28 de Março de 2019, Quinta-feira: “Dei esta ordem ao povo dizendo: ‘Ouvi a minha voz, assim serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e segui adiante por todo o caminho que eu vos indicar para serdes felizes’” (v. 23).

Leitura: Jr 7,23-28

A leitura de hoje faz parte do sermão do profeta Jeremias sobre o culto no templo, proferido pouco depois da morte do rei Josias (609 a.C.). O templo de Jerusalém deveria expressar a aliança entre o povo e Deus. Transformou-se, porém, numa instituição corrompida (“cova de ladrões”, v. 11; cf. citado por Jesus em Mc 11,17p) que escondia as injustiças contra os fracos e pobres (v. 6: “o estrangeiro, o órfão e a viúva”): “roubar, matar, cometer adultério, jurar falso, queimar incenso a Baal, seguir deuses estrangeiros… e depois virdes e vos apresentardes diante de mim, neste templo, onde meu nome é invocado, e dizer ‘Estamos salvos’, para depois continuar praticando essas abominações” (vv. 9-11).

Se Israel não se converter, o templo será destruído como o santuário de Silo foi destruído antigamente pelos filisteus (vv. 12.14-15; cf. 1Sm 4; Sl 78,60), para que o povo tome consciência de que Javé Deus salva não através do culto, mas através da prática da justiça.

(Assim fala o Senhor:) “Dei esta ordem ao povo dizendo: ‘Ouvi a minha voz, assim serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e segui adiante por todo o caminho que eu vos indicar para serdes felizes’” (v. 23).

A aliança no Sinai impunha, como condição fundamental, a aceitação livre e a obediência ou cumprimento. O povo a aceitou globalmente (cf. Ex 24,3). No próprio decálogo (dez mandamentos, cf. Ex 20; Dt 5), não há mandamento sobre sacrifícios e outras práticas do culto (só depois no decálogo cultual: Ex 34,10-27). O que Deus exige, não são holocaustos e sacrifícios (v. 22), mas a obediência (v. 23, cf. 1Sm 15,22: “obedecer vale mais do que um sacrifício”; cf. Os 6,6; Mq 6,6-8; Am 5,21): “Ouvi a minha voz (obedecei-me)”, assim “serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (a fórmula da aliança; cf. 11,4; 24,7; Ez 11,20; 14,11; 36,28; 37,27; Ex 6,7; 19,5; Lv 26,12; Dt 26,17-19; 29,12). “Caminhai por todo caminho que eu vos indicar para serdes felizes” (cf. Dt 30,15-20).

Mas eles não ouviram e não prestaram atenção; ao contrário, seguindo as más inclinações do coração, andaram para trás e não para a frente, desde o dia em que seus pais saíram do Egito até ao dia de hoje (vv. 24-25a).

Mas todo esforço de Deus para libertar e educar seu povo parece estar em vão, “eles não ouviram e não prestaram atenção, ao contrario, seguindo as más inclinações do coração, andaram para trás e não para frente” (v. 24; cf. 3,17; 8,6; 11,8). As rebeliões já começaram desde cedo (2,20) junto ao mar Vermelho (Sl 106,7) e continuaram no deserto e em Israel “até ao dia de hoje” (2Rs 21,14s);

A todos enviei meus servos, os profetas, e enviei-os cada dia, começando bem cedo; mas não ouviram e não prestaram atenção; ao contrário, obstinaram-se no erro, procedendo ainda pior que seus pais (vv. 25b-26).

Deus enviou os seus “servos, os profetas” para atualizar a aliança desde Moisés (Dt 18; Jz 6,8; cf. Jr 25,4.15; 29,19; 44,4; Is 42,1; 49,4; 50, 4; 52,13-53,12; Mc 12,2-5p), “mas não ouviram e nem prestaram atenção, ao contrário, obstinaram no erro”, lit. “endureceram a nuca” como novilho que rejeita a canga (Ex 32,9; 33,3; 34,9; Dt 9,6.13), “procedendo ainda pior do que seus pais” (v. 26; 2Rs 17,14).

“Se falares todas essas coisas, eles não te escutarão, e, se os chamares, não te darão resposta. Dirás, então: ‘Esta é a nação que não escutou a voz do Senhor, seu Deus, e não aceitou correção. Sua fé morreu, foi arrancada de sua boca’” (vv. 27-28).

É um povo teimoso e rebelde que não escuta (cf. Is 6,9s), também não escutará nem Jeremias (v. 27; cf. 41,13.21) nem Ezequiel (cf. Ez 2,1-3,9.26s). Deus já quer desistir de educar e formar seu povo; declara: “Esta é a nação que não escutou a voz do Senhor, seu Deus, e não aceitou correção” (não aprendeu a lição, cf. 6,8). “Sua fé (ou: verdade, fidelidade, sinceridade) morreu” (v. 28).

A única possibilidade que resta é Deus fazer uma “nova aliança” em que ninguém mais precisará ensinar ou corrigir seu irmão, porque nela a lei de Deus já estará escrita em seus corações (31,32-34; Lc 22,20; 1Cor 11,25; 2Cor 3,6; Hb 9,15)

 

Evangelho: Lc 11,14-23

No evangelho ouvimos de uma má interpretação das curas de Jesus. No episódio anterior, Jesus acabou de ensinar aos discípulos a rezar o Pai nosso (11,1-13), agora é acusado de ser aliado do diabo.

Jesus estava expulsando um demônio que era mudo. Quando o demônio saiu, o mudo começou a falar, e as multidões ficaram admiradas (v. 14).

Jesus curou uma pessoa muda. Para os contemporâneos, ele expulsou um demônio, suposta causa da deficiência ou doença (cf. 4,39 “ameaçou a febre”). O sucesso da cura era óbvio, “o mudo começou a falar” (v. 14; cf. 1,64) e causou a admiração do povo.

O contexto da cura do mudo antes da acusação polêmica (também em Mt 12,22s) demonstra que Lc copiou de Mc 3,22-27 e também da fonte Q (Lc 11,14.19-20; Mt 12,27-28; ou existia uma segunda edição de Mc, Deuteromarcos, de quem Mt e Lc copiaram?).

Mas alguns disseram: “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios.” Outros, para tentar Jesus, pediam-lhe um sinal do céu (vv. 15-16).

Mas “alguns” atribuem o sucesso da cura ao chefe dos demônios: “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios” (v. 15). Lc copia este relato de Mc 3,22-30, mas poupa “os escribas que haviam descido de Jerusalém” (Mc 3,22; em Mt 12,24: fariseus) generalizando os acusadores em “alguns” e “outros”. Como Lc escreve para cristãos que não vieram do judaísmo, mas do paganismo, ele não precisa polemizar contra os judeus.

Difícil é imaginar uma acusação pior contra o Messias Jesus. Belzebu soa como “deus do lixo/senhor das moscas”. “Belzebu” é um dos nomes tradicionais do diabo (tomado do deus de Acaron em 2Rs 1, onde o nome Beel-Zebul, “senhor príncipe”, é transformado maliciosamente em Baal Zebub, “senhor das moscas”). A acusação é gravíssima e visa desacreditar pela base toda atividade de Jesus, declarando-o agente do rival (satanás) de Deus. É uma acusação absurda em simples lógica e se voltará contra os que a pronunciam.

“Outros, para tentar Jesus, pediam-lhe um sinal do céu” (v. 16); mas a resposta de Jesus é dada mais tarde nos vv. 29-32 (cf. o evangelho de quarta feira da primeira semana da quaresma).

Mas, conhecendo seus pensamentos, Jesus disse-lhes: “Todo reino dividido contra si mesmo será destruído; e cairá uma casa por cima da outra. Ora, se até Satanás está dividido contra si mesmo, como poderá sobreviver o seu reino? Vós dizeis que é por Belzebu que eu expulso os demônios (vv. 17-18).

A respeito de Belzebu, Jesus refuta a idéia. Como ele poderia estar aliado a Satanás? Assim Satanás “estaria dividido contra si mesmo, como poderia sobreviver seu reino?” (v. 18). Em Mc 3,24s, Jesus responde com dupla comparação: a divisão de um “reino” e de uma “casa” (família) acabará em ruína. Em Lc, sob a impressão de guerras (cf. 19,43s, e terremotos cf. 21,20s), a imagem é de destruição e desastre total, “cairá uma casa por cima da outra”.

Se é por meio de Belzebu que eu expulso demônios, vossos filhos os expulsam por meio de quem? Por isso, eles mesmos serão vossos juízes. Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus (vv. 19-20).

Esse argumento dos vv. 19-20 faltava em Mc (como o v. 14; Lc e Mt usam aqui uma segunda fonte, Q, ou uma segunda edição de Mc, Deuteromarcos).

Jesus não era o único exorcista da região, havia outros homens (“vossos filhos”) do meio deles: “Se é por meio de Belzebu que eu expulso demônios, vossos filhos (Mt: adeptos) os expulsam por meio de quem?” (v. 19).

A prática deles era a seguinte: colocar um anel debaixo das narinas do possesso, junto com uma raiz que Salomão indicou. Quando o possesso cheirava a raiz, o exorcista tirou o demônio pelas narinas do doente. O doente caiu logo e o exorcista pronunciou fórmulas mágicas mencionando o nome de Salomão para o demônio não mais voltar (cf. Strack-Billerbeck IV 534; cf. Josefo, Antiquidades VIII 2,5).

Com isso, Jesus não se quer colocar no mesmo nível destes exorcistas; nele não se trata de mágica, mas da presença soberana de Deus vencendo o poder do mal. A verdade é que Deus atua em Jesus, como Deus atuava milagres e prodígios já no Antigo Testamento através do seu “dedo” (Ex 8,15; cf. Dt 9,10; Sl 8,4). Mas se é a mão de Deus (Lc: “dedo”; Mt: “Espírito”, daí a imagem do Espírito Santo como dedo de Deus) que se manifesta nos atos de Jesus, então não precisa mais esperar pelo reino de Deus, porque “já chegou para vós o reino de Deus” (cf. Mc 1,15). Jesus aparece como chefe, príncipe e messias-salvador (cf. At 5,31s).

Quando um homem forte e bem armado guarda a própria casa, seus bens estão seguros. Mas, quando chega um homem mais forte do que ele, vence-o, arranca-lhe a armadura na qual ele confiava, e reparte o que roubou (vv. 21-22).

Não é que uma facção do reino de Satanás esteja lutando contra outra; o ataque vem de fora, de um mais forte que ele, que o amarrará e saqueará sua casa (Mc 3,27). Lc capricha na descrição e acrescentou motivos de guerra (cf. Is 9,2s; 49,24-26; 53,12): “bem armado … chega um homem mais forte do que ele, vence-o, arranca lhe a armadura na qual confiava, e reparte o que roubou” (devolve a saúde psíquica e física dos doentes e a dignidade das pessoas).

Jesus já resistiu ao Satanás com sucesso no deserto (cf. 4,1-13), viu o “cair do céu como um relâmpago” (10,18), mas o enfrentará de novo na paixão (cf. 22,3; Jo 12,2). O “mais forte” é o próprio Jesus (cf. 3,16; At 4,10 etc.). Quando Satanás foi amarrado, o reino de Satanás está sendo vencido e com ele também o domínio da morte o será (cf. Hb 2,14s; Ap 20,1.10).

Lc não fala aqui do pecado da blasfêmia contra o Espírito Santo cometida por quem inverte o bem e o mal nesta acusação (cf. Mc 3,28-30; Mt 12,31s), mas fala dela em 12,10 no contexto de dar testemunho na perseguição.

O ícone da ressurreição (anástasis) na Igreja Ortodoxa mostra Jesus vitorioso descendo entre os mortos, libertando Adão e Eva (representantes da humanidade) dos túmulos, enquanto Satanás está amarrado por baixo da porta arrombada da mansão dos mortos aprisionados (cf. 2Pd 3,18-22)

Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, dispersa (v. 23).

A mesma frase está em Mt 12,30 e parece contradizer Mc 9,40: “Quem não está contra nós, está a nosso favor”. Mas em Mc 9,38-40 se tratava de um exorcista que não era do grupo dos discípulos (“não nos segue”), mas expulsava demônios “em nome de Jesus”, então de certo modo está com Jesus, não contra ele (Mc 9,40 é um convite ao ecumenismo, buscando o comum e não o que nos separa).

Mas quem não se posiciona ao lado de Jesus, bom e supremo pastor das almas, “não recolhe, mas dispersa” as ovelhas (Ez 34; Mt 9,36; Lc 10,3; Hb 13,20; 1Pd 2,25; 5,4). Após seu sermão do bom pastor, Jesus é acusado de ter um demônio (Jo 10,11-21). Como em Lc, isso pode ser um reflexo de separação progressiva entre sinagoga e Igreja (oficializada pela excomunhão dos cristãos da sinagoga no sínodo de Jâmnia em 90 d.C.).

No evangelho de hoje, Lc quer destacar que Jesus é mais forte e com ele venceremos o mal. Através das palavras e dos atos de Jesus, “o reinado de Deus já começou”, no entanto, ainda estamos longe da sua plenitude e sujeitos a recaídas. Assim a continuação do Ev em Lc 11,24-26 fala da volta de um espírito impuro à casa arrumada e com sete espíritos piores do que ele.

O site da CNBB comenta: Estamos vivendo uma época em que as posições em relação a Satanás são contraditórias. Existem algumas pessoas que dizem que o demônio não existe, que é uma espécie de personificação das más tendências e inclinações das pessoas e que essa história de anjo decaído não passa de mitologia. Por outro lado, existem os que absolutizam a ação do demônio, de modo que tudo é o inimigo agindo, é fruto do maligno e outras coisas do gênero. A Igreja afirma a existência do demônio, mas também afirma que o poder de Deus é infinitamente superior ao dele. No Evangelho de hoje, Jesus nos mostra o seu poder sobre o maligno, poder que se manifesta na totalidade no Mistério Pascal, que é a derrota definitiva do antigo inimigo.

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