31 de outubro de 2017 – Terça-feira, 30ª semana

Leitura: Rm 8,18-25

Continuamos com o capítulo central da carta aos romanos.

Eu entendo que os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós (v. 18).

Paulo não opõe alegrias a sofrimentos, como poderia se esperar da filosofia corrente, mas opõe à “glória”, uma qualidade divina que irradia e nos atinge (cf. 3,23). Glória no sentido bíblico (cf. Ex 24,16 etc.) é a presença de Deus comunicando-se ao ser humano de modo mais íntimo, bem por excelência dos tempos messiânicos (cf. Sl 85,10; Is 40,5, etc.). “A glória que deve ser revelada em nós” (cf. 2Cor 4,17) existe desde agora no Cristo ressuscitado, e mesmo, de certa maneira, nos cristãos (2Cor 3,18) no modo do futuro (cf. 3,23; Is 40,5; Sl 85,10).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Mas ela ainda não foi manifestada. Paulo não fala somente de manifestação, mas de revelação, porque o homem não pode conceber atualmente uma ideia do esplendor dessa glória futura e porque, através dele, essa manifestação atingirá a criação inteira (vv. seguintes).

De fato, toda a criação está esperando ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus. Pois a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua livre vontade, mas por sua dependência daquele que a sujeitou; também ela espera ser libertada da escravidão da corrupção e, assim, participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus (vv. 19-21).

“A criação ficou sujeita à vaidade” (cf. Ecl 1,2). É o condição da criação após o pecado (original) do ser humano, que dela se serve contra a vontade de Deus, em favor do seu egoísmo e da sua vontade de domínio. Outra interpretação fala do caráter corruptível e efêmero das realidades criadas.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2133) comenta: O mundo material, criado para o homem, participa do seu destino. Amaldiçoado por causa do pecado do homem (Gn 3,17), ele se encontra atualmente num estado de tensão: “vaidade” (v. 20), qualidade de ordem moral ligada ao pecado do homem, “servidão da corrupção” (v. 21), qualidade de ordem física. Mas como o corpo do homem, destinado à gloria, é também objeto de redenção (vv. 21.23). A filosofia grega queria libertar o espírito da matéria, considerada má; o cristianismo liberta a própria matéria. Mesma extensão da salvação ao mundo não humano (especialmente ao mundo angélico) em Cl 1,20; Ef 1,10; 2Pd 3,13; Ap 21,1-5. Com relação à nova criação, cf. 2Cor 5,17.

“Por sua dependência daquele que a sujeitou (ou “por vontade daquele que a submeteu”); isto é, provavelmente o homem por seu pecado. Ou: Deus por sua autoridade vingadora; ou ainda: Deus como criador (cf. submeter e dominar em Gn 1,28).

“Participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2186) comenta: O AT já ensinava que o universo material seria associado à glória escatológica do povo de Deus (Is 65,17; Ap 21,1). Aqui esta afirmação aparece com a consequência da glorificação do corpo do cristão (vv.17 e 23), que também é fruto da cruz e da ressurreição de Jesus (cf. Cl 1,18-20). 

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) apresenta duas hipóteses:

A interpretação desses versículos depende do significado atribuído a “ktísis”: criação ou humanidade. A tradição exegética tem optado pelo primeiro. O correlativo “nós” e o contexto sobre escravidão e liberdade, corrupção e glória, fracasso e esperança favorecem o segundo. Com outras palavras: a nós, os cristãos, se opõe o resto da humanidade; e não a nós, os homens, se opõe o resto da criação.

  1. a) Se o sujeito é a criação inteira, Paulo dá dimensão cósmica à redenção. Isso supõe que, com a queda do homem, a criação inteira (também a sideral?) ficou submetida à desordem e dela participa (o contrário da distinção proposta pelo Salmo 104); ou então supõe que a caducidade da criação (Sl 102,27) vem do pecado de Adão (seria ampliar a sugestão dos cardos de Gn 3). A libertação dessa criação escravizada estaria vinculada à doutrina do céu e de terra novos (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13).
  2. b) Se o sujeito é a humanidade inteira, fora os cristãos, Paulo formula o anseio de vida e vida plena que todo homem acalenta no íntimo… Nos Sl 96,98, em Is 35; 55,12s etc. podemos encontrar alguma participação da natureza na libertação do povo… A relação que propomos, entre a humanidade e cristãos filhos de Deus, é semelhante à de Jr 31,9s entre pagãos e Israel filho do Senhor (cf. também 1Jo 3,2) … A corrupção ou condição mortal é a última escravidão do homem (cf. 1Cor 15,26). Pois bem, os filhos de Deus são livres por natureza; enquanto tais, não nascem na escravidão. É o argumento de Deus em Ex 4,23 e Jr 2,14. Sua liberdade é gloriosa porque quem os adota lhes comunica sua glória.

Com efeito, sabemos que toda a criação, até ao tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também, que temos os primeiros frutos do Espírito, estamos interiormente gemendo, aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo (vv. 22-23).

“Sabemos” pela revelação (alusão à árvore de Gn 2,17). As “dores de parto” são consequência do pecado de Eva (Gn 3,16) e podem indicar a intensidade da dor e da angústia, outras vezes a dor fecunda (cf. Jr 4,31; 1Sm 4,19-22).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Essa expressão bíblica (Jr 13,21; Is 66,6-8; Jo 16,20-22) designa, ao mesmo tempo, um doloroso estado atual e a espera de um futuro estado glorioso. Toda esta passagem (vv. 19-22) afirma enfaticamente que o mundo material e inanimado será associado à glorificação do corpo do homem no Cristo ressuscitado. Trata-se, em Paulo, de uma afirmação da fé, que não se deve confundir com uma reflexão filosófica sobre o sentido e o devir do cosmo.

Se a corrupção é escravidão, o escravo tornado filho é resgatado para a imortalidade, que é liberdade. Também o corpo pertence à condição filial de filhos de Deus. Há ”gemidos“ da criação/humanidade (v. 22), do cristão (v. 23) e do Espírito (v. 26; leitura de amanhã; cf. 8,15; Gl 4,6; 1Cor 2,10-13).

“Os primeiros frutos do Espírito”, a ideia das primícias implica um dom parcial e antecipado, penhor e garantia do futuro total (cf. 1Cor 15,20; Rm 11,16). A adoção “já” está adquirida (v. 15), o que “ainda não” se realizou é a plenitude de seus efeitos: a libertação e glorificação do nosso corpo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) comenta: Em ambas as hipóteses deve-se manter que os cristãos formam um grupo à parte: sua redenção está realizada, mas não consumada. Falta algo substancial à sua filiação divina: a glorificação também do corpo. Por isso também os cristãos gemem e esperam. Em ambas as hipóteses, a criação/humanidade aparece com “a cabeça voltada e à espera” (etimologia de apo-kara-dokia); com as dores de um parto que, apenas com suas forças, não teria êxito (cf. Is 26,17s; 37,3). Será necessária uma nova ação de Deus (cf. Jo 16,21; Ap 12). É possível que Paulo pense nas clássicas “dores de parto” que anunciam a era messiânica.

Pois já fomos salvos, mas na esperança. Ora, o objeto da esperança não é aquilo que a gente está vendo; como pode alguém esperar o que já vê? Mas se esperamos o que não vemos, é porque o estamos aguardando mediante a perseverança (vv. 24-25).

Como a adoção, também a nossa salvação “já” está adquirida (8,15), mas nós “ainda” esperamos a sua plena realização (cf. 5,1-11). Paulo expressa a tensão escatológica entre a salvação (já) e a pendente (ainda não), aqui chama “esperança” o que em Hb, com outra matiz, é definido como “fé”. “Ver” no sentido de ter diante e desfrutar. Bento XVI escreveu sua segunda encíclica sobre a esperança, iniciando-a com estas mesmas palavras em latim: Spe salvos (somos salvos pela esperança). A esperança é a fé na dimensão do futuro.

Evangelho: Lc 13,18-21

No caminho a Jerusalém, Jesus conta outras parábolas, desta vez duas parábolas concisas, comparações sem armação narrativa, que ilustram o dinamismo do reinado de Deus e do seu poder transformador no anúncio da Boa Nova. As duas parábolas transmitem uma mensagem de paciência e esperança; no contexto de Lc reagem às dúvidas a respeito da hostilidade crescente que as palavras e ações de Jesus enfrentam (vv. 14.17) e a respeito da chegada do reino (não só na parusia, na volta triunfal de Jesus).

Jesus dizia: “A que é semelhante o Reino de Deus, e com que poderei compará-lo? Ele é como a semente de mostarda, que um homem pega e atira no seu jardim. A semente cresce, torna-se uma grande árvore, e as aves do céu fazem ninhos nos seus ramos” (vv. 18-19).

Lc encontrou esta parábola já em Mc 4,30-32 e preservou a pergunta (Lc gosta de perguntas didáticas ou retóricas). As concordâncias com Mt 13,31s contra a versão mais antiga de Mc são significativas: “um homem”, “árvore”, “abrigam em seus ramos”, e a segunda parábola (do fermento, em seguida) falta em Mc. Pode-se pensar em duas possibilidades: Ou havia uma segunda edição de Mc (Deuteromarcos) já com estas diferenças, ou havia outra versão da mesma parábola em Q (a coleção perdida de palavras de Jesus, que Mt e Lc usavam além de Mc). A última tese é mais provável porque Lc colocou esta parábola junto com a do fermento em outro lugar do que Mt e Mc (fora do discurso das parábolas 8,4-18p).

O grão de mostarda tem um tamanho menor que 1 mm, mas a planta madura pode alcançar uma altura de 4 metros nas hortas da Galileia e “estende ramos tão grandes que os pássaros do céu podem abrigar-se à sua sombra” (Mc 4,32b; cf. Ez 17,23). Is 5 comparou Israel com uma videira (cf. Jo 15); Ez 17 comparou o povo de Deus com uma árvore replantada; Dn 4 comparou o reino de Nabucodonosor com uma “árvore… em cujos ramos se aninhavam as aves do céu” (Dn 4,18). Os pássaros são as outras nações que se abrigam nele. O termo “Reino de Deus” (maior daquele de Nabucodonosor) aparece neste contexto (cf. Dn 2,44; 4,14.31; 7,13-14). A mensagem da parábola é que o reino terá sucesso embora ainda possa parecer pequeno.

Jesus disse ainda: “Com que poderei ainda comparar o Reino de Deus? Ele é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado” (vv. 20-21).

A Bíblia do Peregrino (p. 2503) comenta: A segunda parábola é doméstica. Não conta a quantidade de matéria, mas a energia. Nas duas parábolas intervêm um homem e uma mulher, ao sabor de Lucas. (cf. 15,4-10; 2,22-38 etc.).

Como o grau de mostarda é também o fermento, o Reino de Deus tem um começo modesto, mas um grande desenvolvimento. A imagem do fermento pode ser usada para designar um desenvolvimento bom (como aqui), ou ruim também, “um pouco de fermento leveda toda a massa” (1Cor 5,6; Gl 5,9, cf. Mc 8,15).

A novidade de Jesus é que não se inaugure o Reino de Deus num grande evento apocalíptico (cf. Mc 13p; Lc 17; 21), mas este reinado já começa pequeno, já está perto e atua no meio de nós (cf. Mc 1,15p; Lc 17,20-21) na pessoa de Jesus Cristo, no cotidiano da vida crista. Para Lc não só importa o início pequeno e o grande final, mas a fase do crescimento, todo o tempo da Igreja (cf. At 1,8 etc.).

Sem confundir o reino de Deus com a Igreja, podemos afirmar que o começo modesto e o crescimento enorme se verificaram: Um menino pobre em Belém estava no início de um movimento que evoluiu de doze apóstolos na periferia do Império para uma organização internacional, a Igreja Católica (católica significa para todos os povos), que hoje some mais de um bilhão de pessoas e junto com os outros “ramos” (Igrejas ortodoxos, protestantes,…) representa um terço da população do planeta.

O termo “fermento” foi usado pelo Concílio Vaticano II para caracterizar a missão própria dos leigos e leigas no meio da sociedade: Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus. Vivem no mundo, isto é, em toda e qualquer ocupação e atividade terrena, e nas condições ordinárias da vida familiar e social, com as quais é como que tecida a sua existência. São chamados por Deus para que, aí, exercendo o seu próprio ofício, guiados pelo espírito evangélico, concorram para a santificação do mundo a partir de dentro, como o fermento, e deste modo manifestem Cristo aos outros, antes de mais pelo testemunho da própria vida, pela irradiação da sua fé, esperança e caridade. Portanto, a eles compete especialmente, iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo e progridam e glorifiquem o Criador e Redentor (LG 31).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes falamos que o Reino de Deus é sobrenatural, mas queremos que ele se manifeste em coisas naturais grandiosas. Isto demonstra que na verdade vemos a sua grandiosidade, mas não percebemos a sua natureza, o que faz com que a grandiosidade seja vista a partir da materialidade, o que é um erro, e não a partir da grandiosidade que Deus faz a partir do pequeno, do grão de mostarda ou da levedura do fermento, ou seja, das pequenas coisas que surpreendem os que olham com o olhar da fé a realidade. Deus escolhe as coisas pequenas do mundo para revelar o Reino, e nos mostra a força do seu braço a partir das transformações que os pequenos realizam no dia a dia.

 

 

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