30 de dezembro de 2016 – Sexta-feira, Natal, Festa da Sagrada Família, Ano A

1ª Leitura: Eclo 3,3-7.14-17a (grego 2-6.12-14)  (facultativo:  Gn 15,1-6; 21,1-3)

No domingo da Sagrada Família, a liturgia nos apresenta um texto que aprofunda o quarto mandamento “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem seus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Ex 20,12; cf. Dt 5,16; Ef 6,1-3). Já no Ex e Dt, este mandamento traz uma promessa (vida longa na terra). No texto de hoje, há mais promessas e recompensas ainda. O livro é chamado “Eclesiástico” por causa do seu uso oficial na ekklésia (Igreja, Assembleia), principalmente na instrução dos neo-batizados.

O livro de Eclo faz parte dos sete livros deuterocanônicos, ou seja, não se encontra na Bíblia Hebraica e, portanto, não nas Bíblias protestantes. Foi escrito em hebraico por Jesus Ben Sirac, mestre de sabedoria e em 130 d.C. traduzido para o grego pelo seu neto no Egito (cf. introdução e 50,27; 51,30). O texto hebraico se perdeu e foi transmitida apenas sua versão grega, mas nos séculos passados, alguns fragmentos hebraicos foram recuperados (daí a diferença na numeração dos versículos).

No texto de hoje transparece o choque entre os jovens judeus influenciados pela nova cultura grega e seus pais/anciãos tradicionais.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta o conjunto 3,1-16 (nossa liturgia selecionou apenas uns vv.): Depois da grande introdução, que define a atitude do discípulo em relação a Deus – tema relacionado com o primeiro mandamento -, o mestre passa a dissertar sobre o primeiro mandamento da “segunda tábua”, ou seja, deveres para com os pais. Comenta-o com reflexões sapienciais e com exortações de inspiração deuteronômica. O tratado compreende introdução, três estrofes de quatro versículos e conclusão.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: O texto é dirigido a pessoas adultas, que devem observar a Lei. Trata do cuidado para com os pais, especialmente os idosos. O amor e o dever de cuidar não cessam quando o filho se torna emancipado da família de origem, mas permanece o dever de gratidão. A principal atitude inculcada no texto é a de “honrar” os pais. Um dos dez mandamentos (cf. Ex 20,12; Dt 5,16) é aqui concretizado e explicitado, evocando a ternura que deve reinar na família.

Deus honra o pai nos filhos e confirma, sobre eles, a autoridade da mãe. Quem honra o seu pai, alcança o perdão dos pecados; evita cometê-los e será ouvido na oração quotidiana. Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe (vv. 3-7).

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: Os quatros versículos repetem o termo “honrar”. O termo hebraico abrange tanto o respeito à sua autoridade como o sustento em sua necessidade: ver Mt 15,4-6. A distinção “pai” e “mãe” tem função normal: todos os conselhos valem para ambos, pois a mãe está situada no mesmo nível. O último versículo, conforme costume do autor, vincula o preceito ao respeito devido a Deus. No v. 6 começa o texto hebraico conservado: cf. Ex 20,12.

Como em Ex 20,12 (cf. aqui v. 7: “vida longa”), há recompensas no plano humano: quem honra os pais terá alegria com os próprios filhos (v. 6). Há recompensa também no plano religioso: o amor aos pais perdoa os próprios pecados (vv. 3/4.14-15) e quem os honra será atendido quando rezar (vv. 5.15). Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A relação com os pais toca em Deus: quem os honra, os venera, honra a Deus. Por quê? Os filhos são dados por Deus e por isso devem agradecer a vida a Deus, honrando, respeitando, amando seus pais.

No v. 8b (omitido em nossa liturgia) se diz: “Ele servirá a seus pais como ao seu Senhor”; a versão grega traz: “como a seus senhores” (superiores). Obedecer e honrar aos pais resulta em benção (cf. vv. 9-11), enquanto a desobediência leva à maldição (cf. v. 18).

Meu filho, ampara o teu pai na velhice e não lhe causes desgosto enquanto ele vive. Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele; não o humilhes, em nenhum dos dias de sua vida, a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados e, na justiça, será para tua edificação (vv. 14-17a).

O quarto mandamento não se deve restringir à obediência que os menores devem aos pais, mas inclui a “caridade” (lit. esmola) aos idosos, não lhes causar desgosto (abandoná-los), mas ser misericordioso (compreensivo) com eles.

A Bíblia do Peregrino (p. 1579) comenta: A conduta inculcada deve durar a vida toda, também quando o pai for ancião, e o filho maduro (Pr 23,22). Inclui como antes o aspecto genérico de ajuda, “não o abandones”, e o de honra, “não o envergonhes” (Pr 30,17). Parece antecipar-se a uma objeção ou pergunta: o que fazer quando o pai se desonra com a senilidade? Dois versículos introduzem o tema da esmola: não feita ao pai, mas feita por ele. Quando o pai é ancião e incapaz de ajudar, a esmola que fez permanece como um capital de ajuda e proteção, mais ainda que os tesouros. “Pagar” e “pecados” fazem eco ao v. 3.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Atualmente, a idade avançada, mais frequente que no passado, traz consigo também o desafio do amor gratuito, quando os pais não podem mais, humanamente, oferecer uma recompensa. É então o momento de os filhos, não sem sacrifícios, oferecerem o conforto de sua presença, o consolo de seu sincero amor filial e a disposição de propiciar-lhes um envelhecimento digno e minorar seus sofrimentos. Tal tarefa é exigente, e só se consegue levá-la adiante com êxito se vivida com o amor que vem de Deus.

2ª Leitura: Cl 3,12-21

A leitura desta carta apostólica traz exortações à comunidade cristã e uma orientação para os relacionamentos familiares.

Pelo que diz a carta, a comunidade de Colossas (200 km a leste de Éfeso na Ásia menor, hoje Turquia) não foi fundada nem visitada por Paulo (cf. 1,4.9; 2,1), mas a “Palavra da Verdade, o Evangelho” chegou lá através de Epafras, um discípulo de Paulo (1,7; 4,12; cf. Fm 23). Uns peritos biblistas atribuem a autoria da carta ao apóstolo Paulo, colocando-a entre as cartas do cativeiro que são Fl, Fm, Ef, escritas na prisão em Éfeso (56-57) ou em Roma (60-64). Outros afirmam que duas cartas Cl e Ef (Ef depende de Cl) seriam “deuteropaulinas”, ou seja, teriam sido escritas mais tarde, na segunda geração cristã por discípulos de Paulo, por volta de 80 a 90 d.C. Este costume de época chama-se “pseudepigrafia”, ou seja, discípulos escrevendo em nome do seu mestre (já em Isaias vemos três etapas/autores diferentes: caps. 1-39; 40-55; 56-66), não para falsificar, mas para homenagear e dar continuidade espiritual. Além do estilo e vocabulário diferente de Paulo, esta opinião baseia-se também em outras observações, por exemplo: a descrição de uma igreja mais universal e estruturada em que o Evangelho produz fruto já “no mundo inteiro” (1,6) indica um período posterior ao pioneiro Paulo. Portanto, a carta aos Colossenses poderia ser escrita pelo próprio Epafras (ou alguém do seu grupo) para demonstrar a “autenticidade” (cf. 1,7) da doutrina apostólica, com a qual se pretende refutar em seguida doutrinas alheias que estavam ameaçando a fé da comunidade.

Também hoje a fé e a família estão ameaçadas por diversas doutrinas e costumes contrários aos ensinamentos cristãs.

Na leitura de hoje, o autor da carta apresenta primeiro a parte positiva da conduta cristã (cf. a parte negativa do “homem velho”, ou seja, a conduta do pagão, em vv. 5-11; o homem novo é aquele que renasceu no batismo). É um programa pouco articulado, mas toca pontos essenciais (cf. Ef 4,1-2.32) para a convivência em comunidade. Depois, nos vv. 18-21 concentra-se nas relações das pessoas em casa (família).

Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro. Como o Senhor vos perdoou, assim perdoai vós também. Mas, sobretudo, amai-vos uns aos outros, pois o amor é o vínculo da perfeição (vv. 12-14).

O autor aplica títulos do povo escolhido no AT (Is 43,20s; Ex 19,5s), retomados por 1Pd 2,9. Os sentimentos do povo de Deus devem corresponder aos do Senhor (cf. Ex 34,6s; Fl 2,1-5). Pode-se referir a condição depois do batismo (filhos amados, santos eleitos), por isso, depois do banho, precisa vestir-se com virtudes.

Nesta carta destaca-se a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”; cf. em seguida os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1). O perdão mútuo inspira-se no modelo de Cristo, um eco do pai-nosso (Mt 6,12-15; 18,21-35). “Acima de tudo, … o amor, que é o laço da perfeição” (v. 14); Compare-se o hino ao amor (caridade), que supera todos os carismas, em 1Cor 13 (cf. Rm 13,8-10; Mt 5,43-48).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A primeira parte, exortativa, põe a ênfase no amor fraterno. O acento está na reciprocidade do amor e em suas manifestações concretas: bondade, compaixão, humildade, mansidão, longanimidade, um elenco de virtudes que exigem grande empenho pessoal (v. 12). Para tanto, porém, há forte motivação. O motivo último do amor não é jamais o próximo (o que ele é, o que fez ou não a mim etc.), mas a nova condição do cristão: Deus me santificou, me escolheu, me amou. Amo porque me sei amado, primeiro, e porque Cristo recriou meu ser. Posso, assim, viver a caridade que vem do Cristo, o amor paciente, humilde, que não guarda rancor, que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf. 1Cor 13,4-7).

Nessa história, o amor conhece os limites das pessoas e dos relacionamentos humanos. Por isso, faz parte do amor suportar-se mutuamente e perdoar. Também aqui o motivo é transcendente: perdoar como o Senhor perdoou (v. 13). E como ele o fez? Perdoou totalmente, sem exigir nada, a não ser a abertura e o acolhimento. Um perdão gratuito, sem limites, no qual não se contam quantas vezes se perdoou (setenta vezes sete!). O perdão expressa de modo particular o amor: é o amor que persiste dando, doando, perdoando. E, assim, o amor supera qualquer expectativa e constitui a união máxima entre seres por vezes tão diferentes. É ele que mantém a comunidade unida e a leva à perfeição (v. 14).

Que a paz de Cristo reine em vossos corações, à qual fostes chamados como membros de um só corpo. E sede agradecidos (v. 15).

O critério para superar litígios deve se construir ou restabelecer, a paz de Cristo (Fl 4,7; Ef 2,14; Jo 14,27); há de reinar sintonia e harmonia porque os cristãos são os membros do mesmo corpo, cf. o conceito paulino da Igreja como corpo de Cristo com diversos membros e dons/carismas (1Cor 12,12; Ef 2,16; 4,3-4).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A paz, que é dom de Cristo, surge então como consequência dessa vivência recíproca do amor. Sendo Deus a fonte de todo amor, cabe ao cristão, que vive nesse amor, agradecer a Deus (v. 15).

Que a palavra de Cristo, com toda a sua riqueza, habite em vós. Ensinai e admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria. Do fundo dos vossos corações, cantai a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais, em ação de graças (v. 16).

“A palavra de Cristo”, outros manuscritos trazem “do Senhor” ou “de Deus”. O texto primitivo trazia talvez simplesmente: “A palavra” (cf. Fl 1,14; Mc 4,13-20). Parece referir-se às reuniões litúrgicas, com ensinamentos partilhados ao mesmo nível (cf. Jr 31,34; 1 Jo 2,27) e cânticos inspirados pelo Espírito. Trata-se indubitavelmente de improvisações “carismáticas” sugeridas pelo Espírito durante as assembleias litúrgicas (Cf. 1Cor 12,7; 14,26; Ef 5,19s), hinos ou súplicas cristãs, compostos a imitações dos salmos; alguns deles passaram ao NT (cf. 1,15-20; Ef 1,3-14 etc.).

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: A segunda parte da exortação frisa a importância de ter uma vida modelada pelo evangelho. A Palavra de Cristo, seu evangelho, deve habitar no cristão como num santuário (v. 16). Se é assim, na comunidade os membros se edificam mutuamente: pela instrução mútua; pela celebração em conjunto (salmos, hinos, cânticos), em ação de graças. Tudo isso transborda no falar e no agir, que têm sempre sua origem no Senhor e são feitos por causa dele (vv. 16-17).

Tudo o que fizerdes, em palavras ou obras, seja feito em nome do Senhor Jesus Cristo. Por meio dele dai graças a Deus, o Pai (v. 17).

Da fé se passa à vida, da liturgia se passa ao resto da existência sob o signo de Jesus como Senhor e de Deus como Pai (1Cor 10,31).

Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor. Pais, não intimideis os vossos filhos, para que eles não desanimem (vv. 18-21).

Como em Ef 5,21-6,9 (cf. 1Pd 2,13-3,7), seguem-se os preceitos particulares de moral doméstico e trabalhista em 3,18-4,1 (nossa liturgia omitiu a relação dos senhores e escravos que se encontravam também em casa), na qual também se destaca a reciprocidade (“mutuamente”, “um ao outro”). O autor da carta não propôs uma revolução das estruturas sociais (por ex. insurreição dos escravos como fez Spartacus e que foi derrotada em 70 a.C.), mas uma mudança nos corações inspirada no mandamento do amor cristão: amar o próximo como a si mesmo, amar como Cristo nos amou.

Se por um lado aceita a desigualdade de grau, por outro insiste em deveres correlativos, entre marido e mulher, pai e filho, patrão e escravo. Tudo deve acontecer com sentido religioso: “como agrada ao Senhor, por respeito ao Senhor, servindo ao Senhor, um Senhor no céu”. Os conselhos práticos são culturalmente condicionados. Mas o fato de passar da doutrina à prática é um ensinamento ou exemplo permanente.

Na Vida Pastoral (2015), Maria de Lourdes Corrêa Lima comenta: Dessa maneira, se a mulher devia estar subordinada ao marido, isso se deveria dar “como convém no Senhor” e não segundo um modelo social qualquer. Não se explica o que “convém no Senhor”, como se fosse coisa já conhecida pela comunidade. Mas as exortações ao amor mútuo feitas imediatamente antes oferecem indicações nesse sentido. De forma paralela, também os maridos devem “amar suas esposas”, um modo de falar que não era tão comum na época – e, mais, com o amor cristão delineado nos vv. 12-15. A mesma relação de amor recíproco deve permear o relacionamento entre pais e filhos (vv. 20-21).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1443) comenta o conjunto de 3,18-4,1: A carta desce a aplicação concretas na vida prática para a família e para a sociedade. Cabe lembrar que o contexto é da família patriarcal e da sociedade escravista (Ef 5,21-32; Tt 2,1-10). Imaginar outra estrutura familiar e política, simplesmente, não era fácil para a época. Mas, ao interno dessas estruturas, a proposta de relações é bem diferenciada. A subversão na relações se dá primeiramente pelo senhorio de Jesus Cristo. Já não há senhores e escravos na sociedade, quando todos têm um só Senhor no céu. Outro elemento que subverte as relações é que se estabelece a reciprocidade total. Se alguma prioridade existe, é justamente em prol dos mais fracos. Daí porque, na ordem das recomendações, o texto privilegia as mulheres, os filhos e os escravos. Um terceiro elemento muito forte de subversão é o caso do escravo que se torna herdeiro (v. 24).

Evangelho: Mt 2,13-15.19-23

Neste domingo da Sagrada Família, nossa liturgia nos apresenta um trecho do Evangelho do Ano A (Mt): a fuga ao Egito e o retorna à Terra Santa, sob as ordens do anjo que inspira José em sonho. Hoje também muitas famílias refugiadas têm que se deslocar fugindo de terrores e sonhando com uma vida melhor.

O evangelho de hoje pressupõe o da Epifania, ou seja, a visita dos três magos do oriente (Mt 2,1-12). Na sua busca pelo recém-nascido rei dos judeus chegaram primeiro ao palácio de Herodes em Jerusalém. Este não era descendente de Davi, rei legítimo, mas usurpador pela graça de Roma. Para saber o lugar deste nascimento, chamou os escribas que encontraram a profecia de Mq 5,1-4 sobre a cidade de Belém. Fingindo-se piedoso, Herodes pediu os magos que lhe informassem o lugar exato depois de encontrarem o recém-nascido. Guiados pela estrela, os magos chegaram à casa onde a Sagrada Família estava (em Mt, ela morava em Belém, só em v. 23 se muda a Nazaré).

Depois que os magos partiram, o Anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo”. José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito (vv. 13-14).

Os magos partiram “por outro caminho” (v. 12), porque foram avisados em sonho de que não retornassem a ir ter com Herodes que, na verdade, queria matar o recém-nascido rei que seria seu rival e rei legítimo (o messias, descendente de Davi).

José continua em seu papel de confidente sofrido e eficiente. Como seu ancestral, o patriarca José, ele é sonhador (cf. 1,20) e escapa da morte indo ao Egito (cf. Gn 37-50). Ele enfrenta os problemas domésticos e transcendentais, e os resolve obedecendo as ordens divinas em sonho transmitidas pelo “Anjo do Senhor” (cf. 1,20; 2,13.19.22). Relatos parecidos se encontram nos sonhos de Abimelec (Gn 20,3-7), de Labão (Gn 31,24) e mais particularmente de Jacó na noite de sua partida para Egito (Gn 46,2-4); ai se encontra também o esquema comando-execução. Em sonhos são recebidas as diretrizes de Deus conduzindo seu povo (cf. o mesmo conceito em At 16,9s; 18,9-11; 23,11 encorajando a Paulo).

A fuga é descrita semelhante à de Jacó (Gn 27,43-45), de Ló (Gn 19,15), de Moisés (Ex 2,15), e sobretudo de Jeroboão ao Egito (perseguido pelo rei Salomão, 1Rs 11,40).

Ali ficou até a morte de Herodes, para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Do Egito chamei o meu Filho” (v. 15).

Mt traduz aqui o texto hebraico de Oséias (Os 11,1) e o adapta oportunamente, sugerindo que Jesus está refazendo concretamente a sorte histórica do seu povo (veja-se também Nm 27,8). Oséias se referiu ao êxodo (cf. Os 12,14) e apresentou Israel como menino que o Senhor chama “meu filho”.

A aplicação a Jesus confere ao título outra dimensão. Israel, o “filho” do texto profético, era pois, uma figura do Messias. Essa narrativa tem um paralelo anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas: segundo estas, quando o nascimento do menino foi anunciado, ou por meio de visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as crianças recém-nascidas. A comparação com a sorte de Moisés e óbvia: salvo da morte dos meninos recém-nascidos (Ex 2,1-9), perseguido para ser morto (Ex 2,15) e em marcha com a família (Ex 4,20). Egito era também tradicional lugar de refúgio e asilo (Jeroboão em 1Rs 11,40; Jeremias em Jr 42-44).

Nossa liturgia de hoje omite o relato do massacre das crianças inocentes em Belém ordenado pela fúria de Herodes (vv. 16-18; cf. o comentário do dia 28 de dezembro).

Quando Herodes morreu, o anjo do Senhor apareceu em sonho a José, no Egito, e lhe disse: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos.” José levantou-se, pegou o menino e sua mãe, e entrou na terra de Israel (vv. 19-21).

Esta parte da narrativa é certamente influenciada pelo exilio de Moisés em Madiã (Ex 4,19-23). É significativa a fórmula repetida “o menino e a mãe” (cf. Ex 4,20 na ordem inversa) pela ordem e pelo que não diz.

O historiador judaico Flávio Josefo (37/38- ca. 100) diz que Herodes morreu depois de um eclipse lunar e que a doença final de Herodes – às vezes chamada como “Mal de Herodes” – era insuportável. A Wikipédia comenta: A partir das suas descrições, alguns peritos médicos propõem que Herodes tinha doença renal crônica complicada por gangrena de Fournier. Os estudiosos modernos concordam que ele sofreu durante toda a sua vida de depressão e paranoia. Sintomas similares estiveram presente na morte de seu neto Agripa I, em 44, sobre quem se relata que os vermes visíveis e putrefação. Estes sintomas são compatíveis com uma sarna, que pode ter contribuído para sua morte e sintomas psiquiátricos. Josefo afirmou também que Herodes estava tão preocupado pela grande probabilidade de ninguém lamentar sua morte, que ele comandou um grande grupo de homens ilustres para vir para Jericó, e deu a ordem dizendo que eles deveriam ser mortos no momento da sua morte para que assim se mostrasse a dor que ele ansiava pela sua perda. Para a felicidade deles, o filho de Herodes Arquelau e sua irmã Salomé não realizaram esse desejo do pai.

Após a morte de rei Herodes, seu reino foi dividido entre três de seus filhos, por César Augusto que confirmou o testamento de Herodes. Mas os filhos não podiam mais ter o título de rei: Arquelau recebeu a metade e tornou-se etnarca da Judeia e Samaria, a outra metade era dividido entre Herodes Antipas, que tornou-se tetrarca da Galileia e Pereia, e Filipe que se tornou-se tetrarca de territórios a leste do Jordão (cf. Lc 3,1). Os filhos de Herodes começaram contar seus governos a partir da mesma data, 4 a.C.

A morte de Herodes Grande costuma ser tomada para datar o nascimento de Cristo. Como Jesus nasceu ainda sob o reinado de Herodes (Lc 1,5; Mt 2), temos um problema com nossa contagem de anos, porque Herodes morreu em março ou abril do ano 4 a.C., então Jesus deve ter nascido um pouco antes, “antes de Cristo”, quer dizer, antes do ano zero da nossa contagem de anos, talvez 5 ou 6 a.C. Na época, os anos foram contados pelos governos (cf. Lc 3,1s), ou a partir da fundação de Roma (753 a.C.).

Séculos depois, quando o Império Romano se tornava cristão, surgiu o anseio de contar os anos não mais a partir da fundação de Roma, mas do nascimento do Filho de Deus. Em 532, o monge Dionísio Exíguo foi encarregado de fazer um novo cálculo, mas errou tomando ao pé da letra o número em Lc 3,23: “Ao iniciar se ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos”; Exíguo calculou com “trinta anos”. Hoje se sabe que Herodes morreu quatro anos antes do ano zero calculado por este monge. Corrigir o erro hoje não faz muito sentido, porque não sabemos a data exata quando Jesus nasceu (no ano 05, 06 ou 07 a.C.?) nem quanto tempo a Sagrada Família ficou no Egito.

Mas, quando soube que Arquelau reinava na Judéia, no lugar de seu pai Herodes, teve medo de ir para lá. Por isso, depois de receber um aviso em sonho, José retirou-se para a região da Galileia, e foi morar numa cidade chamada Nazaré (vv. 22-23a).

Dados históricos sobre Arquelau, filho de Herodes, justificam esse temor de José. Este etnarca reinava sobre a Judeia, Samaria e Iduméia de 4 a.C. a 6 d.C. e era ainda mais cruel do que seu pai. Por isso foi destituído pelo imperador Augusto, a pedido de uma delegação de judeus e samaritanos que foi até Roma (cf. a parábola Lc 19,12-27). Arquelau foi exilado em Viena na Gália e seu domínio foi entregue a um governador romano (Pôncio Pilato exerce esta cargo de 26-36) com residência fixa no litoral em Cesareia, capital da nova província da Judeia, mas em momentos críticos como a festa da Páscoa ficava em Jerusalém.

Por outro aviso em sonho, José partiu (obviamente com sua família) para Galileia, região governada por Herodes Antipas, irmão de Arquelão (cf. Lc 3,1).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1188-1189) comenta: Enquanto no passado Moisés fugiu “do” Egito, Jesus agora foge “para o” Egito: a terra prometida se tornou o lugar da violência e da opressão. Jesus realiza no início de sua história um trajeto semelhante ao de Moisés, e assim evidencia o sentido da sua ação: trata-se do Messias de Deus. Deslocando-se para Nazaré da Galileia, a periferia de Israel, começará daí sua atuação libertadora.

Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno” (v. 23b).

Pela quinta vez (cf. 1,22s; 2,5s.15,17s), Mt destaca o cumprimento das profecias como prova de que Jesus é o messias prometido. Difícil dizer a qual trecho da Escritura Mt se refere aqui. “Ele será chamado Nazareno”, lit. “Nazareu” (Jesus é chamado assim nos Atos: cf. At 2,22; 3,6; 4,10; 6,14; 22,8; 24,5; 26,9; cf. Lc 18,37). A Bíblia de Jerusalém (p. 1840) comenta: ”Nazareu” (nazôraios) e forma usada por Mt, Jo e At; enquanto seu sinônimo “nazareno” (nazarenos) é forma usada por Mc (Lc tem as duas formas). Ambas são as transcrições do mesmo adjetivo aramaico (nasraya), derivado do nome da cidade de Nazaré (Nasrath). Polemicamente os judeus chamaram os cristãos de “nazarenos”. Aplicado primeiro a Jesus – indicando sua origem (26,69.71) – e depois aos sequazes (At 24,5), esse termo ficou como designativo dos discípulos de Jesus no mundo semítico, enquanto no mundo greco-romano prevaleceu o nome “cristão” (At 11,26). –  Não se percebe claramente a que oráculos proféticos Mt alude aqui; pode pensar-se em nazir (Jz 13,5.7), ou em neçer, i. é. “rebento” (Is 11,1), ou de preferência em naçar, “guardar” (Is 42,6; 49,8), de onde naçur = o Resto.

Sansão era “nazireu” (nazir “consagrado” a Deus; cf. Jz 13,5-7); o voto do nazireato obriga não tomar bebida alcóolica e não cortar o cabelo (cf. Nm 6,1-21; Lc 1,15; At 18,18; 21,23-26). Mt pode aludir ao “rebento” (Is 11,1, mais provável) ou ao sinônimo hebraico “broto” (Jr 23,5; 33,15).

A Tradução Ecumênica (p. 1859) comenta: O termo não equivale nem a nazareno, cidadão de Nazaré, nem a um membro da seita dos nazorenianos. Como em 26,71, Mt vê nesta palavra um equivalente de “galileu” (26,69), sendo que ali se pode compreender: “aquele de Nazaré” (21,11; cf. Jo 1,45; At 10,38). Não é impossível que Mt tenha querido evocar o “Santo de Deus por excelência”, o nazir (Jz 13,5; cf. 16,17; Mc 1,24).

O evangelista desenvolve mais tarde o que significa o apelido “Nazareno/Nazoreu” segundo as Escrituras. Nazaré fica na “Galileia das nações (dos pagãos)” (4,15). As indicações geográficas dos vv. 19-23 antecipam o caminho do Messias de Israel para os pagãos (cf. 15,21-39; 28,19). Na região da Síria, onde se encontrava a comunidade de Mt, os cristãos ainda eram chamados de “nazoraios/nazarenos”; lá em Antioquia, eles começaram anunciar o Evangelho aos pagãos e os gregos começaram chamá-los de “cristãos” (cf. At 11,20.26). O próprio Jesus vindo a Nazaré na Galileia dos pagãos, se torna nazareno, ou seja, ”cristão”, mestre e Senhor daquela comunidade que se refere a ele e o anuncia aos pagãos (cf. 28,18s).

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