31 de Dezembro de 2018, Segunda-feira: Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la (vv. 4-5).

Leitura: 1Jo 2,18-21

A ocasião para escrever esta carta foi a ameaça da fé autêntica (“desde o princípio”, cf. 1,1; 2,7.14) por doutrinas diferentes (heresias, naquela época o gnosticismo: salvação apenas por conhecimento, não pela fé na encarnação; cf. 4,1-6; 2Jo 7). Às trevas do mundo regido pelo Maligno, opõe-se a Luz divina e o amor fraterno (1,5-2,17). Na leitura de hoje, a nova oposição é o “Anticristo” e a “unção” do Espírito. Se o conceito pode vir de 2Ts 2,1-10 (cf. também a besta de Ap 13,1-8 e já Dn 11,36), o nome “Anticristo” parece cunhado pelo autor de 1Jo. Equivale a anti-messias, pseudo-messias (Mt 24,23; Mc 13,21), com atitude de rivalidade e hostilidade. Preocupa a João a atividade de propagandistas que semeiam confusão com seus enganos. Por um lado, ele propõe critérios claros e simples de discernimento; junto com isso, apela para presença e ação do Espírito nos fiéis e para a tradição doutrinal que receberam. A tradição remota ao começo (cf. Gl 1,6s), a unção é “infalível”.

Filhinhos, esta é a última hora. Ouvistes dizer que o Anticristo virá (v. 18a).

“Filhinhos” é expressão afetuosa do pastor que exorta com solicitude seus fiéis na fé (vv. 1.12.18.28 etc.). Jo partilha a convicção do cristianismo primitivo (dentro do gênero apocalíptico no judaísmo) de que o fim da história (“última hora”) está próximo. A presença ativa do Anticristo, em suas diversas manifestações, prova que vivemos já na etapa definitiva, que cada hora é decisiva por Cristo perante qualquer messianismo rival (cf. Lc 2,34s; Mt 24,5.23; Mc 13,21s ).

“Anticristo” é o rival do Messias autêntico. Ele se enfurece, antes de tudo, contra a verdadeira fé em Cristo, Filho de Deus (v. 22; 4,2-3; cf. 5,5; Jo 1,18), nega que Jesus seja o Messias e afirma seu próprio messianismo (v. 22; 4,3; 2Ts 2,3-4). Ao mesmo tempo e logicamente lhe nega o título de Filho de Deus, com o que correlativamente nega a Deus o título de Pai (v. 23). Aliás, no séc. V d.C. surgiu o islamismo que reconhece Deus (Alá) como criador e Jesus como um dos profetas, mas não como Filho de Deus, nem chama Deus de Pai. É possível que o fundador do islamismo, Maomé (Mohammed) tenha conhecido o cristianismo por seitas gnósticas na Arábia.

Com efeito, muitos anticristos já apareceram. Por isso, sabemos que chegou a última hora. Eles saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos, pois se fossem realmente dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas era necessário ficar claro que nem todos são dos nossos (vv. 18b-19).

O Anticristo não é um indivíduo único, mas um coletivo ou uma pluralidade. E isso pode tornar os “anticristos” mais perigosos ou mais difíceis de identificar. Brotam do seio da comunidade, como os falsos profetas (Dt 13,2-6; Jr 23; Ez 13). Embora pertencendo exteriormente à comunidade, eles não mais possuíam o Espírito de Cristo. A sequência mostrará que se trata de pessoas que durante certo tempo participavam do grupo dos cristãos, mas o abandonaram e se tornaram pregadores contrários à Igreja, embora apresentando-se como profetas de um cristianismo “espiritual” (cf. 4,1-6; 2Jo 7; 1Tm 4,1; At 20,30).

Vós já recebestes a unção do Santo, e todos tendes conhecimento (v. 20).

Para a luta contra esses poderes, forças e enganos malignos, nos é dado o Espírito em forma de unção (2,20-27), lit. “óleo da unção” (em grego crisma, cf. v. 27). Costumamos imaginar a unção como algo suave e penetrante ou envolvente; a cultura grega conhecia o óleo também como tonificante dos músculos dos atletas. Óleo simboliza a energia (cf. “petróleo”). No antigo Israel, o rei foi “ungido” para receber o espírito de Javé e poder governar com sabedoria e justiça (cf. 1Sm 10,1; 16,13; 1Rs 1,39).

João parece pensar numa espécie de consagração que torna o cristão “experiente e instruído”, capaz de discernir entre verdade e falsidade (2,21.27). Com esta imagem da unção, Jo designa a Palavra de Deus (cf. v. 24) recebida do “Santo”, ou seja, de “Cristo” (cf. Jo 6,69), e que penetra no homem sob ação do Espírito. É a tarefa atribuída no discurso de despedida em Jo: fazer que os cristãos penetrem nas palavras de Jesus, na verdade plena (Jo 14,26; 15,26-27; 16,13). Segundo outra interpretação, a unção designa diretamente o Espírito Santo, o espírito dado ao Messias (Cristo em grego é o “ungido”, tradução do aramaico messias; cf. Is 11,2; 61,1), e por ele aos fieis (3,24; 4,13; cf. 2Cor 1,21), que os instrui sobre tudo (v. 27; Jo 16,13; cf. 1Cor 2,10.15), e graças ao qual as palavras de Jesus são “espírito e vida” (Jo 6,63).

Se eu vos escrevi, não é porque ignorais a verdade, mas porque a conheceis, e porque nenhuma mentira provém da verdade (v. 21).

O Espírito se comunica pela “unção”, consagra, transforma e capacita (cf. os exemplos de Saul e Davi em 1Sm 10,1.6-7; 16,13). Sua função nesse parágrafo é iluminar e ensinar internamente (cf. Is 11,2; Jr 31,34; Sl 16,7). Assim os “crismados” (ungidos) tornam-se sabidos nos assuntos da vida cristã e conhecem a verdade (cf. 2Pd 1,12). Aqui como em vv. 13.27, talvez se faça sentir a influência de Jr 31,34 sobre a universalidade do conhecimento entre os membros do povo de Deus no tempo da Nova Aliança.

A “verdade” é a mensagem do Evangelho, do qual não se segue falsidade alguma, a não ser que a falsifiquem antes. Os cristãos devem conservar o aprendido (v. 24) e a unção (v. 27) e permanecer constantes até a “vinda” de Cristo.

 

Evangelho: Jo 1,1-18

O evangelho é o mesmo do dia 25. Repetimos o comentário:

O evangelho de João é diferente dos três evangelhos sinóticos: não nos apresenta genealogias e narrativas da infância de Jesus (como Mt e Lc), também não começa logo com o batismo de Jesus (como Mc), mas escreve como prólogo (introdução) um hino solene que menciona o nome de Jesus só no final.

Um hino não conta uma história em prosa, mas usa metáforas e símbolos; por ex. no hino nacional não se narra a história do Brasil nem se menciona Dom Pedro I, mas emprega expressões poéticas como “sol da liberdade”, “gigante pela própria natureza” para caracterizar o Brasil. Podemos comparar o prólogo também à abertura das grandes óperas musicais: a ouverture apenas dá as primeiras notas, passando brevemente por alguns do motivos mais significativos da obra.

O prólogo de Jo parece ter sido composto em dois tempos: um hino a Cristo, celebrado como Verbo divino – hino lembrando as feições da liturgia em Éfeso (Cl 1,15; 1Tm 3,16; Hb 1,3-4) – teria sido ampliado pelo evangelista para indicar alguns temas essenciais da sua obra. O hino na sua forma anterior apresentava três partes: a Palavra na Criação (vv. 1-5), a Palavra em Israel (vv. 10-12) e a Palavra encarnada em Jesus (vv. 14.16-18).

O prólogo de João é um hino que mostra que Jesus não é só homem nascido há 2000 anos, mas é divino e preexistente. Já existia “no princípio” (primeiras palavras da Bíblia, cf. Gn 1,1), “antes da criação do mundo” (cf. Fl 2,5-11; Hb 1,1ss; 1Jo 1,1ss). Ele é “a Palavra” (o Verbo, Logos em grego), com a qual Deus já criou o universo (Gn 1); “veio para os seus” em Israel (v. 11; já no AT nem sempre foi bem acolhida) e se “encarnou” em Jesus que nos revela Deus perfeitamente (vv. 14.18).

Os vv. 6-8.15 sobre João Batista interrompem o hino cristológico (na versão mais breve da liturgia estes vv. são omitidos, também os vv. 16-18), fazem o elo para a narrativa seguinte, mas indicam também que havia certa disputa entre os discípulos de João e os de Jesus (1,8.15.19-35; 3,23-4,1; 5,33-36; 10,41; cf. At 19,1-7; Mc 2,18-22).

José Luiz Gonzaga do Prado (Vida Pastoral, nov./dez. 2016) compara a estrutura do hino a um sanduiche: O hino já era estruturado de acordo com a retórica semita (o paralelismo quiástico ou cruzado), em que o primeiro tópico está em paralelo com o último, o segundo com o penúltimo, e assim por diante. Podemos compará-lo a um sanduíche, aqui bem grande: nos dois extremos, duas fatias de pão, depois duas fatias de queijo, duas folhas de alface, duas fatias de tomate etc. e, no centro, a carne ou presunto, o que é mais suculento.

O evangelista apenas acrescentou ao hino duas referências a João Batista, que não era a luz, como poderiam pensar discípulos seus, mas, ao contrário, testemunhou que Jesus, que veio depois, é anterior a ele. No entanto, o evangelista fez isso respeitando a estrutura anterior do hino. Inseriu as duas observações sobre o Batista em dois pontos que se correspondiam, mantendo inalterado todo o restante do poema. Fez como se, no nosso grande sanduíche, colocasse mais duas rodelas de ovo, uma de um lado e outra do outro. Basta observar que, retirando as duas referências ao Batista, a sequência das ideias corre melhor. Não é difícil notar neste esquema a estrutura do hino:

 

Na Criação                                                                               Na Nova Criação

O VERBO                                                                                 O FILHO

A – em Deus (vv. 1-2)                                                         A’ – no Pai (v. 18)

   B – na Criação (v. 3)                                                    B’ – Na Graça (v. 17)

     C – luz para os homens (vv. 4-5)                         C’ – plenitude para nós (v. 16)

        D – o Batista (vv. 6-8)                                    D’ – o Batista (v. 15)

          E – vem ao mundo (vv. 9-11)                  E’ – encarna-se (v. 14)

             F – e deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus

 

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus. No princípio estava ela com Deus. Tudo foi feito por ela e sem ela nada se fez de tudo que foi feito (vv. 1-3).

Os inícios dos quatro evangelhos inspiraram Stº. Irineu e outros teólogos dos sec. III e IV para relacioná-los aos quatro seres do Ap 4,6-7 (cf. Ez 1,5-21, cf. suas imagens na gruta de Bom Jesus da Lapa): Mc ao leão (uma voz grita no deserto, João Batista), Lc ao touro (o sacrifício no templo por Zacarias), Mt ao rosto de homem/anjo (genealogia de Jesus desde Abraão) e Jo à águia (a palavra de Deus está com Deus, no céu, voando em círculos).

Jo repete as primeiras palavras da Bíblia, “No princípio” (Gn 1,1), e resume aquele relato da criação (Gn 1,1-2,4) com a “Palavra” com a qual Deus criou o universo (e em v. 14 será identificada com Jesus). Deus criou tudo com sua palavra (v. 3); é ressonância de Sl 33,6 (cf. 148,15). “Tudo” mesmo, não há dois princípios na criação (em chave polêmica, cf. Is 45,7).

Se Deus criou o mundo com sua Palavra, então ela já estava presente antes da criação, junto de Deus. Já no AT encontra-se o mesmo pensamento sobre a “sabedoria” de Deus que existe antes da criação; ela convida como uma pessoa e mora entre os homens (Pr 1,20-33; 3,16-19 e 8): é a Sabedoria personificada e preexistente (Pr 8,12-36; Sb 7,2-8,1). Em Eclo 24, esta sabedoria é identificada com a Lei de Moisés (cf. Jo 1,17). Jo a identificará com Jesus Cristo, palavra viva de Deus (vv. 14.17).

Jo ainda identifica o logos (verbo, palavra, sabedoria) com o próprio Deus: “a Palavra era Deus” (um dos poucos vv. do NT que falam explicitamente que Jesus é Deus, cf. 20,28; Hb 1,8; Tt 2,13; cf. Credo niceno-constantinopolitano: “Deus de Deus, luz da luz”)

Logos” em grego significa um verbo/discurso que tem lógica, sentido e coerência. Bento XVI escreveu sobre isso: “A Palavra de Deus impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: Realista é quem conhece o fundamento de todo no Verbo de Deus… Mais cedo ou mais tarde, o ter, o prazer e o poder manifestam-se incapazes de realizar as aspirações mais profundas do coração do homem” (Verbum Domini n.º 10). Portanto, a fé é a resposta certa do homem à Palavra (logos) de Deus (cf. Verbum Domini n.º 22ss). No discurso do Papa Bento XVI, fé e razão (pensar e falar de maneira “lógica”, coerente, não irracional) não se contradizem, mas se complementam: a razão não é somente uma observação cientifica, é também pensamento filosófico (p. ex. a ética) que não exclui a existência e revelação de Deus.

É verdade que a ciência tem um método “ateísta”, ou seja, pesquisa as causas naturais sem recorrer a explicações sobrenaturais, mas a causa da própria “natureza” fica em aberto: não pode “nascer/vir” do nada, porque de nada, nada se faz!  Não pode existir prova científica da existência de Deus, porque, segundo Aristóteles, só se pode provar algo através de princípios/autoridades maiores, mas: quem é maior que Deus? Também não existem provas da não-existência de Deus. Ateísmo é uma crença, não pode provar com certeza que Deus não existe, só pode achar/crer, que “Deus provavelmente não existe, curta sua vida” (o lema de uma campanha ateísta recente).

Há certa coincidência na teoria do “Big Bang” (grande explosão primordial que gerou o universo há 13 bilhões de anos) e da Palavra de Deus no princípio criador de tudo? A ciência revela detalhes maravilhosos sobre o universo, mas qual a origem e o sentido de tudo? É a fé que revela o sentido profundo, o rosto divino por trás da criação e a meta da sua evolução. O Big “Bang” é apenas um barulho, ganha sentido e lógica com a “Palavra” de Deus.

Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la (vv. 4-5).

“Vida” e “luz” são dois conceitos frequentemente vinculados no AT (p. ex. Sl 36,10; 56,14; Jó 3,16). Nesse ponto surge o dualismo dramático de João: frente à luz (de vida e revelação), umas “trevas” que a rejeitam, que não deixam penetrar (cf. 3,19-21; 8,12 etc.). A luz (o Bem, o Verbo) escapa ao domínio das Trevas (o Mal, as potencias do mal; cf. 7,33s; 8,12; 8,21; 12,31.32; 14,30; 1Jo 2,8.14; 4,4; 5,18). Outros traduzem: “e as trevas não a compreenderam”.

Surgiu um homem enviado por Deus; Seu nome era João. Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos chegassem à fé por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz: (vv. 6-7).

Os vv. 6-7 são uma parêntese sobre a missão de João Batista; também v. 15 (cf. Mt 3,1p; etc.). Historicamente João é o precursor de Jesus. Será personagem importante na primeira parte do evangelho. Como uma sentinela que aguarda a aurora para gritar que é dia (Sl 130,6-7; Jr 31,6), assim João anuncia, como “testemunha”, a chegada da luz. O símbolo da luz domina esse evangelho, junto com a da vida (cf. vv. 4-5; 8,12).

(d)aquele que era a luz de verdade, que, vindo ao mundo, ilumina todo ser humano (v. 9).

Ou: Era a luz verdadeira, que ilumina todo homem e vinha ao mundo. A “verdade” é outro termo importante neste Evangelho (cf. 14,6,17; 15,26; 16,13; 19,37s etc.).

A Palavra estava no mundo – e o mundo foi feito por meio dela – mas o mundo não quis conhecê-la (v. 10).

A luz autêntica e universal estava chegando ao mundo para uma revelação especial (Sl 57,12). O mundo criado pelo logos era bom (Gn 1,31; Cl 1,10), mas esse mundo, por livre escolha, “não reconhece” a luz (cf. Rm 1,20s) e assim se torna mau. No evangelho, “mundo” terá com frequência essa conotação negativa. O “mundo” tanto pode designar o universo ou a terra, como o gênero humano ou o conjunto dos homens que resistem a Deus e perseguem, com ódio, a Cristo e a seus discípulos (cf. 7,7; 15,18.19; 17,14). Nesse último sentido, João aproxima-se da oposição, comum no judaísmo, entre “este mundo” (8,23; …), submetido ao poder de Satanás e ao mal (12,31; 14,30; 16,11; 1Jo 5,19), e o “mundo vindouro”, que ele designa às vezes com o nome de “vida eterna” (12,25). No momento, os discípulos devem permanecer no mundo, embora não sejam do mundo (17,11.14s; cf. o sentido pejorativo de “terra” em Ap 6,15; 13,3.8; 14,3; 17,2.5.8; cf. também Rm 8,18-22).

Veio para o que era seu, e os seus não a acolheram (v. 11).

“Os seus” admite duas leituras: ou a humanidade inteira (como em Eclo 24,6-7; Br 3,20-21), capaz de receber ou recusar, ou o povo escolhido que não acolheu o Filho de Deus (cf. Lc 2,7), os “judeus” (2,18; … 19,7.12 etc.). A segunda interpretação significa um estreitamento do horizonte.

Mas, a todos que a receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus isto é, aos que acreditam em seu nome, pois estes não nasceram do sangue nem da vontade da carne nem da vontade do varão, mas de Deus mesmo (vv. 12-13).

A palavra é acolhida pela fé e concede a filiação divina, que supera a humana, carnal (cf. Sb 7,2), porque pertence à outra ordem, espiritual. Alguns manuscritos e comentaristas antigos leram “este nasce…” referindo-o ao nascimento virginal de Jesus. Mas a frase inteira alude à geração eterna do Verbo e com isso, ao nascimento virginal de Jesus (cf. Mt 1,16.18-23; Lc 1,26-38); “nem do sangue nem de uma vontade do homem”; o texto original é talvez o curto: “nem do sangue nem da carne”. Os que creem no Filho de Deus (3,15s) tornam-se filhos de Deus e herdeiros do reino e da vida eterna (cf. Mt 5,9; 6,9; etc.; Rm 8,14; Gl 3,26; 4,5; Tg 1,27; 1Jo 3,1).

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós. E nós contemplamos a sua glória, glória que recebe do Pai como filho unigênito, cheio de graça e de verdade (v. 14).

Finalmente, o Verbo eterno (Logos) se apresenta em pessoa, toma “carne (en-carna-ção), se faz simples homem (Gl 4,4); o tema da carne retorna em passagens importantes do NT (cf. Rm 1,3; 8,3; Tm 3,16). A “carne” designa o homem na sua condição de fraqueza e mortalidade (cf. 3,6; 17,2; Gn 6,3; Sl 5,5; Is 40,6). O emprego desse termo (cf. Rm 7,5 etc.) sublinhar o realismo da vinda do Filho na humanidade, que João não cessa de pôr em evidencia. Mais tarde fala-se de “encarnação” (cf. 1Jo 4,2; Jo 7 e em Paulo: Rm 1,3; Gl 4,4; Fl 2,7; Cl 1,19).

“Habitou entre nós”, lit. “armou a tenda” onde se manifesta sua “glória”. Não como no templo feito por homens: “Então a nuvem cobriu a tenda do encontro e a glória do Senhor encheu o santuário” (Ex 40,34-35; 1Rs 8,11; Ez 44,4), mas como “Filho único do Pai”; como um Filho único que herda tudo; cf. “tudo o que é teu é meu” (Jo 17,10). O seu corpo é o novo templo (cf. 2,21). À presença invisível e temível de Deus na tenda ou no templo da antiga aliança (Ex 25,8; cf. Nm 35,34) e à presença espiritual da sabedoria em Israel, pela lei de Moisés (Eclo 24,7-22; Br 3,36-4,4), segue-se, pela encarnação do verbo, a presença pessoal e sensível de Deus entre os homens.

A “glória do Senhor” designa a manifestação visível do mistério divino (Ex 13,22; 24,6; 40,34s; 1Rs 8,10s; Ez 1,28; 9,3; 43,1 etc. e Rm 3,23; 9,4; 2Cor 4,6 …). Seu fulgor temível, que nenhum ser vivo podia contemplar (Ex 33,20), estava velado outrora pela nuvem e agora pela humanidade do verbo encarnado; ela transparece, no entanto em certas ocasiões como na transfiguração (cf. Lc 9,32.35, alusão aqui?) ou por milagres (em Jo “sinais” de que Deus permanece e age em Cristo, cf.  2,11; 11,40; cf. Ex 14,24-27; e 15,7; 16,7s), aguardando a plena manifestação de ressurreição (cf. 17,5).

“Graça e verdade” (vv. 14.17) correspondem a “graça (ou amor misericordioso) e fidelidade”, na definição que Deus dá de si mesmo a Moises (Ex 34,6; cf. Os 2,16-22). Pode se traduzir também “lealdade e fidelidade”. Parece provável que o texto do prólogo tenha adapto esta dupla clássica em hebraico de atributos divinos: hesed we’emet, que admitem uma gama de traduções (basicamente, leal à pessoa, fiel à sua palavra); favor estável, bondade constante, amor fiel… Na Palavra feita homem reside a plenitude da divindade (Cl 2,9) na forma de seus dois atributos insignes, proclamados pessoalmente pelo Senhor e que condensam em fórmula litúrgica (Ex 34,6 par.).

Dele, João dá testemunho, clamando: “Este é aquele de quem eu disse: O que vem depois de mim passou à minha frente, porque ele existia antes de mim” (v. 15).

Um personagem não apresentado e uma citação ainda não aparecida mostram esse versículo é inserção de engate. Sua identificação virá em 1,30. Afirma a precedência cronológica e autoridade do Logos (cf. 3,27-36). Ou seja, o testemunho do Batista (“antes de mim”) coincide com o ensinamento do evangelista, este, porém, remontou ao “princípio” (v. 1).

De sua plenitude todos nós recebemos graça por graça (v. 16).

Liga-se com 14b na primeira pessoa do plural, “nós” (cf. 1Jo 1,1-4). Não deve causar estranheza a passagem, pois no hino à Sabedoria de Eclo também se passa no fim à primeira pessoa, com o tema do receber (Eclo 24,30-34). Afirma que o Logos feito homem é o mediador de todo dom divino.

A tradução da última parte, “graça por graça”, pode ter vários significados: “uma graça correspondendo uma graça (que está no Filho único)” ou: “uma graça (a da nova aliança) em lugar de uma (outra) graça (a da antiga aliança)”, outra tradução: “graça sobre graça”.

Pois por meio de Moisés foi dada a Lei, mas a graça e a verdade nos chegaram através de Jesus Cristo (v. 17).

Explicitamente contrapõe dois testamentos ou duas economias. Moises promulgou uma lei (Ex 31,18), cujo conteúdo era a bondade nas relações com Deus e com o próximo; preceitos e proibições que não conseguiram realizar o que continham (cf. Rm, Gl). Aquele mandamento externo tornou-se realidade em e por Jesus Cristo.

Finalmente se pronuncia o nome até aqui evitado, identificando-se o Verbo (Palavra, Logos) feito homem com “Jesus” de Nazaré, o “Cristo” (Messias). Não se deve mais olhar para a lei como modelo de conduta, mas para a pessoa (exemplo, 13,14s.34) de Jesus.

A Deus, ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer (v. 18).

Moisés pedia para ver Deus, “mostra-me tua glória”, mas não conseguiu (Ex 33,18-20), porque “não podes ver meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar vivo”. Só o Filho “unigênito” o conhece por sua relação intima, e veio para descrevê-lo. Com essa frase se levanta a cortina do evangelho: o que se segue é essa “exegese” de Jesus Cristo em fatos e palavras: Jesus nos revela quem é Deus de verdade. Outros traduzem: “Deus Filho único”, afirmando a divindade de Jesus (cf. 20,28).

Jesus é “Filho unigênito” (1,14.18; 3,16-18), amado pelo Pai (15,9; 17,23), em intimidade perfeitamente recíproca com ele (10,30-38; 14,10-11; 17,21) no conhecimento e no amor (5,20,30; 10,15; 14,31; cf. Mt 11,27p).

O que a ciência chama de “Big Bang” como origem do universo, nós chamamos a “Palavra” de Deus. Jo quer dizer que este “Big Bang” está agora no presépio, no menino Deus está concentrada toda energia do universo. Mas não é uma criança “explosiva” com tensão para violência, sim um menino “cheio de graça e verdade”, amor e fidelidade. Em Jesus, o poder de Deus se revela como amor que quer se unir as pessoas humanas.

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