4 etc.); cada um pode exprimir as afirmações dos adversários cuja doutrina gnóstica (salvação pelo conhecimento) é denunciada como ilusão. Nem sempre significa uma condição para obter algo, mas serve para um enunciado hipotético que de algum modo se qualifica: “se dizendo” pode indicar consequência, mais que condição.

Reconhece-se a união com Deus (cf. 1,3), que é luz (1,5) e amor (4,4.16), pela fé e pelo amor fraterno ( 2,10-11; 3,10,17,23; 4,8.16). Note-se o paralelismo “estamos em comunhão com ele (v. 6) e “estamos em comunhão uns com os outros” (v. 7). Para Jo, não há comunhão com Deus sem comunhão com nossos irmãos. O “sangue” (retorna no final da carta em 5,6.8; cf. 2,2) do Filho “nos purifica” (cf. Hb 9,14,22).

“Não nos guiamos pela verdade”, lit. “não praticamos a verdade” (v. 6). No AT, “fazer a verdade” designa o comportamento conforme a lei. Para Jo, a verdade é a Palavra de Deus (cf. vv. 8-10) anunciada por Jesus. Em Jo 3,21, fazer a verdade descreve a caminhada rumo à fé. Aqui na carta, inclui a conversão sempre renovada que se exprime na confissão dos pecados (vv. 8-10).

Se dissermos que não temos pecado, estamo-nos enganando a nós mesmos, e a verdade não está dentro de nós. Se reconhecermos nossos pecados, então Deus se mostra fiel e justo, para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda culpa. Se dissermos que nunca pecamos, fazemos dele um mentiroso e sua palavra não está dentro de nós (1,8-10).

Os vv. 8-10, unidos ao v. 6, são um apelo à sinceridade radical, diante do autoengano e do “fazer dele um mentiroso” (cf. 5,10). Pois quem nega seu pecado, não pode receber a purificação pelo sangue de Jesus; quem o confessa, a recebe. Na Igreja primitiva, a confissão dos pecados significa geralmente uma declaração pública. Sendo tão importante a confissão do pecado, basta recordar textos como Pr 20,9: “Quem se atreverá a dizer… estou limpo de pecado?” (Sl 32,3-5; 1Rs 8,46).

“Deus se mostra fiel e justo”, é fiel no cumprimento das suas promessas; sendo justo (inocente, cf. 2,1) pode perdoar os pecados em seu amor (cf. 2,29-3,1) e purificar de “toda culpa”, lit. “toda injustiça” (cf. 3,4). No AT, a injustiça designa hostilidade contra Deus que leva a todos os outros pecados. No NT, esta oposição à verdade, que leva à incredulidade (Rm 1,18; 2,8; 1Cor 13,6; 2Tm 2,18s), caracteriza o fim dos tempos (2Ts 2,10-12). Se confessarmos, Deus nos perdoará as faltas, e muito mais, purificar-nos-á do que é sua raiz, a iniquidade (injustiça).

O autoengano e o “fazer dele um mentiroso” pode ser uma alusão aos que se diziam espirituais (pneumáticos) e se diferenciavam dos outros considerados inferiores (psíquicos; cf. 1Cor 15,44; Jd 19), enquanto Deus, na Escritura, nos declara a todos pecadores (cf. Rm 3,9-20 citando Sl 14,1-3; 5,10; 140,4; 10,7; Is 59,7s; Sl 36,2). João se refere aqui a falhas passageiras, uma vez que a comunhão com Deus que suprimiu o pecado (2,2; 3,5), exige por si mesma, uma vida santa e sem pecado (3,3.6.9; 5,18).

Meus filhinhos, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo. Ele é a vítima de expiação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro (2,1-2).

“Filhinhos” é expressão afetuosa do pastor que exorta com solicitude seus fiéis na fé (vv. 12.18.28 etc.). O eixo é a oposição pecar/cumprir seus mandamentos. Em torno do eixo situam-se duas realidades em posição assimétrica. Ao cumprimento se associam o “conhecimento” e o “amor” de Deus. Ao pecado são concedidos perdão e “expiação” pela mediação de Jesus Cristo. Agora “o Justo” é Jesus (em 1,9 era Deus) por sua obra de justificação dos pecadores, em plena fidelidade ao desígnio de Deus (cf. Lc 23,47; At 3,14; 7,52; 22,14; Mt 27,29,19; 1Pd 3,18).

Jesus é paracletos, “advogado, defensor, consolador” (cf. Lc 2,25; 21,14s; 23,24; esse título é dado ao Espírito Santo em Jo 14,16.26,15,26; 16,7) intercedendo pelos pecadores diante de Deus. Ao dizer “do Pai” sem possessivo, considera-o de Jesus e nosso. Jesus é a “vítima de expiação pelos nossos pecados” (4,10; cf. Jo 1,29 “Cordeiro”; Rm 3,25; Ap 5,9s). Este termo vem do ritual sacrifical do AT (cf. Ex 29,36s; etc.) e evoca o sacrifício voluntário de Jesus na cruz. No Dia da Expiação (Yom kippur, hoje o feriado maior dos judeus), o propiciatório (a tampa da arca da aliança, cf. 25,17) era aspergido com sangue animal (Lv 16,15). O sangue de Cristo (1,7; 5,6.8) cumpriu na realidade a purificação do pecado que este rito só pode significar (cf. o sangue da aliança em Mt 26,28; Ex 24,8).

 

Evangelho: Mt 2,13-18

O evangelho de hoje pressupõe o nos apresenta o massacre dos Santos Inocentes, os meninos da idade de até dois anos que o rei usurpador Herodes mandou matar em Belém na tentativa de atingir o messias (o rei ungido, prometido e legítimo) que havia nascido neste prazo como disseram os magos visitantes. Sobre o lugar exato (Belém), Herodes só sabia através da consulta da Escritura pelos escribas, que encontraram a profecia de Mq 5,1-4 (Mt 2,1-8). Guiados pela estrela, os magos chegaram à casa onde a Sagrada Família estava (em Mt, ela morava em Belém, só em v. 23 se muda a Nazaré).

Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”. José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (vv. 13-14).

Os magos partiram por outro caminho, porque foram avisados em sonho de que não retornassem a Herodes que queria saber o lugar exato onde se encontrava o menino (cf. vv. 8-12).

José continua em seu papel de confidente sofrido e eficiente: é ele quem enfrenta os problemas domésticos e transcendentais, e os resolve, executando ordens divinas em sonho (cf. o patriarca José no Egito em Gn 37-50) transmitidas pelo “Anjo do Senhor” (cf. 1,20; 2,13.19.22). Relatos parecidos se encontram nos sonhos de Abimelec (Gn 20,3-7), de Labão (Gn 31,24) e mais particularmente de Jacó na noite de sua partida para Egito (Gn 46,2-4); ai se encontra também o esquema comando-execução. Em sonhos são recebidas as diretrizes de Deus conduzindo seu povo (cf. o mesmo conceito em At 16,9s; 18,9-11; 23,11 encorajando a Paulo).

A fuga é descrita semelhante à de Jacó (Gn 27,43-45), de Ló (Gn 19,15), de Moisés (Ex 2,15), e sobretudo de Jeroboão ao Egito (perseguido pelo rei Salomão, 1Rs 11,40).

Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu Filho” (v. 15).

Mt traduz aqui o texto hebraico de Oséias (11,1) e o adapta oportunamente, sugerindo que Jesus está refazendo concretamente a sorte histórica do seu povo (veja-se também Nm 27,8). Oséias se referiu ao êxodo (cf. Os 12,14) e apresentou Israel como menino que o Senhor chama “meu filho”.

A aplicação a Jesus confere ao título outra dimensão. Israel, o “filho” do texto profético, era pois, uma figura do Messias. Essa narrativa tem um paralelo anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas: segundo estas, quando o nascimento do menino foi anunciado, ou por meio de visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as crianças recém-nascidas. Pode-se comparar com a sorte de Moisés: salvo da morte dos meninos recém-nascidos (Ex 2,1-9), perseguido para ser morto (Ex 2,15), em marcha com a família (Ex 4,20). Egito foi também tradicional lugar de refúgio e asilo (1Rs 11,40; Jr 43).

Quando Herodes percebeu que os magos o haviam enganado, ficou muito furioso. Mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o território vizinho, de dois anos para baixo, exatamente conforme o tempo indicado pelos magos (v. 16).

Não temos registros fora da Bíblia que falam sobre a matança destas crianças em Belém. Mas outras fontes falam da suspeita doentia e da crueldade impiedosa de Herodes, inclusive contra a sua própria família. A tradição cristã, talvez já anterior de Mt, apresenta um modelo definitivo de violência contra vítimas inocentes, por ambição de poder. A nossa tradição litúrgica captou e salientou isso ao chamar os meninos de “inocentes”. O episódio refaz em nova chave a matança dos meninos no Egito (Ex 1,15-22). Sobre o assanhamento contra crianças pode-se ver 2Rs 8,12; Is 13,16.18; Os 14,1, Sl 137,8s. A idade, dita pelos magos a Herodes, se refere ao aparecimento da estrela (v. 7). Menores de dois anos equivalem a lactantes.

Então se cumpriu o que foi dito pelo profeta Jeremias: “Ouviu-se um grito em Ramá, choro e grande lamento: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles não existem mais” (vv. 17-18).

A citação de Jr 31,15 parece referir-se, em seu contexto original, à tribo de Benjamin como representante do reino do Norte. No sentido primitivo do texto, trata-se dos homens de Efraim, Manassés e Benjamim, chacinados ou exilados pelos assírios, os quais Raquel, a sua avó, chora. Ramá era lugar de reunião dos deportados que partiram para o exílio (Jr 40,1). A aplicação feita aqui por Mt poderia ter sido surgida por uma tradição que localizava o túmulo de Raquel no território de Belém (Gn 35,19s; cf. 1Sm 10,2; Ramá e Belém eram também chamadas de Éfrata, cf. Mq 5,1).

O narrador adapta livremente a citação, fixando-se no pranto da matriarca. O evangelista procura pontuar cada episódio da vida de Jesus com uma citação do AT como predição ou prefiguração (cf. 1,23; 2,18.23 etc.).

A continuação da profecia de Jeremias dá esperança: “Reprime o teu pranto e as lágrimas de teus olhos! Porque existe uma recompensa para tua dor – oráculo do Senhor – eles voltarão da terra inimiga. Há uma esperança para teu futuro: – oráculo do Senhor – teus filhos voltarão para seu território” (Jr 31,16-17). Aplicando este oráculo a Jesus, podemos dizer: Jesus voltou com sua família para Israel (2,19-23). Os meninos massacrados não voltaram, mas foram os primeiros a entrar no reino de Deus que Jesus veio inaugurar (4,17p) e onde só existe alegria (cf. Ap 21,3s; Mt 5,3-12p). “Quem é o maior no reino de Deus? Chamou então uma criança… “ (18,1-4.10).

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