29 de maio de 2016 – 9º Domingo Ano C

1ª Leitura: 1Rs 8,41-43

Na 1ª leitura ouvimos a prece de Salomão na ocasião da inauguração do templo, pedindo atendimento também aos pagãos que porventura venham a rezar neste templo em Jerusalém. Assim a leitura corresponde ao evangelho de hoje, em que um centurião pagão pede a Jesus a cura do seu empregado (Lc 7,1-10).

Com a construção do templo, Javé Deus de Israel, deixa de ser o Deus que caminha com seu povo (cf. a Tenda no deserto) para ser um Deus fixo na cidade, numa religião que legitima o poder político em Jerusalém e a coleta de tributos.

Já os caps. anteriores mostram a importância deste templo para a religião de Israel (e para os redatores no tempo de Josias e no pós-exílio): os preparativos para obra, a própria construção do templo e todo interior do santuário (5,17-7,51; as medidas descritas, porém, são as do templo pós-exílico, cf. Ez 40-42; 2Cr 3). Salomão construiu o alicerce deste templo por volta de 960 a.C. (no quarto ano do seu governo, cf. 6,1.37) e o concluiu em sete anos (6,37). Na reforma deuteronomista do rei Josias (23,4-20; Dt 12,2-12) em 622, o culto dos sacrifícios foi concentrado no templo de Jerusalém e outros santuários foram demolidos.

A cerimônia da inauguração foi celebrada durante a semana das tendas, no sétimo mês (setembro/outubro; cf. Lv 23,33-43), justamente no final da colheita, período de muitas ofertas. Tinha caráter nacional com o introdução da Arca da aliança (que continha as tábuas da lei, o decálogo) no recinto do templo, chamado Santuário ou Santo dos Santos (vv. 1-9; cf. 2Sm 6). Depois “a nuvem encheu a casa de Javé”, ou seja, Deus toma posse do seu templo. Então “o rei voltou-se e abençoou toda comunidade de Israel” (vv. 10-14).

A Bíblia do Peregrino (p. 625) comenta: A parte falada supera significativamente a descrição das cerimônias, porque nas palavras postas na boca de Salomão o autor do livro apresenta uma reflexão teológica sobre o templo em relação à vida e à história de Israel. Salomão, não o sumo sacerdote, é o protagonista da cerimônia. O rei é idealizador e realizador do empreendimento. Ele próprio oficia como sacerdote. Salomão é assim a figura do rei sacerdote, como Melquisedec [Gn 14,18-20] e como canta o Sl 110.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 377) comenta: A primeira parte da oração (vv. 15-29) é uma confirmação da casa davídica (cf. 2Sm 7). A segunda parte (vv. 30-51) é uma súplica pelos que vieram ao Templo pedir justiça, perdão no exílio, fim da seca e das calamidades, pelo estrangeiro, e proteção na guerra. A terceira parte (vv. 52-66) é uma benção para o povo, consagrado e holocausto (vv. 62-66). O conteúdo aponta para o pós-exílio, quando o Templo era considerado o único espaço de oração.

”Senhor, pode acontecer que até um estrangeiro que não pertence a teu povo, Israel, escute falar de teu grande nome, de tua mão poderosa e do poder de teu braço. Se, por esse motivo, ele vier de uma terra distante, para rezar neste templo, Senhor, escuta então do céu onde moras e atende a todos os pedidos desse estrangeiro, para que todos os povos da terra conheçam o teu nome e o respeitem, como faz o teu povo Israel, e para que saibam que o teu nome é invocado neste templo que eu construí” (vv. 41-43).

Nossa leitura consiste numa única frase e faz parte da dedicação do templo que ocupa espaço amplo e lugar importante no livro. Nesta oração de Salomão, o templo aparece especificamente como “casa de oração”, e não tanto como lugar de sacrifícios; isso poderia ser devido a concepção tardia (cf. Jr 7). Nossa leitura (vv. 41-43) é a quinta súplica e interrompe o esquema precedente, pois não fala de pecados cometidos ou desgraças sofridas.  O templo de Jerusalém adquire força expansiva e atrativa, se o Senhor escuta os que nele rezam.

Em Is 56 (Trito-Isaías no pós-exílio) se ouve semelhante abertura para os estrangeiros e eunucos (abolindo as restrições de Dt 23,2-9). Em At 8, um eunuco da Etiópia (At 8,27) veio rezar no templo de Jerusalém e na volta é batizado. Após purificar o templo, Jesus cita Is 56,7: ”Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Mc 11,), quer dizer, a oração se equipara aos sacrifícios e todos os povos a ela são convidados. Com a mesma abertura, Salomão fala na leitura de hoje.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 514) comenta: O universalismo que se vê despontar aqui (e também em 2Rs 5) só encontra equivalente durante e após o Exílio: Is 56,6-7; Zc 8,20-23; Jn; Rt e conhecerá o pleno desabrochar no NT. Por causa desse universalismo, acredita-se que este trecho foi acrescentado depois do retorno do exílio. Além do espírito universalista dos vv. 41-43, nota-se nos próximos vv. o costume de orar voltado para Jerusalém (v. 44) e a preocupação por aqueles que permaneceram no estrangeiro (vv. 47s).

Por outro lado, surge também uma xenofobia (medo dos estrangeiros) no judaísmo pós-exílico, com Esdras e Neemias que proíbem casamento com estrangeiras (cf. Esr 9-10; Ne 13,23-30). Nos tempos atuais, a xenofobia aumenta nos países onde há muitos migrantes e refugiados.

 

2ª Leitura: Gl 1,1-2.6-10

No próximos domingos ouvimos a carta de Paulo aos gálatas, chamada “manifesto da liberdade cristã”. Seus temas, a justificação pela fé e a liberdade em Cristo, serão retomados pela carta aos romanos de maneira mais calma e refletida. Em Gl, Paulo mostra seu caráter forte e apaixonado.

Eu, Paulo, apóstolo – não por iniciativa humana, nem por intermédio de nenhum homem, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai que o ressuscitou dos mortos – 2e todos os irmãos que estão comigo, às igrejas da Galácia (vv. 1-2).

Nessa saudação chamam a atenção a amplitude e a ênfase com que Paulo defende sua vocação e missão divina, como se tivesse que legitimá-la perante outros (cf. 2Cor 10-12). Paulo se equipara aos demais apóstolos, defendendo a vocação e a missão que recebeu diretamente de Jesus, a quem Deus Pai ressuscitou dos mortos (Rm 1,1; 1Cor 15,8).

“Eu, Paulo, apóstolo”, dizendo-se “apóstolo”, quer enfatizar a origem da sua missão: como os Dozes, apóstolos antes dele (v. 17), foi enviado pelo Cristo ressuscitado, sem “intermédio de nenhum homem” (nos vv. 15s, refere-se a sua vocação/conversão, cf. At 9; 22; 26; Fl 3).

“E todos os irmãos que estão comigo”; depois de reivindicar a sua autoridade de apóstolo, destaca ao mesmo tempo – e é o único cabeçalho de uma carta em que o faz – a sua união como os outros fiéis remetentes que o rodeiam, na defesa do Evangelho. Ele não propõe uma interpretação do Evangelho que lhe seja própria e possa isolá-lo no conjunto da Igreja.

Destinatários são as “igrejas (comunidades) da Galácia”, mas não recebem sem nenhum adjetivo ou elogio, como Paulo costumava acrescentar nas outras cartas. A Galácia não era uma cidade, mas uma região da Ásia Menor (ao redor da atual capital da Turquia, Ancara). Na segunda viagem missionária, Paulo atravessou “a Frígia e a região da Galácia” (At 16,6), e aí fundou comunidades, depois visitadas (At 18,23) durante a terceira viagem (53-57 d.C.). Provavelmente no fim da sua longa estadia em Éfeso (At 19,1-21,1), em 56-57, Paulo escreveu esta carta aos cristãos gálatas que estavam em perigo de perder sua liberdade cristã (cf. 1,4; 5,1.13). Ora, essa população tinha origem diversificada, e não conhecia a religião judaica. Alguns pregadores, denominados “judaizantes”, ensinavam que era necessário observar a Lei de Moisés, como a circuncisão (cf. Gn 17), mesmo depois de aderir a Cristo. Além disso, ridicularizavam Paulo, negando a sua autoridade de apóstolo, porque ele não pertencia ao grupo dos Doze. Diziam também que a doutrina sobre a caducidade da Lei era invenção de Paulo, e não correspondia ao pensamento da igreja de Jerusalém (cf. At 15).

Nossa liturgia dá ao início esta carta um tom ainda mais seco e duro do que nas outras cartas, omitindo a saudação (v. 3) que sintetiza e exalta a saudação grega, “graça”, e a hebraica, “paz” (Rm 1,7; 1Cor 1,3; 2Cor 1,2; cf. Ef 4,17). Nos vv. 4-5, omitidos pela nossa liturgia, a saudação propõe uma espécie de novo êxodo ou saída do mundo mau, do qual o Ressuscitado quer libertar os gálatas.

Em seguida começa com uma exortação, e não com uma ação de graças como era de esperar (cf. Rm 1,8; 1Cor 1,4; 2Cor 2,11; Fl 1,3; Ef 1,16; Cl 1,3; 1Ts 1,2; 2Ts 1,3; 1Tm 1,12; 2Tm 2,3; Fm 1,4). O ataque se deve ao fato de os gálatas estarem se desviando para outro evangelho, que os levaria à escravidão.

Admiro-me de terdes abandonado tão depressa aquele que vos chamou, na graça de Cristo, e de terdes passado para um outro evangelho. Não que haja outro evangelho, mas algumas pessoas vos estão perturbando e querendo mudar o evangelho de Cristo (vv. 6-7).

A costumeira ação de graças é substituída aqui por uma apóstrofe irônica e veemente. O único Evangelho é o anúncio da vida nova, dada unicamente pelo Cristo. “Aquele que vos chamou, na graça de Cristo”, poder-se-ia também traduzir: “aquele que vos chamou por graça, o Cristo” (cf. Rm 1,6). Uma mensagem que compromete a novidade e a gratuidade da salvação não é mais o Evangelho, como diz Paulo logo no v. 7. Os judaizantes tentam falsificar o evangelho autêntico. Não é “outro”, porque não eliminam a Cristo, mas ao deformar substancialmente sua mensagem libertadora, “passam” a outro (At 15,24). Compare-se com os israelitas da aliança: prestando culto ao verdadeiro Deus, que os libertou da escravidão do Egito, só que adorando em imagem de touro (“bezerro de ouro”, Ex 32) voltaram aos costumes do Egito.

A Bíblia de Jerusalém (pag. 2188) comenta:

Há um só evangelho (vv. 6-8; 2Cor 11,4), pregado por todos os apóstolos (1Cor 15,11), para cujo serviço Deus destacou o apóstolo Paulo (Rm 1,1; 1Cor 1,17; cf. Gl 1,15-16). Como nos evangelhos (Mc 1,1) e nos Atos (At 5,42) de viva voz e escutada. Seu conteúdo é a revelação do Filho Jesus Cristo (Rm 1,1-4), ressuscitado dentre os mortos (1Cor 15,1-5; 2Tm 1,10), após sua crucificação (1Cor 2,2), o qual, em favor de todos os pecadores, quer judeus quer gentios (Rm 3,22-24), instaurou a economia da justiça (Rm 1,16) e da salvação (Ef 1,13), anunciada pelos profetas (Rm 16,25-26; 1Pd 1,10). Frequentemente, a palavra “evangelho” exprime ao mesmo tempo a atividade do apóstolo e a mensagem que ele anuncia (2Cor 2,12; 8,18; Fl 1,5.12; 4,3.15; Fm 13; 1Ts 3,2). A eficácia desta proclamação é devida ao poder de Deus (1Ts 1,3; cf. 2,13): palavra da verdade que manifesta a graça de Deus (Cl 1,5-6; Ef 1,13; 2Cor 6,1; At 14,3; 20,24.32), ela produz a salvação em quem a acolhe pela fé (Rm 1,16-17; 3,22; 10,14-15; Fl 1,28) e lhe obedece (Rm 1,5; 10,16; 2Ts 1,8); ela frutifica e se desenvolve (Cl 1,6) e por ela o ministério do apóstolo que a “realiza” (Rm 15,19) torna-se a fonte primeira de toda a esperança cristã (Cl 1,23).

Pois bem, mesmo que nós ou um anjo vindo do céu vos pregasse um evangelho diferente daquele que vos pregamos, seja excomungado. Como já dissemos e agora repito: Se alguém vos pregar um evangelho diferente daquele que recebestes, seja excomungado (vv. 8-9).

Paulo lança dupla maldição sobre quem anunciar esse evangelho diferente (2Cor 11,4). É quase uma apostasia (abandonar a fé) a favor de uma suposta “boa noticia” (evangelho significa Boa Nova) que não é boa. Em v. 8, o condicional irreal reforça a afirmação; “anjo do céu” ou enviado celeste ou enviado de Deus (cf. o profeta Miquéias ben Yimla e o falso profeta em 1Rs 22,19-23).

O evangelho que Paulo prega não admite alternativa; quem tenta suplantá-lo merece a condenação sagrada do anátema (seja excomungado”), é execrável objeto de maldição (cf. Dt 7,26; 1Cor 5,5). O termo corresponde ao hérem hebraico, que sugere excomunhão, designando o castigo que excluía um homem do povo de Deus. Paulo o evoca paradoxalmente a propósito da volta às prescrições da lei judaica. Tal volta seria uma perversão do Evangelho pela qual a pessoa se excluiria da graça divina.

Será que eu estou buscando a aprovação dos homens ou a aprovação de Deus? Ou estou procurando agradar aos homens? Se eu ainda estivesse preocupado em agradar aos homens, não seria servo de Cristo (v. 10).

Na retórica clássica procurava-se agradar ao auditório (captatio benevolentiae). Paulo renuncia a isso para manter sua liberdade de denúncia. Para agradar ao ouvinte escraviza-se ao gosto alheio e trai a mensagem: “eu o odeio porque não me profetiza o bem”, dizia o rei de Israel acerca do profeta Miquéias, filho de Jemla ( 1Rs 22,8; cf. também no Testamento de Isaías, Is 30,10). Paulo parece-se mais com os profetas do AT (Jr 15,19; Mq 3,8) do que com os pregadores helenistas.

Certamente os judaizantes acusavam Paulo de não obrigar os gentios (não-judeus) à circuncisão para mais facilmente os conquistar; mas desta vez sua linguagem de modo algum pode ser tachada de oportunismo. Ele não tem medo de lançar o anátema; se o apóstolo liberta os pagãos das observâncias legais, não é para agradar aos pagãos, mas unicamente por fidelidade ao Evangelho. “Se eu ainda estivesse preocupado em agradar aos homens” seria como outrora, antes de sua conversão, quando Paulo pregava a circuncisão (cf. vv. 13-14).

 

Evangelho: Lc 7,1-10

Depois do discurso da planície (em Mt é o sermão da montanha), segue se uma narrativa que destaca a eficácia e o alcance da palavra de Jesus.

Quando acabou de falar ao povo que o escutava, Jesus entrou em Cafarnaum (v. 1).

Ao discurso da planície (6,20-49; cf. o sermão da montanha em Mt 5-7) seguem-se dois milagres notáveis em Lc. O primeiro é a cura à distância em Cafarnaum a favor de um pagão (cf. os paralelos Mt 8,5-13; Jo 4,43-54). O segundo é a ressurreição do filho de uma viúva (próprio de Lc, cf. evangelho do próximo domingo) na cidade de Naim. Lc destaca a condição dos beneficiários.

O fato de Mt e Lc, embora escrevendo independentemente um do outro, colocam a narrativa do centurião logo em seguida daquele sermão, leva a pensar que a cura já estava numa fonte comum que Mt e Lc usaram, mas que desapareceu na história: uma coleção de palavras chamada Q (segundo a palavra alemã Quelle, fonte), ou esta combinada à uma segunda e ampliada edição de Mc, chamada Deutero-Marcos. Obviamente a função desta cura à distância, já na fonte, era mostrar a eficiência da Palavra de Jesus logo após o sermão.

Havia lá um oficial romano que tinha um empregado a quem estimava muito, e que estava doente, à beira da morte. O oficial ouviu falar de Jesus e enviou alguns anciãos dos judeus, para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado. Chegando onde Jesus estava, pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favor, porque ele estima o nosso povo. Ele até nos construiu uma sinagoga” (vv. 2-5).

A figura do “oficial romano”, lit. “centurião” (que comanda cem soldados) é toda descrita com traços significativos. Ele está a serviço do governador da Galileia, Herodes Antipas, mas não necessariamente romano. Herodes Antipas recrutava suas tropas em todas as regiões circunvizinhas (em Jo 4,46-53, Jesus cura o filho de um oficial de Herodes à distância). Talvez seja um romano, mas com certeza um pagão, porém, simpatiza com a religião e as práticas judaicas, às quais tem dedicado parte da sua fortuna (ou autoridade), “construiu (ou mandando construir) uma sinagoga”.

Lc destaca a simpatia do centurião, porque está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, defendendo a missão aos pagãos criticada pelos judeus. Já em 3,14, soldados mostraram abertura à mensagem de João Batista. Em 4,25-27, Jesus falou na sinagoga de Nazaré sobre pessoas pagãs que foram atendidas pelos profetas de Israel. Na cruz, um centurião reconheceu Jesus como justo, inocente (Lc 23,47; em Mc 15,39: Filho de Deus). Em At 10, Pedro batiza o primeiro pagão, o centurião Cornélio, e depois Paulo leva o evangelho às nações distantes (cf. ainda o Concílio de Jerusalém em At 15 e os conflitos em Gl 2).

O centurião do evangelho de hoje é “temente a Deus”, como o centurião Cornélio (At 10,2.4.31), embora não pertença oficialmente aos seus quadros religiosos do judaísmo. Não é “prosélito” (os prosélitos são aqueles que, não sendo judeus de origem, abraçaram a religião judaica e aceitaram a circuncisão tornando-se assim membros do povo eleito, cf. At 6,5; 13,43; Mt 23,15). Os “tementes a Deus“ simpatizam com o judaísmo e frequentam as sinagogas, mas não chegam até a circuncisão e a prática ritual da Lei.

Enquanto em Mt 8,6 o doente (“à beira da morte”, cf. Jo 4,47) é um menino (ou criado, mas pode ser traduzido por “filho”), em Lc é claramente um “empregado”, servo ou escravo, mas “a quem estimava muito”. Lc, como Paulo, quer superar os conflitos entre classes sociais (cf. Gl 3,28; Rm 8,15; Fm 10-19 etc.). ”Se tens somente um servo, trata-o como a ti mesmo, considera-o um irmão” (Eclo 33,31).

O centurião pagão, mas temente a Deus, reclama a mediação dos judeus, de acordo com predições proféticas (Zc 8,23). Os “anciãos dos judeus” são notáveis da localidade que não devem ser confundidos com os “anciãos” de Jerusalém, membros do sinédrio (cf. 20,1p etc.).

Em Mt e Jo, o próprio oficial dialoga com Jesus, mas em Lc não é ele, porquê? A intermediação, primeiro pelos “anciãos” e depois pelos “amigos” (judeus?, v. 6), é própria de Lc. Ele não fala mal dos costumes, da lei e do povo judeus como os outros evangelistas (Lc omite Mt 8,11s), ao contrário, mostra a unidade que devia ter na igreja formada de judeus e pagãos. Por isso, introduz os intermediários judeus nesta cura, cf. Jerome Kodell no Comentário Bíblico III (p. 84): Se os judeus praticantes de seu tempo trouxeram um não-judeu até Jesus e este foi a ele sem evasivas – o argumento da igreja deve ter surtido efeito – porque os cristãos judeus não haveriam de aceitar os pagãos?

Então Jesus pôs-se a caminho com eles. Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei digno de ir pessoalmente ao teu encontro. Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado (vv. 6-7).

Lc sublinha a humildade do centurião que reconhece a dignidade especial de Jesus: mais uma vez aproxima-se dele por intermediários e não se atreve a hospedá-lo (sabe da proibição judaica de entrar nas casas de pagãos, cf. Jo 18,28; At 11,3) nem falar com ele pessoalmente. O que mais importa é que crê no poder sobrenatural de Jesus. Enquanto o povo procura tocá-lo para receber dele seu fluido curador (6,19), o centurião reconhece que basta uma palavra, uma ordem de Jesus para a cura acontecer.

A liturgia cristã conservou a frase de centurião no contexto da eucaristia. Seu pedido (como exemplo de fé e humildade) entrou na liturgia da missa. Antes de receber o Corpo de Cristo dizemos: “Senhor, eu não sou digno, que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra, e serei salvo” (o corpo como morada da alma). “Quem ousaria aproximar-se de mim?”, pergunta Deus em Jr 30,21 (cf. Ex 19,12; 33,20).

Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um : ‘Vai!’, ele vai; e a outro: ‘Vem!’, ele vem; e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz” (v. 8).

A experiência militar é imagem para expressar esse poder de Jesus. Um modo de fazer próprio de soberano e autoridades é por meio da palavra, ou seja, dando ordens: é fazer fazer. Dessa condição são as ordens criadoras de Deus (Gn 1; Sl 33). O centurião o experimentou dentro do regime e da hierarquia militar. Ele chamou Jesus de “Senhor” (v. 6), título que alude a divindade de Jesus (Fl 2,11) e será usado por Lc em v. 13. Em várias ocasiões, os evangelistas citam palavras soberanas de Jesus pronunciadas sobre a criação para melhorá-la ou restaurá-la (cf. Jo 5,17).

Mas curiosamente, o narrador Lc não menciona essa palavra de Jesus (Mt 8,13; Jo 4,50), diz apenas que se põe “a caminho com eles” (v. 6; cf. 24,15; a palavra de Jesus em Mt 8,13 destaca a fé) e depois o empregado se recuperou (v. 10).

Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé.” Os mensageiros voltaram para a casa do oficial e encontraram o empregado em perfeita saúde (vv. 9-10).

O relato desemboca, não na admiração do povo como em outras curas (4,36), mas na admiração de Jesus diante da fé do pagão (cf. ao contrário, a falta de fé dos nazarenos em Mc 6,5-6p). Porque Lc está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, a reação de Jesus é menos dura para Israel do que a de Mt 8,10-12. Para a igreja de Lucas (seus leitores eram pagãos gregos e romanos), a fé do pagão é exemplar e consoladora. Fé no poder e na misericórdia de Jesus, na palavra que penetra no tecido da vida humana.

O oficial era «temente a Deus», isto é, simpatizante do judaísmo, embora não pertencesse oficialmente aos seus quadros religiosos. Às vezes pode-se encontrar mais fé em pessoas que não pertencem a uma instituição religiosa do que entre aquelas que dela fazem parte. Por quê? A Igreja deve reconhecer a fé e a boa vontade de pessoas fora da sua instituição e se alegrar e dialogar em vez de condenar (em vez de criticar o cisco no olho do outro e não ver a trave no próprio, cf. 6,42).

O site da CNBB comenta: Uma coisa é a fé em si, e outra coisa é como ela se expressa. Para muitos, a fé em si nem sequer é percebida, de modo que existe uma necessidade muito grande de ritualismo e de formas exteriores de expressão da fé. Quem tem verdadeiramente fé em Jesus, acredita na autoridade do seu nome e na força da sua Palavra, e não necessita de manifestações exteriores para acreditar na eficácia da sua ação. Deste modo, todos nós somos convidados a reconhecer que a grandiosidade da fé do Centurião que acreditou plenamente no poder da Palavra de Jesus e não exigiu dele nenhum rito ou gesto exterior e, porque acreditou, foi atendido naquilo que desejava.

 

 

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