3 de Outubro de 2020, Sábado: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos.

26ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Jó 42,1-3.5-6.12-16 (hebr. 1-3.5-6.12-17)

Ouvimos hoje o final do livro de Jó, primeiramente a sua segunda reposta ao discurso de Deus, em seguida a restauração da saúde e da prosperidade de Jó que corresponde ao início do livro (caps. 1-2: prólogo).

Jó respondeu ao Senhor, dizendo: “Reconheço que podes tudo e que para ti nenhum pensamento é oculto. – Quem é esse que ofusca a Providência, sem nada entender? – Falei, pois, de coisas que não entendia, de maravilhas que ultrapassam a minha compreensão (vv. 1-3).

Jó responde ao segundo discurso de Javé com maior contrição. Não só se cala (40,3-5), mas reconhece o poder de Deus onisciente numa acusação própria (“Quem é esse…”, como em 38,2), não de culpas puníveis, mas de ignorância e presunção nas palavras. (cf. Sl 139,6 e Pr 30,2-3). A Bíblia do Peregrino (p. 1136) comenta: Se Jó e ignorante, não tem direito de reclamar, mas tampouco pode ofender, sua ignorância é desculpa ou atenuante. Se é ignorante, não pode ganhar o pleito, mas tampouco o perde. Eele pode ganhar Deus, que vale mais e ganhar a si mesmo para Deus. Sua confissão será vitória para Deus sem ser a derrota e Jó.

Conhecia o Senhor apenas por ouvir falar, mas, agora, eu o vejo com meus olhos (v. 5).

Diferente dos escribas de Israel ou dos amigos de Jó, o poeta afirma a possibilidade de certa experiência direta de Deus, que desvalorizará as tradições herdadas. “Ver Deus” corresponde à esperança de Jó em 19,25-27 (cf. Gn 24,11; Ex 33,20; Nm 12,6-8; Eclo 43,11; Jo 1,18; 6,46; 12,21; 14,9; 1Jo 3,2; 4,12). Para a oposição ouvir/ver, cf. a sabedoria de Salomão em 1Rs 10,6s.

Aqui não se trata de uma visão propriamente dita, mas sim uma percepção nova da realidade de Deus. Jó conhecia Deus apenas de segunda mão, “apenas por ouvir falar”, apenas possuía uma idéia de Deus transmitida pela tradição. Agora penetrou no mistério, e inclina-se perante a Onipotência. Suas interrogações sobre a justiça perfeita ainda permanecem sem resposta. A doutrina da justiça escatológica, de recompensas e das penas de além-túmulo e a da ressurreição (preparadas pela esperança de Sl 16,10s; 49,16), só aparecem depois de Jó, já no fim do Antigo Testamento (Sb 3,4s; 2Mc 7; 12,38; Dn 12,2s).

Mas Jó compreendeu que Deus não tem de prestar contar, e que Deus é maior de tudo e sua sabedoria pode conferir um sentido insuspeito a realidades como o sofrimento e a morte. Jó descobriu que o problema da injustiça não é teórico, mas prático. Deus não é seu inimigo, mas sim um companheiro de luta por um mundo mais justo.

A Bíblia do Peregrino (p. 1145) comenta: Algo semelhante à mudança do Salmo 73: Jó se encontrou com Deus, essa profunda experiência religiosa supera toda a tradição teológica das escolas, os discursos dos sábios; mais ainda, supera uma ideia limitada a respeito de Deus, ideia que distinguia seu saber de sua justiça. Deus era um tema de discussão na boca dos amigos; Deus é agora alguém que Jó encontrou. Chegou a esse ponto pelo caminho da palavra tenaz. Deus não fechou a boca de Jó quando terminou sua maldição inicial. Deus não quer colaboradores mudos; faziam-lhe falta as palavras de Jó. Porque faziam falta para nós: somos um povo crítico, também de Deus, e Jó é nosso porta-voz. Por isso não podia calar. Mais além da nossa crítica, do Deus que nossa crítica imagina, soa a voz de Deus cada vez mais verdadeiro. Jó não podia calar-se.

Por isso me retrato e faço penitência no pó e na cinza” (v. 6).

“Por isso me retrato”; a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1226) comenta: Trata-se menos de uma retratação que de uma tomada de consciência da relação, até então desconhecida, que une Jó ao Deus santo. O herói é, a um tempo, esmagado pela majestade divina e emocionado pela delicadeza que o mantém vivo, no meio de um universo imenso e enigmático.

“No pó e na cinza”, o clássico gesto da dor e da penitencia (cf. Jn 3,6), Em 2,8 Jó estava “sentado no meio da cinza” com sinal da humilhação do homem, aqui é humanidade da penitencia.

Em seguida, apresenta-se a narrativa conclusiva que retoma o prólogo (1,1-2,13), reafirmando a teologia da retribuição. Este epílogo não menciona o conjunto de diálogos nem a revelação de Deus e a conversão de Jó (3,1-42,6), ainda que os vv. 7-9 (omitidos pela nossa liturgia) apresentem o julgamento de Javé aos três amigos no qual se mudam os papeis: os amigos que acusavam Jò de pecado e de falar mal são agora os culpados e devem pedir sua intercessão.

Narrativamente precisa amarrar as pontas do prólogo e pensar na desgraça de Jó. O v. 10 poderia ser o final: “Quando Jó intercedeu por seus companheiros, o Senhor lhe mudou a sorte e lhe duplicou todas as posses”. Mas o epilogo continua com alguns detalhes pitorescos. O prólogo (início) e o epílogo (final) formam uma unidade narrativa, provavelmente mais antiga do que os diálogos (3,1-42,9). Os vv. 10-17 mostram Jó recebendo em dobro tudo o que havia perdido.

O Senhor abençoou a Jó no fim de sua vida mais do que no princípio; ele possuía agora catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas (v. 12).

No seu discurso, o amigo Baldad promete algo semelhante (cf. 8,7).

Teve outros sete filhos e três filhas: a primeira chamava-se “Rola”, a segunda “Cássia”, e a terceira “Azeviche”. Não havia em toda a terra mulheres mais belas que as filhas de Jó. Seu pai lhes destinou uma parte da herança, entre os seus irmãos (vv. 13-15).

A narrativa que reforça a teologia da retribuição. Jó readquire sua vida social e recebe em dobro os bens que havia perdido. O texto aramaico (Targum) tem: “catorze filhos”.

Este destaque das filhas de Jó, Pomba-Rola, Cassia (ou Flor de Canela) e Azeviche (ou Laís de pálpebra lit. Chifre-de-Pigmento) é contra o costume de Nm 27,1-11; 36; Dt 21,15-17. No direito israelita, as moças só herdavam em circunstâncias excepcionais, na falta de filhos varões (cf. Nm 27,1-11). O fato comprova a riqueza excepcional de Jó.

Parece que, em Edom onde Jó vivia (1,1; cf. Gn 36,28; Lm 4,21), as mulheres podiam ser chefes de clã (cf., na posteridade de Esaú, as “chefes” Timná e Oholibamá, de Gn 36,40-41, cujo sexo é precisado em Gn 36,12 e 14). Talvez no contexto pós-exílico permanecesse o debate a respeito da herança das filhas (cf. Nm 27,1-11 e 36,1-12).

Depois destes acontecimentos, Jó viveu cento e quarenta anos, e viu seus filhos e os filhos de seus filhos até a quarta geração. E Jó morreu velho e repleto de anos (vv. 16-17).

A história de Jó se encerra com a tonalidade patriarcal das narrações de Gênesis sobre a boa morte (cf. Gn 5; 50,23; Gn 25,8 morte de Abraão; 35,29 morte de Isaac; cf. 1Cr 29,28 morte de Davi). Os “cento e quarenta anos” que viveu Jó depois da sua restauração se deve á lógica da duplicação de sua condição prévia. Setenta anos era considerado o tempo normal da vida de um homem (Sl 90,10). Parte da alegria era também ver os filhos e netos que no caso de Jó é aumentada com os seus bisnetos (“até a quarta geração”).

O texto grego contém duas adições. Na primeira aparece já a ideia de ressurreição: “Está escrito que ele ressuscitará de novo com aqueles que o Senhor ressuscitará”. A segunda, tomada, de um escrito arameu, nos diz que Jó habitava “no país de Ausítide, nos confins da Idumeia e da Arábia”; ela o identificava com Jobab (Gn 36,33).

Evangelho: Lc 10,17-24

Como os apóstolos em 9,6.10p, também os 70 (ou 72) discípulos voltam da sua missão (vv. 1-12) e relatam a Jesus.

Os setenta e dois voltaram muito contentes, dizendo: “Senhor, até os demônios nos obedeceram por causa do teu nome” (v. 17).

Jesus os enviou para anunciar o evangelho do reino de Deus e para curar (v. 9); com poder sobre os demônios, cf. 9,1; Mt 10,8). É curioso o relato dos setenta pelo que selecionam e pelo que excluem. Reconhecem Jesus como “Senhor” da missão, mas não dizem nada sobre sua pregação. O que mais lhe satisfaz é a eficácia dos exorcismos “em nome de Jesus” (At 3,6; 4,7.10,12; 16,18; 19,23s; cf. Lc 24,47). Não o conseguiram com o menino no vale (9,1.37-43). E não dizem nada da resposta das cidades à boa nova. Jesus levanta a mira.

Jesus respondeu: “Eu vi Satanás cair do céu, como um relâmpago (v. 18).

Satanás (satã em hebraico: fiscal ou rival) comparece à corte celeste para acusar os homens (Zc 3,1-2; Jó 1-2) e exerceu no mundo o poder daquele ostenta: “o deram a mim, e dou a quem quero” (Lc 4,6). Agora foi derrubado do seu lugar, como o imperador emblemático de Babilônia, “caído do céu, abatido até o abismo” (Is 14,12.14; cf. Lc 10,15). Para Lc, esta queda de Satanás não é anúncio apocalíptico (Ap 12,7-12), mas experiência da missão que acontece sempre quando o evangelho é aceito por pessoas e as tira do poder do mal.

Eu vos dei o poder de pisar em cima de cobras e escorpiões e sobre toda a força do inimigo. E nada vos poderá fazer mal. Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu” (vv. 19-20).

Graças à vitória de Jesus sobre Satanás já no deserto (4,1-12), os discípulos submeterão as potências do mal. Nenhuma resistência pode parar o evangelho do reino (cf. v. 11). O “poder e autoridade” que Jesus dá para a missão (cf. 9,1p) é o Espírito Santo, guia no caminho (4,1.14; At 8,29.39; 10,19; 11,12; 13,2.4; 20,22s) e princípio do envio (4,18; At 13,2-4). Não se deve entender ao pé da letra “poder sobre cobras e escorpiões” como proteção contra a natureza, mas “toda a força do inimigo” significa as forças astutas e perigosas do mal (como a serpente Gn 3; cf. Sl 91,13; Ez 2,6; Mc 16,17s).

Mas não basta submeter o inimigo de baixo, mais importante é pertencer ao Reino de cima, estar inscrito em seu registro: “O Senhor escreverá no registro dos povos: Ele nasceu ali” (Sl 87,6; cf. Ex 32,32; Dn 7,10; Ap 20,11.15).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1268) comenta: A ação dos discípulos produz os efeitos esperados. Mas o poder que eles receberam não deve ser motivo de orgulho e vanglória. O que interessa é a contribuição decisiva que deram para o enfretamento do mal e para a libertação de tantas pessoas, que tiveram recuperada a dignidade de suas vidas.

Naquele momento, Jesus exultou no Espírito Santo e disse: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue pelo meu Pai. Ninguém conhece quem é o Filho, a não ser o Pai; e ninguém conhece quem é o Pai, a não ser o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (vv. 21-22).

Este júbilo de Jesus e a bem-aventurança em seguida, Lc copiou da sua fonte comum com Mt (chamada Q; cf. Mt 11,25-27; 13,16s), mas destaca o “Espírito Santo” (cf. 1,41.67; 2,25-27). Junto com a transfiguração (9,28-36), este é um momento culminante do evangelho. Uma alegria sobre-humana, infundida pelo Espírito Santo, brota incontida e se expressa nessa confissão. Com estas palavras Jesus se transfigura e irradia luz de revelação. Sugestões ou vislumbres do AT parecem convergir neste ponto, especificamente da Sabedoria personificada (Pr 8,22-31; Eclo 24).

A oposição entendidos (“sábios e inteligentes”) e ignorantes (“pequeninhos”) é clássica na literatura sapiencial (Eclo 21,12-24 e outros). Aqui invertem-se os valores em virtudes de uma revelação superior e em paralelo com outras inversões (cf. o canto de Maria em 1,51-53 e as bem-aventuranças em 6,20-26). Os entendidos são aqui os chefes judeus; os ignorantes são os discípulos (compara-se com a função da lei, que “instrui o ignorante”, no Sl 19,8); mas o enunciado ultrapassa o horizonte temporal (cf. 1Cor 1-2). O Pai revela antes de tudo a filiação única de Jesus (3,22; 9,35). Jesus é o filho, revelador do Pai (o evangelho de João desenvolverá essa teologia).

Jesus voltou-se para os discípulos e disse-lhes em particular: “Felizes os olhos que veem o que vós vedes! Pois eu vos digo que muitos profetas e reis quiseram ver o que estais vendo, e não puderam ver; quiseram ouvir o que estais ouvindo, e não puderam ouvir” (vv. 23-24).

Jesus se dirige especialmente aos discípulos em particular. Talvez Lc quisesse sublinhar com isso o papel importante deles como testemunhas oculares (1,2; At 1,21s; 4,20; 10,39). Essa é uma bem-aventurança para o “ver” e o “ouvir” penetrando em termos de encarnação; ver e ouvir no e pelo Filho ao Pai (cf. 1Jo 1,1-2). O apóstolo Paulo insistiu bastante nos prolongados silêncios que cercaram o “mistério” (Rm 16,25; cf. 1Pd 1,10-12) antes de se revelar no Filho de Deus. “Profetas”, que vislumbravam o futuro, e “reis”, que prolongavam a dinastia: pode-se aduzir o pedido do povo (Is 63,19), a menção de reis (Is 52,15 e 60,3) e também Davi, rei-profeta, como suposto autor dos salmos. Eclo 48,11 refere-se à volta de Elias: “Feliz quem te vir antes de morrer”; Em Lc, o velho Simeão confessa: “meus olhos viram” (2,29-30). Os discípulos são testemunhas privilegiadas dessa revelação, que se estenderá a todos os cristãos.

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, podemos perguntar: por que as pessoas mais simples e humildes recebem com maior facilidade a mensagem do evangelho do que as sábias e inteligentes? A resposta, à luz do evangelho de hoje, parece fácil: é porque Deus revela as coisas a elas e as esconde aos sábios e inteligentes. Será que foi exatamente isso que Jesus quis dizer? Parece que não, pois nos mostraria um Deus injusto, que faz distinção de pessoas. Para os inteligentes e sábios, que confiam nos próprios conhecimentos, a abertura aos mistérios da fé é algo de primitivo e irracional e, com isso, o mistério fica oculto a eles, não porque Deus escondeu, mas porque eles se recusam a ver. Os simples e humildes submetem a inteligência à fé e Deus pode, assim, lhes revelar seus mistérios.

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