5 de Março de 2020, Quinta-feira – Quaresma: Pedi e vos será dado! Procurai e achareis! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede, recebe; quem procura, encontra; e a quem bate, a porta será aberta (vv. 7-8).

1ª Semana da Quaresma 

Leitura: Est 4,17 n.p.r.aa-bb.gg-hh

Ouvimos hoje sobre a oração comovente da rainha Ester. O livro de Ester, talvez sob influência de festas babilônicas, procura legitimar a festa dos “Purim” (cf. 9,24-26; cf. 2Mc 15,36). É lido durante esta festa judaica (em fevereiro ou março) cuja liturgia tem até hoje um ar de carnaval.

O livro de Ester pertence às narrações didáticas (não históricas, mas novelas) que tratam sobre a vida na “diáspora”, ou seja, a comunidade judaica espalhada entre as nações estrangeiras: Tobit entre os deportados israelitas na Assíria, Daniel entre os deportados judeus na Babilônia e Ester na comunidade judaica da Pérsia sob o rei Xerxes (ou seu sucessor Artaxerxes, “Assuero” em latim e português) que reinava “da Índia até a Etiópia” (1,1), tomou Atenas, mas foi derrotado pelos gregos em Salamina (480 a.C).

“Mardoqueu” (ou Mordekai) criou sua prima orfã “Ester” (2,5.7). São nomes pagãos, parecidos aos dos deuses babilônicos Marduk (deus da cidade de Babilônia) e Ishtar (deusa do amor e da guerra). O autor se inspira na história do êxodo com uma pessoa influente na corte estrangeira que se solidariza com seus irmãos judeus e os salva (cf. José no Egito). Moisés também não é um nome judeu, mas egípcio (cf. o faraó de nome Tut-Moses); o mesmo esquema encontra-se também na história de José no Egito e a de Daniel na Babilônia. Mesmo que os personagens (exceto o rei Assuero) e os acontecimentos sejam fictícios, mas as perseguições dos judeus por serem “diferentes de todos os outros” (3,8) são dura realidade histórica, desde a antiguidade até o genocídio pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Existem duas versões do livro: a hebraica, que foi escrita provavelmente nos meados do século IV a.C. entre os judeus na própria Mesopotâmia (atual Iraque), e uma versão grega, consideravelmente ampliada, do século II a.C. Ambas as versões foram compiladas neste mesmo séc. II quando havia a ameaça de extermínio dos judeus pelo domínio da cultura helenista (grega).

A rainha Ester, temendo o perigo de morte que se aproximava, buscou refúgio no Senhor (v. 17n).

A versão hebraica evita o nome de Deus, mas ele age discretamente nos bastidores através de pessoas e acontecimentos. Não há milagres, mas a providência colocou a judia Ester como esposa do rei persa para salvar seu povo da perseguição. Influenciado pelo conspirador vilão Amã (Haman), o rei tinha assinado um decreto para exterminar os judeus, sem saber que sua própria esposa era judia também. De fora do palácio, Mardoqueu mandou um recado para sua prima rainha para que ela intercedesse junto ao rei, e alertou: “Não penses que tu és a única dos judeus a escapar com vida, só porque vives no palácio; se tu te calares agora, a salvação e libertação virão aos judeus de outro lugar, mas tu, com a tua família morrerás. Quem sabe se por isso mesmo chegastes à realeza, para que em tal situação estivesses pronta para agir?” (4,13-14).

Prostrou-se por terra desde a manhã até ao anoitecer, juntamente com suas servas, e disse: ”Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, tu és bendito. Vem em meu socorro, pois estou só e não tenho outro defensor fora de ti, Senhor, pois eu mesma me expus ao perigo” (v. 17p.r).

Ester passa pelo dilema da autoridade e tem que escolher: ou continua rainha para dar prazer ao opressor, ou se torna rainha em favor de seu povo, nem que esteja arriscando sua vida. Ester manda uma resposta a seu primo: “Vai reunir todos os judeus… jejuai por mim. Não comais nem bebais durante três dias e três noites. Eu e minha escrava faremos o mesmo, e ao terminar eu me apresentarei diante do rei ainda que contra suas ordens. Se tiver de morrer morrerei” (v. 16). Para acentuar mais o caráter religioso, o autor da versão grega aproveitou para inserir orações que acompanham e expressam o sentido de jejum. A rainha troca os vestidos de luxo e a cosmética por vestidos de luto e cinzas (cf. Is 3,24; 32,9-12; 2Sm 13,19; Jr 6,26 e a oração de Judite antes de enfrentar Holofernes em Jt 9). Sua oração começa com um tom pessoal, com o tremor pelo perigo de morte (cf. Jesus em Getsêmani: Mc 14,32-36).

A tradução que a liturgia de hoje apresenta, difere do texto da maioria das Bíblias. Neste, em vez de invocar o “Deus de Abraão, Isaac e Jacó” (v. 17q da liturgia), ela confessa o monoteísmo contra o politeísmo pagão, “Tu és um só” (Dt 6,4; Ne 9,6; 2Mc 1,24) e se dirige ao “meu Senhor, nosso rei” (cf. Is 43,15; Sl 47), cuja realeza ultrapassa a do rei da Pérsia; há um jogo com as palavras “Deus é um só” (não tenho outros deuses; cf. Ex 20,3) e “eu estou só” e “não tenho outro defensor fora de ti “ (vv. 17q.bb)

Senhor, eu ouvi, dos livros de meus antepassados, que tu libertas, Senhor, até ao fim, todos os que te são caros. Agora, pois, ajuda-me, a mim que estou sozinha e não tenho mais ninguém senão a ti, Senhor meu Deus (v. 17aa.bb).

Pela família (“livros de meus antepassados”) se transmitia os relatos sobre as maravilhas de Deus em favor de seu povo (Dt 6,20-25): “Eu ouvi… que tu libertas, Senhor, até o fim, todos os que te são caros” (lit. “patrimônio”; cf. Ex 34,9; Dt 32,9; 1Rs 8,51; Jr 10,16; 51,19; Jl 4,2; Sl 28,9; 79,1; 94,5; Jt 9,12; 13,5).

Vem, pois, em auxílio de minha orfandade. Põe em meus lábios um discurso atraente, quando eu estiver diante do leão, e muda o seu coração para que odeie aquele que nos ataca, para que este pereça com todos os seus cúmplices. E livra-nos da mão de nossos inimigos. Transforma nosso luto em alegria e nossas dores em bem-estar (v. 17gg.hh).

“Põe em meus lábios um discurso atraente, quando eu estiver diante do leão”. O leão simboliza o rei poderoso e possivelmente hostil (cf. Ez 32,2; Jl 1,6; Sl 17,2; 22,14; Pr 19,12; 1 Mc 3,4); e “muda o seu coração…” (cf. Pr 21,1). Esta oração expressa a própria fraqueza e o medo (esta oração termina: “tira de me o medo” v. 17z ou v. 19 ou v. 30), mas também a profunda confiança da fé que dá coragem e força para esta mulher na cova do “leão” (cf. Dn 6).

Ester conseguirá convencer o rei de desistir da perseguição (cap. 5). O anti-semita e conspirador Amã acaba enforcado. Assim se “transforma o luto em alegria” (cf. Sl 126 sobre a alegria da volta do exílio), motivo da festa de Purim (9,24-26).

Ester é uma jovem submissa e discreta, que alcança grandeza num momento de valentia. Ela representa, na literatura bíblica, um novo triunfo feminino, depois de Rebeca, Tamar, Jael, Rute, Abigail e Judite.

 

Evangelho: Mt 7,7-12

No início da Quaresma, a Igreja nos apresenta textos para motivar a oração. Já na quarta-feira de cinzas ouvimos sobre a intenção certa de rezar (não para ser elogiados pelos homens; cf. Mt 6,4-6) e na terça-feira passada foi nos apresentada a oração do Pai Nosso (Mt 6,9-13). Hoje ouvimos um terceiro texto do sermão da montanha que fala sobre a confiança (fé) de sermos atendidos em nossas orações.

Pedi e vos será dado! Procurai e achareis! Batei e a porta vos será aberta! Pois todo aquele que pede, recebe; quem procura, encontra; e a quem bate, a porta será aberta (vv. 7-8).

Todo mendigo sabe que é preciso bater na porta ou na grade para ser atendido (cf. v. 8). Diante de Deus, somos realmente mendigos, pessoas carentes que precisam pedir (e por isso mesmo não devemos desprezar os pedintes que encontramos). As chances de encontrar algo sem procurá-lo ou de ser receber algo sem pedir nada são bem menores.

Quem de vós dá ao filho uma pedra, quando ele pede um pão? Ou lhe dá uma cobra, quando ele pede um peixe? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedirem! (vv. 9-11).

Jesus nos assegura que Deus nos trata como filhos, não como pedintes estranhos; podemos pedir, então, com toda confiança, porque o Pai que dá coisas boas a seus filhos.

Mas por que precisamos ainda pedir, se o Pai já sabe de que precisamos (cf. 6,7). Mesmo sabendo, um pai gosta quando seus filhos lhe pedem, gosta do diálogo, não é uma máquina assistencialista. É bom para nós nos colocarmos conscientemente na presença dele na oração; isso já nos faz sentir melhor e dá forças para superar dificuldades.

A oração não é uma ação automática, mas relação interpessoal. A experiência, porém, mostra que o Pai nem sempre dá a seus filhos o que pedem, porque pedem mal (cf. Tg 4,3; Rm 8,26). Se um filho pedisse muito chocolate todos os dias, será que um bom pai atenderia? O Pai sabe melhor do que nós mesmos o que é preciso, o que faz bem e o que tem sentido.

A oração de Jesus em Getsêmani, no jardim das oliveiras, é modelo disso (Mt 26,39p). Podemos pedir ao Pai conforme as nossas necessidades e os nossos sentimentos; já os Salmos não escondem os sentimentos do orador, mas temos que confiar na vontade de Deus que sabe o que é melhor para nós e para os outros.

Outra forma é apresentada no quarto evangelho (Jo 14,13; 15,16; 16,24.26): será atendido, quem pede “em nome de Jesus”, ou seja, em sintonia com Jesus (e, portanto, com a vontade de Deus), de forma que ele possa assinar o nosso pedido.

Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles. Nisto consiste a Lei e os Profetas (v. 12).

Em seguida, a leitura de hoje apresenta a chamada “Regra de Ouro”: “Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles”. Porque o evangelista colocou esta regra depois das recomendações da oração? Talvez quisesse mostrar que uma oração não deve ser um empreendimento egoísta, mas que devemos pensar também nos outros e suas necessidades (o “Pai Nosso”, não o Pai meu; o “pão nosso”, o reforço do “perdão” cf. 6,9-14) e não só pensar, mas também agir em favor deles (cf. 7,21; 5,42; 25,31-46).

A Regra de Ouro existe em muitas filosofias (cf. o Imperativo categórico de Immanuel Kant) e religiões (p. ex. na China, Confúcio: “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostarias que fosse feito a ti”).  Na forma negativa (não prejudicar os outros), ela é a mais comum; é um resumo da ética, uma lógica natural (lei natural). Não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência. A forma positiva que Jesus apresenta é mais exigente e desafia a criatividade: não somente prestar atenção para não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), mas pensar como posso fazer o bem ao outro. S. Tomás de Aquino definiu: “amar é querer o bem ao outro”.

Da Regra de Ouro “dependem a lei e os profetas” (v. 12b), ou seja, a ética de todo AT (Antigo Testamento). Perguntado sobre o maior mandamento da Lei, Jesus não citou a Regra de Ouro, porque ela não está escrita na lei de Moisés, mas citou Dt 6,5 (“amarás teu Deus…”) e Lv 19,18: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A Regra de Ouro, na sua forma positiva, é amar o próximo como a si mesmo, em outras palavras (cf. Tg 2,8). Assim Jesus interpreta e cumpre toda lei e os profetas (5,17; cf. Rm 13,8-10; Gl 5,14).

O site da CNBB resume: A oração deve sempre estar vinculada com a prática da vontade do Pai. A nossa oração será ouvida e Deus nos concederá o bem que desejamos somente quando formos capazes de realizar o bem para com os nossos irmãos e irmãs. Sendo assim, Deus somente realizará por nós aquilo que nós queremos que ele nos faça quando formos capazes de realizarmos pelos nossos irmãos e irmãs aquilo que eles esperam de nós, pois estaremos com isso cumprindo a vontade de Deus e ele, como recompensa, cumprirá a nossa vontade.

Voltar