28 de Setembro de 2020, Segunda-feira: Pegou então uma criança, colocou-a junto de si e disse-lhes: “Quem receber esta criança em meu nome estará recebendo a mim.

26ª Semana do Tempo Comum  

Leitura: Jó 1,6-22

Iniciamos a leitura do livro de Jó que foi escrito entre os anos 450 e 350 a.C., no período pós-exílio, mas continua atual, porque em qualquer vida humana pode surgir a pergunta: “Qual o sentido do meu sofrimento?” É castigo por uma conduta má, como afirma a teologia antiga da retribuição? Há sempre uma correspondência entre o que a gente faz e a gente sofre?

A Nova Bíblia Pastoral (p. 629) comenta os caps. 1-2: Narrativa popular que focaliza diferentes aspectos da situação de Jó e das ações de Deus e de Satã. Descreve a piedade e felicidade de Jó (cf. 1,1-5); a decisão de submeter a sua piedade a prova, num dialogo no céu (cf.1,6-2,6); o ataque a sua saúde (cf. 2,7-10); e pôr fim a visita dos três amigos (cf. 2,11-13). Este prólogo e o epilogo (42,7-17) se assentam na teologia da retribuição através da penitência e fidelidade de Jó.

O nome Jó (cf. Ez 14,14.20; Tg 5,11), em hebraico é iyyob. Em documentos cuneiformes, esta palavra aparece no segundo milênio a.C.; pode ser ligada ao verbo ayab “ser hostil, tratar como inimigo”.

Nos vv. 1-5 (omitidos pela nossa liturgia), Jó é apresentado como habitante de Hus, que fica ao sul de Edom (cf. Gn 22,21; 36,28; Jr 4,21; Lm 4,21) a sudoeste do Mar Morto. O mesmo nome se aplica a uma tribo arameia (Gn 10,23; cf. 22,21). A idade média situou a pátria de Jó no Hauran (Traconítica), a nordeste do lago Genesaré (Galileia). Daí a possibilidade de ter este antigo relato a sua origem na tradição edomita. Como modelo do justo sempre fiel e piedoso, Jó oferece sacrifícios para a purificação dos seus filhos.

Um dia, foram os filhos de Deus apresentar-se ao Senhor; entre eles também Satanás. O Senhor, então, disse a Satanás: “Donde vens?” – “Venho de dar umas voltas pela terra”, respondeu ele (vv. 6-7).

Os povos antigos imaginaram Deus como soberano do universo, como rei que recebe ou dá audiência em dias determinados, por ex. um deus superior com outros inferiores como seus ministros, e no caso de Israel, o Senhor (Javé), único Deus, com os „filhos de Deus“ (cf. 2,1; 38,7; Gn 6,1-4; Sl 29,1; 82,1.6; 89,7; Zc 6,5; Dn 3,25). Trata-se de seres superiores ao homem e que constituem a corte do Senhor e seu conselho. Identificam-se com os anjos (LXX traduz: os anjos de Deus”; cf. Tb 5,4).

“Satanás” é pronuncia grega do hebraico Satã. Aqui com artigo precedido, “o Satã” (como em 3,1-2), o termo não é ainda um nome próprio, e só o será em 1Cr 21,1. Segundo a etimologia hebraica, ele designa “o adversário” (cf. 2Sm 19,23; 1Rs 5,18; 11,14.23.25), ou “o acusador” (Sl 109,6), mas aqui o seu papel é antes o de um espião. Aqui este substantivo designa o acusador na corte divina; cf. Zc 3,1-2; este substantivo comum assume valor de nome próprio em 1Cr 21,1.

“Venho de dar umas voltas pela terra” Sobre essa atividade, cf. 1Pd 5,8 e também dos vigilantes celestes de Dn 4,13.17.23; em Pr 24,34, um dos dois verbos hebraicos é aplicado à pobreza que ronda e se lança sobre o vadio, como para prendê-lo.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 629s) comenta: No céu, Javé se reúne com os “filhos de Deus” (ou anjos, cf. 2,1; 38,7; Gn 6,1-4; 1Rs 27,19s; Sl 29,1; 82,1; 89,7; Tb 5,4), os quais têm a função de inspecionar a terra. Entre estes anjos esta Satã (cf. Zc 3,1-2), entendido muitas vezes como adversário político-militar ou acusador nos tribunais (cf. 1Sm 29,4; 2Sm 19,22; 1Rs 5,4; Nm 22,22.32). A narrativa tem como objetivo comprovar se Jó teme a Deus em troca de nada. Em textos tardios, Satã é um espirito sinistro e maligno (cf. 1Cr 21,1; Sb 2,24; Tb 3,8). Os redatores utilizam essa figura para diminuir as responsabilidades de Javé diante do sofrimento do justo.

A Bíblia do Peregrino (p. 1062s) comenta: Deus tem sua assembleia celeste, de deuses inferiores ou anjos, 37,7; Sl 29,1; 82,1; 89,7, com os quais faz reuniões periódicas, talvez para decidir a sorte dos mortais. Entre esses cortesãos, mensageiros ou ministros, há um que representa uma espécie de oposição, que gosta de criticar e ainda procura que os fatos justifiquem sua crítica; como um policial, dá volta inspecionando, para poder informar sobre os desmandos cometidos lá embaixo da terra. Este personagem é “o Satã” (com artigo); dá voltas (verbo shut) e se opõe (substantivo satan). Essas ideias, ampliadas nas religiões do antigo Oriente, foram parcialmente recolhidas na Escritura, e o autor as incorpora livre e audaciosamente à sua ficção narrativa. Pode ter encontrado inspiração próxima no episódio do profeta Miquéias bem-Jemla (1Rs 22); isso não diminui a genialidade desse começo.

Não confundamos o Satã desta narração com nossa imagem ou concepção do demônio, do anjo caído que odeia a Deus e suas obras. Ainda que alguns pontos de contato nos levem a confusão, devemos defender-nos para contemplar rigorosamente a função do personagem. Até agora Deus está satisfeito com seu servo Jó, e não acontece nada; é precioso um opositor que ponha em movimento a ação, criticando, incitando. O Satã não é uma afirmação teológica, mas um personagem funcional do relato. E se continuarmos perguntando a que corresponde na realidade, o autor do livro não nos responde, abandona-nos a nossas suposições.   

Nossas suposições não passam de perguntas dirigidas ao livro ou a nós mesmos. É o Satã uma espécie de desdobramento de Deus, que desenvolve em termos de dialética seu ato de dirigir o homem? Ou é antes o Satã um princípio humano oposto a Deus? Não podemos responder a essas perguntas nem confirmar essas suposições. Talvez a ambiguidade inexplicada do Satã seja parte integrante da obra, fonte de sugestão e ao mesmo tempo confissão implícita de que uma doutrina teórica não pode com a realidade viva do homem diante de Deus e de si mesmo.

O Senhor disse-lhe: “Reparaste no meu servo Jó? Na terra não há outro igual: é um homem íntegro e correto, teme a Deus e afasta-se do mal”. Satanás respondeu ao Senhor: “Mas será por nada que Jó teme a Deus? Porventura o não levantaste um muro de proteção ao redor dele, de sua casa e de todos os seus bens? Tu abençoaste tudo o que ele fez, e seus rebanhos cobrem toda a região. Mas, estende a mão e toca em todos os seus bens; e eu garanto que ele te lançará maldições no rosto!” Então o Senhor disse a Satanás: “Pois bem, de tudo o que ele possui, podes dispor, mas não estendas a mão contra ele”. E Satanás saiu da presença do Senhor (vv. 8-12).

A Bíblia do Peregrino (p. 1063) comenta: A intervenção crítica de Satã fará emergir a dimensão que falta. A descrição de um homem bom, rico e feliz é ingênua e irreal demais; uma religiosidade que produz semelhantes criaturas é suspeita. Pela prova, a vida humana é drama, e o drama é o ser autêntico do homem no tempo. Até agora tudo é bom, de uma bondade falsa que não é bondade; até agora a religião é um diálogo monótono de um homem que bendiz ao Deus que o abençoa; ver Dt 2,7; 14,29;15,10; 16,15… Venha a tentação e se verá. E o Senhor aceita. Notemos a diferença: Satã introduz a tentação desconfiando do homem, certo de sua deslealdade, festejando de antemão a queda (escutamos seu riso zombeteiro reprimido). Deus permite a tentação como prova para o homem, confiando nele, esperando preocupado o desfecho. Satã tenta a Deus no homem, na sua melhor criatura, no homem melhor e mais feliz; Deus tenta o homem deixando-o na liberdade: prova de amor. Assim se coloca a grande oposta entre Satã e Deus, entre o divino e o antidivino: é o homem vítima inocente e ignorante de tal aposta, dom que Deus arrisca num jogo perigoso? Não, porque a aposta do homem é sua liberdade. O Deus desse prologo é mais maleável que o Deus com o qual Jó terá de lutar às escuras.

“Lançará maldições”; cf. a preocupação de Jó com seus filhos em v. 5 e que acabam em desgraça em vv. 13.18s.

A Bíblia de Jerusalém (p. 882s) comenta sobre Satanás: É um personagem equívoco, distinto dos filhos de Deus, cético em relação ao homem, desejoso de encontrar nele alguma culpa, capaz de desencadear sobre ele toda a espécie de desgraças e até arrasta-lo ao mal (cf. igualmente 1Cr 21,1). Se não é deliberadamente hostil a Deus, duvida do êxito da sua obra na criação do homem. Para além do Satanás cínico, de ironia fria e malévola, delineia-se a imagem de um ser pessimista, que hostiliza o homem por ter motivos para invejá-lo. O texto, porém, não insiste nas razões de sua atitude. Por tudo isto, ele será assimilado a outras representações ou figuras do espírito do mal, em particular a da serpente de Gn 3, com as quais acabará por identificar-se (cf. Sb 2,24; Ap 12,9; 20,2), para encarnar o poder diabólico (cf. Lc 10,18).

Ora, num dia em que os filhos e filhas de Jó comiam e bebiam vinho na casa do irmão mais velho, um mensageiro veio dizer a Jó: “Estavam os bois lavrando e as mulas pastando a seu lado, quando, de repente, apareceram os sabeus e roubaram tudo, passando os criados ao fio da espada. Só eu consegui escapar para trazer-te a notícia”. Estava ainda falando, quando chegou outro e disse: “Caiu do céu o fogo de Deus e matou ovelhas e pastores, reduzindo-os a cinza. Só eu consegui escapar para trazer-te a notícia”. Este ainda falava, quando chegou outro e disse: “Os caldeus, divididos em três bandos, lançaram-se sobre os camelos e levaram-nos consigo, depois de passarem os criados ao fio da espada. Só eu consegui escapar para trazer-te a notícia”. Este ainda falava, quando chegou outro e disse: “Teus filhos e tuas filhas estavam comendo e bebendo vinho na casa do irmão mais velho, quando um furacão se levantou das bandas do deserto e se lançou contra os quatro cantos da casa, que desabou sobre os jovens e os matou. Só eu consegui escapar para trazer-te a notícia” (vv. 13-19).

As provas de Jó: Na primeira série (vv. 13-19) são contadas de modo muito estilizado. São quatro desgraças, número clássico da totalidade dos desastres, p. ex. Ez 14; a repetição de fórmulas cria um ritmo regular, irresistível. Nossa liturgia omite a segunda série (2,1-10), uma doença terrível acomete a Jó e sua esposa zomba da piedade dele.

As três primeiras desgraças estão relacionadas aos seus bens. Sabeus e caldeus referem-se a grupo de arameus nômades bem organizados que praticavam saques e pilhagens. A fórmula original “fogo de Deus” indica o caráter numinoso ou teofânico do raio (cf. a ascensão de Elias em 2Rs 1,10.12.14; de modo paralelo, o trovão é a “voz de Deus”, cf. Sl 29).

A quarta destraça, no mesmo dia, é a morte dos filhos de Jó através de um furacão (vv. 13.18s). Também o furacão do deserto pode ter caráter numinoso, como em Jr 18,17, sobretudo se investe simultaneamente pelos “quatro cantos” (cf. Ez 37).

Então, Jó levantou-se, rasgou o manto, rapou a cabeça, caiu por terra e, prostrado, disse: ”Nu eu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor tirou; como foi do agrado do Senhor, assim foi feito. Bendito seja o nome do Senhor!” Apesar de tudo isso, Jó não cometeu pecado nem se revoltou contra Deus (vv. 20-22).

A queda livre de Jó corresponde com humildade e aceitação às desgraças que caíram sobre ele. “Rasgou o manto, rapou a cabeça”. Este duplo gesto, expressão de dor, de luto e penitência é referido muitas vezes pela Bíblia (cf. no primeiro caso, Gn 37,34; Js 7,6; 2Sm 1,11; 3,31, etc.; no segundo, Jr 7,29; 48,37; Ez 7,16; Esd 9,3, etc.). Juntos com o ficar “nu”, são ações para representar os limites da ação humana (cf. Sl 22,10; 49,17; 139,15; Is 44,2; Ecl 5,14-15.18; Eclo 11,14; 40,1; 1Tm 6,7).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1172) comenta: O drama do Éden situava o destino do homem entre pó e pó (Gn 3,19). Para Jó, este itinerário vai de desnudação a desnudação. O ventre da terra absorvendo o que o ventre materno formou.

A mãe-terra parece assimilada ao seio materno. A Bíblia do Peregrino (p. 1064) comenta: O ventre materno e o ventre da terra estão em claro paralelismo, conforme crenças comuns, que encontram eco em Sl 139,13 e em Is 26,19; ver também Gn 3,19; Ecl 5,14; 12,7; Eclo 40,1. Sobre a pobreza total da morte, Sl 49,18. O tema da aposta era que Jó amaldiçoaria o Senhor: suas palavras concluem com uma benção formal, em formula litúrgica. Deus ganha a aposta.

“Bendito seja o nome do Senhor (hebr. Yhwh – Javé)”, o nome especificamente israelita para o Deus da aliança é posto, aqui, na boca de Jó, um estrangeiro (cf. v. 1). Talvez tenha sido o uso de uma fórmula de benção, familiar ao narrador e ao auditório, que tenha trazido ao texto este anacronismo um tanto ingênuo.

Mas vem ainda a segunda série de desgraça que afeta o próprio corpo de Jó, uma terrível doença o acomete e sua mulher zomba da fé dele mesmo nestas desgraças (cap. 2). Seus amigos vão visitá-lo. Aí começa a peça central do livro: um diálogo, em que Jó se defende das acusações dos amigos que representam a teologia tradicional da retribuição: Jó deve ter pecado muito por merecer tanta desgraça (caps. 3-37; cf. leituras de terça a quinta-feira), e no final, o próprio Deus responde (caps. 38-42; cf. leituras de sexta-feira e sábado).

Evangelho: Lc 9,46-50

Lc continua copiando uma sequência de Mc (desde Mc 8,27). Como em Mc, os discípulos não reagem com compreensão aos anúncios da paixão, mas esperam por um messias grande, umreitriunfante em vez de um servo sofredor (Is 53).

Houve entre os discípulos uma discussão para saber qual deles seria o maior. Jesus sabia o que estavam pensando. (vv. 46-47a).

Lc dispensa os detalhes de Mc (caminho e casa em Cafarnaum). Os discípulos não compreenderam o segundo anúncio da paixão de Cristo (vv. 43b-45, evangelho de sábado passado)), eles continuam com a mentalidade e critérios humanos, disputando o primeiro lugar, talvez a frente dos três apóstolos preferidos (cf. 5,10; 8,51; 9,28 etc.) ou em lugar de Pedro (cf. Mc 10,35s). Os discípulos ainda são filhos deste mundo com sua mentalidade de concorrência e poder.

Em Mc, Jesus pergunta sobre a conversa, e os discípulos ficam calados; em Mt, os discípulos perguntam sobre a questão; em Lc, Jesus já “sabia” da “discussão” (lit. “uma questão que lhes veio ao espírito”). Mas para compreender o messianismo de Jesus é preciso mudar a ideia que se tem a respeito do poder. Enquanto persistir entre os discípulos o desejo do poder que domina, não haverá possibilidade alguma de construir o Reino de Deus.

Pegou então uma criança, colocou-a junto de si e disse-lhes: “Quem receber esta criança em meu nome estará recebendo a mim. E quem me receber estará recebendo aquele que me enviou. Pois aquele que entre todos vós for o menor, esse é o maior” (vv. 47b-48).

Em Lc, Jesus coloca uma criança “junto de si” (em Mc e Mt: “no meio deles”) e a identifica com consigo mesmo e com o Pai (cf. Mt 18,1-5; Jo 12,44; 13,20).

A Bíblia do Peregrino (p. 2488) comenta: Ao verem o êxito do exorcismo depois da transfiguração, todos tinham admirados “a grandeza” de Deus (v. 43). Pois bem, a grandeza se acede pela pequenez do menino, pela humildade de Jesus. É frequente no AT essa preferência de Deus pelo pequeno (cf. 1Sm 16,5-13; o menino de Is 11,6) … Um menino, que por si só não se vale, que não conta naquela sociedade, é colocado no lugar mais próximo de Jesus. Pelo serviço ao menino, em atenção a Jesus, serve-se a Jesus; servindo a Jesus serve-se ao Pai.

Identificando-se com uma criança quer dizer que não tem nenhuma pretensão, ele sendo o Mestre e o Senhor (Jo 13,12-16). Em Lc 22,26, Jesus repete a mesma frase na última ceia. Os discípulos imitam o Mestre quando não se impõem, nem procuram grandezas, mas dão preferência aos pequenos e fracos. Acolher uma criança ganha uma motivação extraordinária.

Na sociedade antiga, crianças não estavam no centro da atenção, tinham pouco valor, porque não podiam ainda contribuir como aos adultos. Os romanos jogavam crianças indesejadas no lixo! Jesus, porém, coloca a criança “junto de si” e identifica-se com ela. Enquanto nas outras religiões, é o ancião que é valorizado por sua sabedoria, na religião cristã também é a criança que ganha valor, porque o próprio Jesus se fez pequeno e servo; ele apresentou a humildade de crianças como exemplo de fé (18,15-17p). Daí também o empenho da Igreja pela vida (contra aborto) e suas instituições como orfanatos, creches, escolas, pastoral da criança, pastoral do menor, etc. (e o repúdio da sociedade quando justamente membros da igreja caem na pedofilia).

João disse a Jesus: “Mestre, vimos um homem que expulsa demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque não anda conosco.” Jesus disse-lhe: “Não o proibais, pois quem não está contra vós, está a vosso favor” (vv. 49-50).

Não só o desejo de conseguir os primeiros lugares, querer ser o primeiro entre os discípulos, é um obstáculo de entender e seguir o caminho de Jesus à cruz, mas também o fechamento e falta de generosidade como demonstra a continuação do Evangelho hoje.

É um problema que surge nas primeiras comunidades que precisam definir sua identidade de cristãos: quem faz parte e quem não faz. A pergunta de João se refere a exorcistas profissionais, talvez itinerantes, que, conhecida a fama de Jesus, invocam seu nome nos exorcismos. Aos discípulos isso parece um abuso (como pôr num produto comum uma marca famosa). Jesus responde com uma declaração de tolerância.

Temos comparar com outra declaração em 11,23 (cf. Mt 12,30): ”Quem não está a meu favor, está contra mim. E quem não ajunta comigo, dispersa.” Mas não há contradição, porque o texto de hoje fala da tolerância da Igreja (“conosco”), enquanto em 11,23 se trata da mediação única (único caminho, cf. Jo 14,6) da sua pessoa (“comigo”).

O caso lembra os ciúmes exclusivistas de Josué que contrastam como a magnanimidade de Moisés em Nm 11. Semelhante é também a reação de Paulo em Fl 1,15-18.

A sequência recorda Mt 25,31-46: Jesus identifica-se com os “menores” (Mt 25,40.45) e a questão quem pertence ao reino (ao Filho do Homem), é definida pelo bem ou mal que os homens fazem a estes menores. Jesus não quer que o grupo daqueles que o seguem se torne seita fechada e monopolizadora da sua missão. Toda e qualquer ação que liberta e faz o bem ao ser humano é parte integrante da missão de Jesus (cf. Mt 7,20p). “A misericórdia é o nome de Deus” (Papa Francisco), quem pratica a misericórdia pertence a ele, não importa a religião (cf. parábola do bom samaritano em Lc 10,25-37).

É um apelo a tolerância que nem sempre foi ouvido na história da Igreja. Muitas vezes na história da Igreja, certos grupos ou pessoas que não seguiam em tudo a doutrina oficial foram proibidos, condenados e mortos. Na visão de Jesus, a Igreja oficial não deve ser uma panela intolerante que exclui e proíbe tudo que não está 100% sob seu controle.  O nome (e a pessoa) de Jesus não é uma marca registrada pertencente somente à Igreja Católica, porque pertence à humanidade, e “o Espírito sopra onde ele quer” (Jo 3,8), não só onde a Igreja quer. É necessário definir a doutrina para maior clareza e evitar confusão, mas há de reconhecer também que existem “elementos de verdade e santidade” em outras religiões (NA 2), embora só na Igreja Católica se encontrem a “plenitude dos meios de salvação” (UR 3).

Assim falam os documentos do Concílio Vaticano II (UR, NA, LG) que nos animam proceder no caminho do diálogo inter-religioso e ecumênico. A existência de outras igrejas e religiões pode incomodar, mas a liberdade e concorrência num mercado e estado livres estimulam também para melhor qualidade. A Igreja Católica não se deve subestimar, mas também não acomodar na tradição. Jesus quer liberdade e tolerância, generosidade e qualidade.

O site da CNBB comenta: A lógica que nos é proposta por Jesus nos desafia a entender as relações de autoridade e de poder de uma forma totalmente diferente da proposta pelo mundo: autoridade significa conduzir as outras pessoas para uma vida melhor e poder significa serviço e humildade. Com isso, o Evangelho nos mostra que devemos nos afastar da opressão, da dominação e do autoritarismo do poder pelo poder. O Evangelho de hoje também nos mostra que o fato de sermos a Igreja de Jesus Cristo não nos dá o direito de nos apossarmos da sua pessoa e da sua ação, uma vez que ele chama diferentes pessoas através de modos diferentes para que, de diferentes modos, continue agindo no meio dos homens.

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