28 de Junho de 2020, Festa de São Pedro e São Paulo: Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la (v. 18).

Festa de São Pedro e São Paulo (29 de junho ou domingo próximo)

Neste dia da festa dos dois apóstolos (no Brasil, transferida para o domingo próximo), a liturgia nos apresenta uma leitura dos Atos dos Apóstolos (a prisão de Pedro e sua libertação) e outra da carta de Paulo (seu “testamento” na prisão) e no evangelho, o primado de Pedro.

1ª Leitura: At 12,1-11

A primeira perseguição dos cristãos em Jerusalém atingiu só os helenistas do grupo de Estêvão (cap. 6-8). Após os interrogatórios no sinédrio e o conselho de Gamaliel (cap. 3-5), os apóstolos tinham paz até o rei Herodes iniciar uma nova perseguição entre 41-43 d.C.

O rei Herodes prendeu alguns membros da Igreja, para torturá-los. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João. E, vendo que isso agradava aos judeus, mandou também prender a Pedro. Eram os dias dos Pães ázimos (vv. 1-3).

O martírio de Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, fica reduzido a breve notícia que faz compreender o perigo que Pedro corre. Diríamos que o fato merecia maior atenção. É o primeiro mártir dos apóstolos, personagem de relevo nos relatos evangélicos. Na sua morte violenta, Tiago está “bebendo o cálice”, como Jesus lhe anunciara (Mc 10,38p). A lenda conta que seus restos mortais foram trasladados a Compostela (campo de estrela), na Espanha, onde se desenvolveu grande romaria até hoje.

O rei é Herodes Agripa I, neto de Herodes o Grande (Mt 2) e sobrinho de Herodes Antipas (Lc 3,1; 23,8-12); primeiro tetrarca (37-41 d.C.), tornou-se rei da Judeia e da Samaria (41-44), após diversas intrigas em Roma. A sua política foi favorável ao judaísmo de tipo farisaico (cf. v. 3.11); morreu em 10 de março de 44, duas semanas antes da Páscoa, portanto a morte de Tiago e a prisão de Pedro devem ser datadas entre 41 a 43. Tradições antigas da Igreja falam de 12 anos do apostolado de Pedro em Jerusalém e 25 anos em Roma. Com isso, Pedro deve ter chegado a Roma já em abril de 41, após a páscoa.

O motivo da condenação ou execução é insinuado: “agravada aos judeus”. Tratar-se-ia de um partido hostil à nova seita ou de pessoas influentes. A ação mostra que a perseguição se dirige agora à alta direção da Igreja, às testemunhas imediatas de Jesus, aos apóstolos que ainda eram judeus que não romperam com o judaísmo como os cristãos helenistas (e Paulo depois, cf. cap. 15).

A data dos “Pães ázimos” insinua uma correspondência com a Páscoa de Jesus (Lc 22,1). Se é assim, Pedro começa a seguir seu mestre de verdade (cf. Jo 21,18s); e se não chega até o final, desta vez não é por covardia.

Depois de prender Pedro, Herodes colocou-o na prisão, guardado por quatro grupos de soldados, com quatro soldados cada um. Herodes tinha a intenção de apresentá-lo ao povo, depois da festa da Páscoa. Enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja rezava continuamente a Deus por ele. Herodes estava para apresentá-lo. Naquela mesma noite, Pedro dormia entre dois soldados, preso com duas correntes; e os guardas vigiavam a porta da prisão (vv. 4-6).

Em v. 4, o verbo grego significa levantar; com o lugar de onde sai é o cárcere, o verbo equivale a tirar; mas o dativo matiza o significado, “apresentá-lo ao povo”; combinado com o verbo do v. 6 “expor”, nos dá o sentido total: apresentá-lo e oferecê-lo numa execução pública. O tempo passa, a execução está marcada para o dia seguinte, já é noite. O prisioneiro inocente dorme sono tranquilo, inclusive um tanto pesado (Sl 3,6-8).

A data da “Páscoa” é um indício do gênero literário de hagadá (hebr. “narração”), são textos utilizados para os serviços da noite da Páscoa, contendo a leitura da história da libertação do povo de Israel no Egito conforme é descrito em maneira milagrosa no livro do Êxodo (cf. Ex 12,11s; cf. na libertação de Pedro, as palavras “libertar e “conduzir para fora”, vv. 15.17). Já os textos da ressurreição de Jesus fazem parte deste gênero de “milagre de libertação”, como a primeira libertação dos apóstolos da prisão em 5,17-42, onde apareceu também um “anjo do Senhor” (5,19).

A Bíblia do Peregrino comenta (p. 2657): A libertação de Pedro se apresenta num relato de singular vivacidade (compara-se com 5,19-22), a meio caminho entra o realismo de reações humanas e o halo maravilhoso de aparições e prodígios. O prisioneiro é guardado com medidas de máxima segurança: correntes, portas, turnos de guardas. Em rápida mudança de cenário, Lucas nos mostra um simples dado de transcendência teológica: a Igreja reza por seu chefe prisioneiro; a distância e as grades não rompem a união espiritual dos fiéis. Rezar é a única coisa que podem, e podem muito.

A comunidade viu na libertação de Pedro um milagre pelo qual contribuiu com sua oração (v. 5; cf. o pedido de Paulo prisioneiro em Cl 4,3). A oração pelos presos encontrou espaço nas preces litúrgicas da Igreja.

Eis que apareceu o anjo do Senhor e uma luz iluminou a cela. O anjo tocou o ombro de Pedro, acordou-o e disse: “Levanta-te depressa!” As correntes caíram-lhe das mãos. O anjo continuou: “Coloca o cinto e calça tuas sandálias!” Pedro obedeceu e o anjo lhe disse: “Põe tua capa e vem comigo!” Pedro acompanhou-o, e não sabia que era realidade o que estava acontecendo por meio do anjo, pois pensava que aquilo era uma visão. Depois de passarem pela primeira e segunda guarda, chegaram ao portão de ferro que dava para a cidade. O portão abriu-se sozinho. Eles saíram, caminharam por uma rua e logo depois o anjo o deixou (vv. 7-10).

O começo de v. 7 lembra a noite do Natal (Lc 2,9s; cf. Is 9,1) em que o anjo do Senhor iluminou a cena anunciando a libertação. A Bíblia do Peregrino comenta (p. 2657): Nesse momento irrompe o mundo sobrenatural. A verossimilhança fica suspensa ou subordinada, a imaginação lança mão de sinais conhecidos. A luz celeste na escuridão da prisão (cf. Is 9,1; 49,9), o anjo do Senhor como aparição da divindade capaz de tocar e ser vista. (Essa luz não acorda os guardas?) O ritmo se faz lento para que observemos os detalhes; cinto, sandálias, manto, uma guarda, outra guarda, o portão externo, a rua. Detalhes realistas traduzem o invisível ou impalpável. O próprio Pedro se move como sonâmbulo, sua ação é inatividade. (Os guardas não viram? A porta metálica não rangeu ao abrir e fechar?).

Compare-se com a libertação não milagrosa e não menos impressionante de Jeremias (Jr 38,7-13). Cf as correntes em Sl 107,14; 116,16 e a sequência despertar – vestir-se – soltar-se em Is 52,1-2. Em algumas visões (p. ex. de Ezequiel), o vidente é ao mesmo tempo personagem da ação, como quando sonhamos. “Não sabia que era realidade” (v. 9).

Então Pedro caiu em si e disse: “Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar do poder de Herodes e de tudo o que o povo judeu esperava!” (v. 11)

A Bíblia do Peregrino comenta (p. 2657): Pedro começa com a fórmula clássica de reconhecimento. Também é tradicional “enviar um anjo” (p. ex. Gn 24,7.40; Ex 23,20); não menos “livrar da mão de” (Sl 18,1; 31,16; 144,11; Ez 34,27). Só a última frase é original: por ela aparecem unidos o rei Herodes e o povo judeu (como Herodes e “toda Jerusalém” por ocasião da chegada dos magos, Mt 2,3).

A lenda da libertação de Pedro baseia-se em fatos reais como mostram alguns detalhes e expressa a convicção da comunidade que Pedro conseguiu escapar “contra toda expectativa” e não fugiu por covardia de Jerusalém “para outro lugar” (v. 17)

A liturgia de hoje não apresenta a continuação que ajuda para interpretar o milagre a libertação de Pedro: Ele se refugiou à casa de Maria, mãe de Marcos (suposto evangelista), mas logo deixou Jerusalém aos cuidados de outro “Tiago”, o irmão do Senhor (v. 17; cf. 15,13; 21,18; Mc 6,3p; 1Cor 15,7; Gl 1,19; 2,9.12; Tg 1,1; Jd 1). Com sua fidelidade à lei judaica, Tiago conseguiu manter-se em Jerusalém até seu martírio em 62 d.C., mas Pedro “foi para outro lugar”. O autor dos Atos tem a intenção de reservar a futura expansão do Evangelho a Paulo, por isso não conta mais para onde Pedro foi (Antioquia, cf. Gl 2, e Roma, cf. 1Pd), só menciona ainda uma breve volta dele a Jerusalém na ocasião do Concílio de Jerusalém (cap. 15).

O “anjo do Senhor” intervirá de novo em v. 23 para “ferir” de morte a Herodes (mesmo verbo “tocar” que v. 7b), outra lenda baseada no fato da sua morte prematura (o castigo do perseguidor faz parte do gênero dos milagres da libertação). Em At 1-12, trata-se muitas vezes do “anjo do Senhor” (5,19; 8,26; 12,7-11.23) ou “anjo de Deus” (10,3.7; 11,23). Essa expressão vem do AT (Gn 16,7; Jz 13,2-21 etc.), onde a anjo de Javé representa o próprio Deus. Após o capítulo 12, só uma vez reaparece (indiretamente) em 27,23, e as intervenções de Deus são antes atribuídas ao Espírito. Paulo e Silas são libertados da prisão através de um terremoto (16,26).

2ª Leitura: 2Tm 4,6-8.17-18

A segunda carta a Timóteo é chamada de Testamento de Paulo, mas muitos exegetas consideram esta carta posterior ao martírio de Paulo.

Para comunicar-se com as comunidades distantes, o próprio Paulo escreveu cartas (a mais antiga é 1Ts no ano 50), nas quais responde a desafios e perguntas, usando tradições dos apóstolos (ex. a profissão de fé em 1Cor 15,3ss), de liturgias (1Cor 11,23-25) ou hinos (Fl 2,5-11), e como mestre da lei citando textos do AT. Mas apenas sete cartas são realmente do próprio Paulo (Rm, 1 e 2Cor, Gl, Fl, 1Ts e Fm). As outras, provavelmente, foram escritas por discípulos dele, mas em nome de Paulo. Não queriam falsificar, mas era costume da época chamado “pseudepigrafia” que existia já no AT (por ex. Deutero- e Trito-Isaías).

Na segunda geração apostólica escreveu-se Ef e Cl (cerca do ano 80). Já da terceira geração (cf. 2Tm 1,5) são 2Ts e as “cartas pastorais” (porque se dirigem aos pastores/bispos Timóteo e Tito): 1 e 2Tm e Tt (anos 90 a 100), em que a expectativa da parusia imediata (a volta de Jesus em breve) cede lugar a uma inculturação no Império romano: Já que Jesus não está voltando logo, devemo-nos arranjar de maneira positiva, sem exageros, e seguir a “sã doutrina” (1Tm 1,10) no mundo em que vivemos. Alguns itens radicais de Paulo são retirados (por ex. em 1Tm 2,9-15 diminui-se a igualdade da mulher de Gl 3,28), porque já não é tempo de revolução (por ex. abolir a circuncisão para os cristãos), mas de preservação (“depósito da fé”: 1Tm 6,20; 2Tm 1,14), de organização (bispos-presbíteros, diáconos, cf. 1Tm 3,1-13; 5,17-24; Tt 1,5-9) em face das heresias, “fabulas, controvérsias, vãos problemas” (cf. 1Tm 1,4; 4,3; 6,4), de evangelização tranquila (para não provocar perseguições por nada) e vida moral (burguês?). O estilo é de uma regularidade harmoniosa, que contrasta com o ímpeto das antigas epístolas do apóstolo.

Em 3,10s, Paulo confirma que Timóteo é um dos discípulos mais fieis (At 16,1-3; 17,14s; 18,5; 19,22; 20,4; 1Ts 3,2.6; 1Cor 4,17; 16,10; 2Cor 1,19; Rm 16,21). Ele podia ser uma fonte dos Atos dos Apóstolos (quando o sujeito da narração das viagens de Paulo muda para a primeira pessoa do plural “nós” em At 16,10, etc.). A carta 2Tm supõe a prisão de Paulo em Roma (1,8.16s; 2,9). Ele se sente perto do fim, estando sozinho escreve uma despedida, um testamento (cf. At 20,17-37; Jo 13-17).

Quanto a mim, eu já estou para ser derramado em sacrifício;  aproxima-se o momento de minha partida (v. 6).

Em 4,6, para significar o mistério da sua morte, Paulo recorre a duas imagens, que já empregara em Fl: A morte do apóstolo será uma “libação” (derramar), não de vinho, mas de sangue, não alheia, mas própria. Nos sacrifícios judaicos e pagãos, libações de vinho, água ou óleo eram derramadas sobre as vítimas (cf. Ex 29,40; Nm 28,7; Fl 2,17). Assim o sangue de Paulo ia ser derramado em libação no sacrifício do seu martírio. É morte com valor quase litúrgico.

Outro termo, a “partida” emprega-se para um navio levantar âncoras, largar as amarras e as fazer à vela rumo ao alto-mar, ou também para soldados que dobram as tendas e levantam o acampamento (cf. 2Cor 5,1-10; lembramo-nos de que Paulo era fabricador de tendas, cf. At 18,3).

Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé. Agora está reservada para mim a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos que esperam com amor a sua manifestação gloriosa (vv. 7-8).

Paulo nasceu fora de Israel em ambiente helenista e gosta de comparações da vida esportiva ou militar dos gregos e romanos (“combate”, “corrida”; cf. 1Cor 9,24-26; Gl 2,2; 5,7; Ef 6,10-17; Fl 2,16; 3,12-14; 1Tm 1,18; 6,12; Hb 12,1). Jesus contou parábolas para a população rural da Galileia; Paulo discursa para um público urbano, para filósofos (At 17), políticos (At 25-26), comerciantes (At 16), reis (At 26), soldados, gladiadores e outros. Paulo se vê como atleta na corrida da vida, competiu até o final e agora se dispõe para receber a coroa do prêmio (1 Cor 9,25). Mas esta “coroa da justiça” está reservada não somente a um, “mas também a todos” os que correm com esperança invencível. O “justo juiz” é árbitro da competição: é o Senhor Jesus no dia da sua vinda gloriosa (parusia).

Nossa leitura salta as anotações sobre alguns nomes de colaboradores ou hostilidades de conhecidos (vv. 9-16).

Mas o Senhor esteve a meu lado e me deu forças; ele fez com que a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações; e eu fui libertado da boca do leão. O Senhor me libertará de todo mal e me salvará para o seu Reino celeste. A ele a glória, pelos séculos dos séculos! Amém (vv. 17-18).

No processo, Paulo foi abandonado por vários colaboradores (v. 16; como Jesus), mas está solidão está povoada pela presença de Deus. No momento do comparecimento diante do tribunal, Paulo teve oportunidade de anunciar a mensagem “integralmente” (guardar a fé e anunciar a mensagem integralmente são preocupações das cartas pastorais) a qual foi “ouvida por todas as nações” (lit. o mundo todo), ou seja, as nações concentradas em Roma. Mais uma vez, Paulo se realiza como apóstolo dos pagãos (At 9,15; Gl 2,7s; Rm 1,5 etc.).

O “leão” é o perseguidor (Sl 22,2; cf. Dn 6,17; 1Pd 5,8). Muitos cristãos sofreram o martírio ao serem jogados aos leões nos circos romanos. Pode ser uma alusão à morte de Paulo: durante a perseguição violenta por César Nero (64-67 d.C.), ele não foi crucificado como Pedro, porque sendo cidadão romano, não podia ser condenado à crucificação (cf. At 22,25-29). Também não foi jogado aos leões, mas decapitado.

O final (v. 18) lembra o fim da oração do Pai Nosso (Mt 6,13). É a Cristo salvador e libertador, a quem Paulo dirige a doxologia (fórmula de louvor) semelhante à de Gl 1,5 (cf. Rm 16,25-27).

Evangelho: Mt 16,13-19

No evangelho de Mateus, Jesus afirma o papel fundamental e a primazia de Simão Pedro a partir da sua profissão de fé. Para apreciar, precisa reconhecer que Mt já usava o evangelho mais antigo, Mc. Para Mc, a profissão de fé de Pedro está no centro do evangelho, mas não nos transmite as palavras de Jesus sobre o primado de Pedro.

Na primeira metade de Mc, Jesus demonstra seu poder, cura e atua milagres na Galileia até ser aclamado de “Cristo-Messias” por Simão Pedro (Mc 8,29). Mas a partir daí, Jesus começa anunciar sua paixão e morte em Jerusalém (Mc 8,31; 9, 31, 10,33). Simão Pedro, porém, deve ficar calado ainda sobre o segredo do messias, mas não quer entender o sofrimento anunciado do messias e repreende o mestre. A reação de Jesus é dura: “Atrás de mim, Satanás, não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8,33). O segredo do messias e a incompreensão até por parte dos discípulos são características do evangelho de Mc. Marcos acompanhava Paulo e era intérprete de Pedro, conhecia bem o lado humano deles. Ele concluiu sua obra em 70 d.C., durante a Guerra Judaica, pouco depois da perseguição violenta pelo César Nero que resultou no martírio de Pedro e Paulo e muitos outros cristãos, por isso falava da necessidade da cruz e da dificuldade de entender isso.

Para Mt, a situação é diferente. Ele atenua ou evita falar da incompreensão dos discípulos. Para Mt e Lc, que escreveram 20 anos depois, os apóstolos já ganharam o status de santos. Como a Guerra Judaica já havia terminado com a derrota dos judeus, não havia mais tanta necessidade de um segredo messiânico, ou seja, evitar o mal-entendido de um messias-Cristo nacionalista e guerreiro sem sofrimento. Mas por fidelidade a sua fonte Mc, Mateus não omite nem o silêncio nem a repreensão, mas os adia, declarando primeiro Pedro como pedra fundamental da igreja.

Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” (v. 13).

Na primeira parte do evangelho de hoje, Mt segue fielmente a Mc. Antes de ir ao sul para cumprir sua missão Jerusalém, Jesus e os discípulos encontram-se no ponto mais setentrional da sua trajetória, em Cesaréia de Filipe, que era uma cidade construída junto às nascentes do Jordão, em 2 ou 3 a.C., por Herodes Filipe em honra de César Augusto. A pergunta de Jesus força os discípulos a fazer uma revisão de tudo o que ele realizou no meio de povo.

Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14).

Esse povo não entendeu bem quem é Jesus. O título “profeta”, que Jesus não reivindicou senão de maneira indireta e velada (13,57 par; Lc 13,33), mas que as multidões lhe deram sem hesitar (16,14; 21,11. 46; Mc 6,15par; Lc 7,16. 39; 24,19: Jo 4,19; 9,17), tinha valor messiânico, pois o espírito de profecia, extinto desde Malaquias, devia reaparecer, segundo a opinião dominante entre os judeus, como sinal da era messiânica, seja na pessoa de Elias (17,10-11 par), seja sob a forma de uma efusão geral do Espírito (At 2, 17-18. 33). De fato, no tempo de Jesus sugiram muitos (falsos) profetas (24,11.24p; etc.). Quanto a João Batista, esse foi realmente profeta (11,9 par; 14,5; 21,26 par; Lc 1,76), mas como precursor vindo com o espírito de Elias (11,10p.14; 17,12p). Ele negou (Jo 1,21) ser “o profeta”, que Moisés tinha predito (Dt 18,15). Este profeta, a fé cristã só reconheceu na pessoa de Jesus (At 3,22-26; Jo 6,14; 7,40). Contudo, por ter-se disseminado na Igreja primitiva o carisma da profecia, após o Pentecostes (At 11,27), este título deixou, bem cedo, de ser aplicado a Jesus, cedendo o lugar a títulos mais específicos da cristologia.

Entre os profetas, Mt acrescenta o nome “Jeremias”, talvez pela perseguição que este profeta sofreu, ou pelo sonho em 2Mc 15,12-16 em que Jeremias dá uma espada a Judas Macabeus num gesto semelhante em que Jesus dará a chave a Pedro.

Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (vv. 15-16).

Os discípulos, porém, que acompanham e veem tudo que Jesus tem feito, reconhecem agora, através de Pedro, que Jesus é o Messias.

“Cristo” não é um nome, é título, tradução grega da palavra hebraica “Messias”, quer dizer, “ungido”, consagrado por uma unção (crisma – o óleo; cristo – o ungido). Quem foi ungido no AT? Reis, sacerdotes e profetas (1Rs 19,15-16; Is 61,1; cf. Lc 4,18). Quanto aos membros do sacerdócio, não parece que unção lhes tenha sido conferida antes da época persa. Os textos sacerdotais antigos a reservavam ao sumo sacerdote (Ex 29,7.29; Lv 4,3.5.16; 8,12). Depois foi estendida a todos os sacerdotes (Ex 28, 41; 30,30; 40,15; Lv 7,36; 10,7; Nm 3,3). Nos textos históricos antigos, a unção é reservada ao rei (1Sm 10, 1s; 16,1ss; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esta unção confere ao rei um caráter sagrado: ele é o Ungido de Javé (1Sm 24,7; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16;19,22). Aplicado muitas vezes pelos Salmos a Davi e sua dinastia, este título tornou-se o título por excelência do Rei do futuro, o Messias, do qual Davi era o protótipo, e o Novo Testamento o atribui a Cristo Jesus.

A esperança do messias iniciou-se 1000 anos antes de Jesus. Em 2Sm 7 Deus prometeu a Davi que sua dinastia e seu trono permaneceria para sempre. O oráculo ultrapassa o sucessor de Davi, Salomão, e deixa entrever um descendente privilegiado em que Deus se comprazerá. É o primeiro elo sobre das profecias sobre o messias, filho de Davi (Is 7,14; 9,5-6; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5-6; Mq 4,14; Ag 2,23). A maioria dos sucessores no trono de Davi não seguiu os caminhos de Deus (cf. 1-2Rs). Depois do exílio não houve mais um rei da descendência de Davi em Israel. O rei Herodes não era nem judeu (era idumeu, povo vizinho ao sul da Judéia), instituído por imposição de César Augusto. Mas a esperança de um messias salvador que libertasse o povo dos seus opressores igual a Davi, se mantinha viva (até hoje existe entre os judeus).

Messias ou Cristo é designação judaica do salvador esperado. Mc compreende esse título no sentido novo que lhe confere sua aplicação a Jesus (Mc 9,41; 12,35-37). Em Mc, Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (Mc 14,61-62), e só um homem reconhece Jesus como Messias: Pedro, mas ele é logo intimado ao silêncio (Mc 8,30.33), enquanto em Mt 16, é instituído “Papa” primeiro (vv. 17-19), antes de Mt continuar copiando de Mc a ordem de silêncio, o anúncio da paixão e a repreensão de Pedro (vv. 20-23, omitidos na leitura de hoje).

A resposta de Pedro “Tu és o Messias (Cristo)” em Mc 8,29, Mt acrescenta “o Filho de Deus vivo”. Em Mt, não é a primeira profissão de fé, já em 14,33 Mt substitui a incompreensão dos discípulos por uma profissão de fé “se ajoelharam diante dele dizendo: De fato, tu és o Filho de Deus”. No AT, “Filho de Deus” aplica-se aos anjos, ao povo eleito, aos israelitas fieis e ao Messias (2Sm 7,14; Sl 2,7; 89,27) e designa uma relação particular com Deus fundada em sua eleição e na missão. Os cristãos destacam com suas primeiras confissões de fé, o caráter único e decisivo da pessoa de Jesus: ele é mais do que um profeta ou rei (cf. Mt 12,41-42), ele mantém com Deus uma relação filial inigualável (“Abba” – papai, cf. Mc 14,36) e a ele foi confiada uma missão impar na obra da salvação (cf. Rm 10,9; Hb 9,26-28; Jo 3,16-17).

Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu (v. 17).

Jesus declara feliz (bem-aventurado) Simão que pela “carne e sangue” é “filho de Jonas”, mas declarou que Jesus é o messias esperado e Jesus ratifica, declarando que esta confissão procede de uma revelação do seu “Pai que está no céu” (cf. 11,25-27; Gl 1,16). A fé é resposta à palavra de Deus; a fé de Pedro e nossa também é dom de Deus, mas torna-se tarefa também. A revelação a Pedro tem um sentido cuja profundidade Pedro mostraria, mais tarde, não ter aprendido ainda (vv. 22-23).

Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la (v. 18).

Aqui, Mt aproveita a oportunidade e apresenta um paralelismo das identificações: o povo diz… vós dizeis,…; Pedro diz “tu és o Messias”,… Jesus diz “tu és Pedro”.

“Tu és Pedro” (v. 18; cf. 10,2), Pedro é tradução grega do nome aramaico “Cefas” (Jo 1,42; 1Cor 1,12; 9,5; 15,5; Gl 1,18). Tal nome grego não era usado como nome próprio de pessoa na época. A mudança de nome pode ter ocorrido mais cedo (cf. Jo 1,42; Mc 3,16; Lc 5,8; 6,14).

“Sobre esta pedra construirei a minha igreja.” A palavra grega ekklésia (Igreja) traduz o termo hebraico qahal, que significa “assembleia” e é comum no AT para designar o povo eleito (cf. Dt 4,10; 23,2; 1Rs 8,22 etc.; At 7,38). Certos grupos judaicos que se consideravam o resto de Israel (cf. Is 4,3) dos últimos tempos (ex. os essênios em Qumrã), o aplicaram ao seu próprio círculo. Jesus o transfere à comunidade messiânica, que ele irá construir selando uma nova aliança pelo derramamento de seu sangue (26,28; cf. 5,25). “O reino de Deus já está próximo” (4,17), por isso está comunidade deve começar já aqui na terra por uma sociedade organizada cujo chefe institui (cf At 5,11; 1Cor 1,2 etc.).

Essa nova comunidade é simbolizada por um templo que Jesus construirá; ele é o dono da construção (“minha igreja”) e Pedro será a pedra fundamental (cf. Ef 4,20-22; Gl 2,47-9; 1Cor 10,10-17; 1Pd 2,4-8; Ap 21,14).

Pedro terá um papel medianeiro: por sua fé e adesão a Cristo, participa da solidez da “rocha”, símbolo antigo de Deus (cf. Dt 32,4.15.18.30.31; Sl 19,14; 27,5 etc.) e da fé (cf. 7,24). A declaração de Jesus corresponde à função eminente que Pedro desempenhou no início da Igreja (4,18; 17,1; At 1,13.15; 3,1; 10,5; 15,7; Jo 6,67-69; 21,15-23; Gl 2,7).

A interpretação destas palavras e seu alcance diferem nas diferentes denominações. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1890) anota o seguinte: “A tradição católica aduz este texto para fundamentar a doutrina segundo o qual os sucessores de Pedro herdaram o seu primado. A tradição ortodoxa opina que, em suas dioceses, todos os bispos que confessam a verdadeira fé integram-se na sucessão de Pedro e na dos demais apóstolos. Embora reconheçam a posição e a função privilegiada de Pedro nas origens da Igreja, os exegetas protestantes estimam que Jesus só tem em vista, aqui, a pessoa de Pedro.”

O primado do bispo de Roma (“Papa”) era um primado de honra (por ser Roma o lugar do martírio de Pedro e Paulo); somente no segundo milênio desenvolveu-se o primado jurídico de chefe quase absoluto (“vigário de Cristo”) culminando no dogma na infalibilidade no Concilio Vaticano I (1870), mas completado pela colegialidade dos bispos (papa o primeiro entre iguais) no Concilio Vaticano II (1962-1965). A permanência própria da Igreja durante 2000 anos apesar de perseguições de fora, crises internas, cismas etc. comprovam de certo modo a palavra de Jesus que ”o poder do inferno nunca poderá vencê-la”, lit. as portas do hades. A palavra grega, hades, em hebraico sheol, designa a morada dos mortos (cf. Nm 16,33). As portas simbolizam seu poder (cf Jó 38,17; Sb 16,13). O hades não conseguirá reter na morte os membros da comunidade messiânica de Jesus.

Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19).

Jesus promete a Pedro “as chaves do reino dos céus” (v. 19), e com essas dá acesso ao reino (conforme as bem-aventuranças, cf. 5,3.10). Ele terá o poder de “ligar e desligar”, ou seja, proibir ou permitir, julgar, condenar ou perdoar, ensinar e interpretar, ratificado por Deus, diferente dos fariseus e doutores da lei que amarram fardos pesados (23,4) e fecharam o acesso ao reino de Deus (23,13). Enquanto Pedro fica com símbolo da chave (cf Is 22,22), a autoridade de “ligar e desligar” é dada também ao conjunto dos discípulos (18,18; Jo 20,23). O Reino de Deus está vinculado a uma Igreja cujos traços ainda não estão definidos, mas com o poder das chaves já não está desprovida de certa estrutura, os sucessores dos apóstolos serão os bispos (ex. Timóteo, Tito) e dentro do colégio dos bispos, um é escolhido para assumir o ministério de Pedro, o Papa, o bispo de Roma onde Pedro e Paulo sofreram o martírio.

No primeiro milênio, seu papel era mais de honra, no segundo, cresceu sua jurisdição. No ano de 1870, o Concílio Vaticano I (1870) definiu sua “infalibilidade” (quando se pronunciar solenemente em assuntos da fé e da moral; foi exercida só uma vez, em 1950, no dogma da Assunção de Nossa Senhora) tornando o papa um monarca absoluto. O Vaticano II (1962-1965) resgatou a colegialidade dos bispos: um concílio ecumênico (de todos os bispos), em comunhão com o papa, também é infalível, cf. LG 22: A Ordem dos Bispos, que sucede ao colégio dos Apóstolos no magistério e no governo pastoral, e, mais ainda, na qual o corpo apostólico se continua perpetuamente, é também juntamente com o Romano Pontífice, sua cabeça, e nunca sem a cabeça, sujeito do supremo e pleno poder sobre toda a Igreja, poder este que não se pode exercer senão com o consentimento do Romano Pontífice. Só a Simão colocou o Senhor como pedra e chaveiro da Igreja (cf. Mt 16,18-19), e o constituiu pastor de todo o Seu rebanho (cfr. Jo 21,15 ss.); mas é sabido que o encargo de ligar e desligar conferido a Pedro (Mt 16,19), foi também atribuído ao colégio dos Apóstolos unido à sua cabeça (Mt 18,18; 28,16-20).

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