30 de outubro de 2017 – Segunda-feira, 30ª semana

 

Leitura: Rm 8,12-17

Continuamos no ápice da carta, no cap. 8 que trata da vida no/pelo “Espírito” (palavra-chave repetida 29 vezes neste cap.). A vida no Espírito nos torna filhos e herdeiros de Deus. Por essa filiação divina, podemos chamar Deus de Pai e participamos da família do Espírito e recompondo nossas relações com laços familiares.

O início deste cap. era uma explanação por oposição dos dois poderes: pneuma/sarx, ou seja,Espírito” e “carne” (cf. leitura de sábado passado: 8,1-11). Paulo emprega a palavra oposta ao “espírito”, em grego pneuma, que pode designar o “espírito” humano (com letra minúscula) ou o divino (“Espírito” com letra maiúscula em português; mas na época de Paulo, não existiam ainda letras minúsculas). A palavra “carne”, em grego sarx, corresponde ao hebraico basar, que designa qualquer ser vivo, em especial o ser humano na sua condição fraca e caduca. Das diversas traduções propostas em português, “carne” desfoca o significado, devido a nossos hábitos linguísticos; melhor seria “instintos egoístas” (antiga Bíblia Pastoral) ou “baixos instintos”.

Irmãos, temos uma dívida, mas não para com a carne, para vivermos segundo a carne. Pois, se viverdes segundo a carne, morrereis, mas se, pelo espírito, matardes o procedimento carnal, então vivereis (vv. 12-13).

O Espírito exige de nós uma vida não “segundo a carne”, mas segundo o Espírito (o segundo membro da antítese está subentendido). “Pelo espírito, matardes o procedimento carnal”, lit. “vós fazeis morrer as obras do corpo”. Aqui “corpo” é sinônimo de “carne” (cf. 6,6) e designa um gênero de vida centrado em si mesmo, um instinto egoísta.

A Bíblia do Peregrino (p. 2720) comenta: Mortificar significa dar morte; seu objeto devem ser as ações hostis a Deus e contrárias à vida cristã. O Espírito dá forças para isso.

Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus (v. 14).

Pela fé (e sua expressão sacramental, o batismo, cf. Gl 3,25-29) recebemos o Espírito como guia, “mestre interior” (cf. o paráclito em Jo 14,16s.25s; 15,26s; 16,7-15) e princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. 5,5; Gl 2,20; Jo 1,12s).

De fato, vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! (v. 15).

O Espírito é o princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. Gl 2,20), não é um “espírito de escravidão” (lit.), mas um “espírito de adoção filial” (lit.). O “medo” caracteriza a escravidão; o amor a filiação (cf. 1Jo 4,18).

Já no cap. 6 (cf. leituras de quarta e quinta-feira da semana passada), Paulo usou o tema da escravidão para descrever a situação do ser humano pecador. O apóstolo não convoca para uma revolta de escravos como Spartacus fez em Roma 73 a.C., que terminou com a derrota e a crucificação de 6000 escravos dois anos depois. Paulo quer libertar o homem de dentro, do seu egoísmo (carne), dos vícios pagãos, da rigidez da lei judaica, superando as divisões de nação, raça, gênero e classe para uma vida de fraternidade e partilha (cf. Gl 3,28; 1Cor 11, 17-34; Fm). O lema da revolução francesa (1789) foi “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, são palavras-chaves já nas cartas de Paulo.

“Abá” (Abba: pai, papai) é termo aramaico, umas das poucas palavras apresentadas na língua de Jesus, que mostra sua originalidade (outras são: Amém, Rabi, Hosana). Com esta palavra as crianças dirigiam-se carinhosamente se dirigiam aos pais. Mesmo escrevendo em grego, Paulo e Mc preservam esta expressão filial na língua original, característica da familiaridade e ternura de Jesus e de seu Pai (cf. a própria oração de Cristo no Getsêmani em Mc 14,36; cf. Mt 11,25; Lc 22,42 etc.) da qual, através do Espirito, os cristãos participam (Gl 4,6; cf. Jo 1,12s). Talvez Paulo aluda ao começo do Pai-nosso, na tradição de Lucas (Lc 11,2).

No AT, Deus se mostra como pai do coletivo, do povo de Israel: libertador (Ex 4,23), educador (Dt 8,5), desfraldado (Dt 32,6; Is 1,2; 63,8.16), afetuoso (Jr 31,20; Os 11,1), compreensivo (Sl 103,13); também é pai do rei que representa o povo (Sl 2; 89,27s; 2Sm 7). Só duas vezes, num texto tardio, um indivíduo chama Deus de Pai (Eclo 23,4; 51,10). No NT, porém, a revelação de Deus como Pai é central.

O próprio Espírito se une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus (v. 16).

Duas testemunhas confirmam nossa filiação divina: nosso instinto filial ou “espírito de filhos”, que nos sugere o apelo afetuoso “Abba”, e o Espírito de Deus (cf. 1Jo 4,18). Assim lembra os dois testemunhos distintos exigidos, segundo Dt 19,15 (citado em Jo 8,17; Mt 18,16; 2Cor 13,1).

E, se somos filhos, somos também herdeiros – herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo -; se realmente sofremos com ele, é para sermos também glorificados com ele (v. 17).

No AT, a herança designa a posse da Terra prometida (Dt 4,21: traduzido às vezes por “patrimônio”), e não supõe evidentemente a morte de ninguém. A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: No NT, a Terra prometida se torna o conjunto dos bens divinos: o Reino (Mt 25,34), a vida eterna (Mt 19,29). O Pai comunica todos os seus bens ao seu Filho ressuscitado dos mortos e, por ele, aos crentes.

“Somos também herdeiros” (cf. Gl 4,7; 1Pd 1,4). A Bíblia do Peregrino (p. 2720) comenta: É consequência de sermos filhos, sem problemas de exclusão ou preferência: comparar com os problemas de sucessão de Gn 21,10; 27,36-38; Jz 11,2, e a sucessão dinástica (1Rs 1; Sl 45). Para terminar, introduz outra posição que exporá no parágrafo seguinte: sofrimentos presentes/glórias futura. A demora se explica porque o herdeiro não entra imediatamente na posse da herança. Compartilhar com Cristo não exige repartir a herança; exige, sim, partilhar a paixão (Fl 3,10-11).

“Sofremos com ele, é para sermos também glorificados” (cf. Lc 24,26; 1Pd 4,13). A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: A preposição “para” não marca a intenção que deveria dirigir os cristãos (como se lhe fosse preciso procurar o sofrimento com a finalidade de obter a glória), mas exprime a relação necessária entre os dois aspectos de um mistério único de morte e ressurreição, para o cristão como para o Cristo (cf. Fl 3,10-11).

 

Evangelho: Lc 13,10-17

No meio do caminho a Jerusalém, no qual Jesus ensina seus discípulos, Lc insere uma cura.

O tempo de Jesus não é só de admoestação, mas também de salvação. Depois de dezoito anos da doença da “filha de Abraão” (Is 51,1-2), que pode simbolizar todo o povo e se encontra sob o domínio de um “espírito” chega o momento da libertação que não pode mais esperar. Precisamente num sábado e numa sinagoga, aos olhos de todos (cf. a cura na sinagoga de um possesso em Mc 1,21-28).

Jesus estava ensinando numa sinagoga, em dia de sábado (v. 10).

Esta controvérsia sobre as curas que Jesus opera “no dia de sábado” pertence ao mesmo gênero literário que 6,6-11 (cópia de Mc 3,1-6) e 14,1-6 (14,5 é da fonte Q; cf. Mt 12,11s). Mas esta cura aqui é narração própria de Lc (como 14,1-6). Sem mencionar uma cidade específica, a parece mais relacionada ao ensino de Jesus na Galileia (cf. v. 31s; 4,16s.31)

Havia aí uma mulher que, fazia dezoito anos, estava com um espírito que a tornava doente. Era encurvada e incapaz de se endireitar (v. 11).

Sob olhar histórico, a participação de uma mulher com uma paralisia no culto da sinagoga surpreende. A descrição da doença faz parte do gênero da época atribuindo a causa ao demônio (aqui uma ação satânica, cf. v. 16; 11,14): ela “estava com um espírito que a tornava doente” (lit. possessa de um espírito de enfermidade). Os detalhes – “dezoito anos… encurvada”, “incapaz de se endireitar” (pode-se traduzir: ela não podia absolutamente se endireitar, ou: não podia levantar inteiramente a cabeça, cf. 21,28) – poderiam dar o diagnóstico skoliasis hystérica.

Vendo-a, Jesus chamou-a e lhe disse: “Mulher, estás livre da tua doença.” Jesus colocou as mãos sobre ela, e imediatamente a mulher se endireitou, e começou a louvar a Deus (vv. 12-13).

Sem ser chamado, Jesus reage: “vendo-a” com este sofrimento, “chamou-a…: ‘Mulher…’” quebrando as barreiras da convenção sinagogal, e sua primeira palavra é de cura e libertação: “Estás livre da tua doença.” A imposição das mãos confirma a palavra eficiente. A Igreja tirou sua consequência na doutrina dos sacramentes, destacando “palavra e gesto” (elemento) ao mesmo tempo.

“Imediatamente, a mulher se endireitou” A cura não foi um ato mágico, mas ação de Deus (verbo no passivo divino, lit.: foi endireitada), por isso ela “começou a louvar (lit. glorificar) a Deus”. O evangelista Lc nota muitas vezes, após manifestações divinas e sobre tudo após os milagres, que as pessoas dão “glória a Deus” (2,20; 5,25s; 7,16; 1313; 17,15.18; 18,43; At 4,21; cf. Mc 2,12) e lhe dirigem seu “louvor” (2,20; 18,43; 19,37; At 3,8s).

O chefe da sinagoga ficou furioso, porque Jesus tinha feito uma cura em dia de sábado. E, tomando a palavra, começou a dizer à multidão: “Existem seis dias para trabalhar. Vinde, então, nesses dias para serdes curados, mas não em dia de sábado” (v. 14).

O chefe da sinagoga “ficou furioso” porque viu nessa cura um “trabalho” proibido pela Lei. A sua objeção soa razoável e pode apoiar-se na lei de Moisés, no terceiro mandamento: “Durante seis dias trabalha e faz tuas tarefas; mas o sétimo dia é um dia de descanso dedicado ao Senhor teu Deus” (Ex 20,8-10); não é preciso profanar o sábado.

O chefe se dirige “à multidão”, talvez representa um protesto de judeus (ou judeu-cristãos) contra a liberdade cristã a respeito da lei judaica (cf. At 15,1 etc.)

O Senhor lhe respondeu: “Hipócritas! Cada um de vós não solta do curral o boi ou o jumento, para dar-lhe de beber, mesmo que seja dia de sábado? Esta filha de Abraão, que Satanás amarrou durante dezoito anos, não deveria ser libertada dessa prisão, em dia de sábado?” (vv. 15-16).

Jesus chama o argumento de legalismo “hipócrita” (falsa). Sob certas circunstâncias era permitido, soltar um animal e dar de bebê-lo, mesmo que seja dia de sábado. Jesus pergunta: Quem tem mais direito na lei, o boi e o jumento (na tradição cristã: os animais no presépio, cf. Is 1,3 salientando a incompreensão de Israel) ou um ser humano?

Jesus chama a mulher “filha de Abraão” (cf. 16,22; 19,8) que pode simbolizar todo o povo (no AT, Is 51,1s dirige-se a Sião e visa a restauração de Israel), e se encontra sob o domínio de um “espírito”, que anda oprimido sem poder erguer os olhos ao céu (cf. 8,26-39p: o endemoninhado geraseno simboliza o povo pagão).

Jesus está a caminho e tem que repartir seus bens que recuperou de Satanás (11,22p), mesmo que seja no sábado. A Bíblia do Peregrino (p. 2503) comenta: Nem sequer um dia se deve esperar para cumprir o que diz o salmo: “endireita os curvados” (Sl 145,14; 146,8)… O encontro da mulher com Jesus andarilho é sua conjuntura. “Procurai o Senhor enquanto se deixa encontrar” (Is 55,6). A terminologia de atar e desatar aponta para o nível de pecado que escraviza e de perdão que liberta.

“O Senhor lhe respondeu”; Lc costuma chamar Jesus de “Senhor”, desde o início da sua narração (1,43; 2,11; 7,13 etc.), não só após a páscoa (cf. At 2,36; Fl 2,9-11). O AT reserve Este título ciosamente a Deus: Kýrios (Senhor) é tradução grega de Yhwh (Javé, cf. Ex 3,14). Aqui lembra outra cura na sinagoga: “O Filho do Homem é Senhor sobre o sábado” (6,5p). Jesus é o “fim (finalidade) da lei” (Rm 10,4) e curar no sábado (reerguer e completar a criação caída, “curvada”) lhe convém (cf. Jo 5,17; 19,30).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1273s) resume: O legalismo religioso impede perceber que a ação do Messias liberta de todo tipo de amarras. A cura da mulher eleva o sábado à sua maior grandeza, por manifestar o propósito pleno da criação: a vida libertada de homens e mulheres, imagens de Deus.

Esta resposta envergonhou todos os inimigos de Jesus. E a multidão inteira se alegrava com as maravilhas que ele fazia (v. 17).

A ação de Jesus já está operando a “divisão” da qual falou antes (12,51-53), aqui entre o povo e os dirigentes. De um lado a vergonha dos inimigos que não leva ao arrependimento, do outro, a alegria do povo. As afirmações teológicas sobre a culpa de Israel não deve levar-nos a condenar o povo dos judeus em geral, “dos quais descende o Cristo, segundo a carne” (cf. Rm 9-11).

O site da CNBB comenta: Quando o valor material está em jogo em uma determinada situação, ninguém duvida sobre a necessidade de uma ação, pois tudo é permitido para evitar a perda material. Mas quando o valor é a pessoa humana, tudo é muito complicado. Não se pode agir por uma série de motivos como proibições legais, necessidade de uma melhor organização, haverá melhores oportunidades, não é assim que se fazem as coisas e uma série de outros argumentos. Tudo isso nos mostra que nos nossos tempos, os valores não são diferentes dos do tempo de Jesus. Nos mostra também que não vivemos plenamente o Evangelho, pois amamos mais o dinheiro do que os nossos irmãos e irmãs.

 

 

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