6 de Setembro 2019, Sexta-feira: “Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha.

22ª Semana do Tempo Comum

Leitura: Cl 1,15-20

A primeira leitura nos apresenta um hino cristológico que celebra a grandeza universal de Cristo em duas estrofes. A primeira, (vv. 15-17), mais transcendental, tem como centro a criação (“Ele é a imagem de Deus…”), a segunda, mais eclesial, a ressurreição (“Ele é o começo…”), mas as duas partes combinam os atributos cósmicos (vv. 15.16.19) com os da redenção (vv. 14.18.20). A linguagem diferente dos vv. 13-14 indica que o hino é um material do qual o autor (um discípulo de Paulo) se apossa e cita de maneira mais completa, provavelmente acrescentando alguns complementos (p. ex. “isto é, da igreja” em v. 18).

A origem do hino pode ser uma adaptação de um hino helenístico (a expressão de v. 19 “plenitude” era abundante na filosofia estóica e gnóstica, mas é também bíblica, cf. Cl 2,9; Is 6,3; Jr 23,24; Sl 24,1; 50,12; 72,19; Sb 1,7; Eclo 43,27), ou é uma composição cristã de inspiração sapiencial. Os livros sapiências do AT (Antigo Testamento) cultivaram um gênero especial: o elogio da Sabedoria como personagem feminina. Da personificação o NT (Novo Testamento) salta para a pessoa, do feminino ao masculino. Como a Sabedoria, Cristo é “imagem de Deus” (Sb 7,26), preexiste toda a criatura (Pr 8,22-26), toma parte ativa na criação (Pr 8,27-30) e conduz os homens a Deus (Pr 8,31-36).

No NT, dois outros hinos celebram igualmente o papel universal e pré-existente de Cristo: Jo 1,1-18 e Hb 1,1-4 (cf. 1Cor 8,6 e Fl 2,5-11), ambos lidos em 25 de dezembro. Em Fl 2,5-11, o próprio Paulo já incorporou um hino que parte da pré-existência de Jesus. Estes hinos provavelmente tiveram sua origem na liturgia (cf. ainda 1Tm 3,16 e 1Pd 2,22-25).

Cristo é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, pois por causa dele, foram criadas todas as coisas no céu e na terra, as visíveis e as invisíveis, tronos e dominações, soberanias e poderes. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e todas têm nele a sua consistência (vv. 15-17).

Cristo é exaltado como cabeça do universo (e da Igreja em v. 18): um entrelaçado de alusões envolve esse tema. Em hebraico, começo, primícias, chefe derivam da mesma raiz, a de cabeça; a própria Bíblia começa com esta palavra: Be-reshit…, “No início, …” (Gn 1,1; cf. Jo 1,1).

O Deus invisível e inatingível se torna visível e acessível em Jesus, o Filho que se encarnou no mundo e na história. Jesus é, portanto, o verdadeiro Adão (Gn 1,26s; cf. 2Cor 4,4). Existindo “antes de todas as coisas” (criatura), ele se torna modelo, cabeça e único mediador do universo criado (cf. Hb 1,2s; Jo 1,2s.10).

Cristo é a “imagem de Deus” (2Cor 4,4) como homem criado por Deus (cf. Gn 1,26), mas também como Sabedoria (Pr 8,22-36; Sb 7,26; cf. Pr 3,19; 9,2-4). O filósofo grego Platão identificou esta imagem com o mundo; o filósofo judeu Filon, com os logos (palavra); Paulo e João, com Jesus (cf. 2Cor 4,4; Jo 1,14). Paulo fala também dos seres humanos à imagem de Cristo ou de Deus (Rm 8,29; 1Cor 11,7; 15,49; 2Cor 3,18).

Enquanto Deus era invisível, a proibição de fazer imagens (Ex 20,3-5; Dt 5,7-9; etc.) valia para não confundir Deus com uma criatura qualquer ou com deuses monstruosos (no Egito, eram apresentadas com cabeças de animais). Mas em Jesus Cristo, a Palavra invisível se tornou carne, Deus se tornou visível no seu Filho (cf. Jo 1,14.18; 12,45; 14,9; Tomé tocou nele, cf. Jo 20,27s). Aos poucos os cristãos entenderam a nova situação, a nova aliança (NT), a partir daí fazer imagens de Jesus (e dos santos) não poderia ser mais proibido, e mudou-se o primeiro mandamento, como mudou também o terceiro (do sábado para o domingo).

“Primogênito” implica em Israel, preeminência e consagração (Ex 13,11-16; Lc 2,7.23); o termo designa também o papel privilegiado da Sabedoria (Pr 8,22). “Primogênito de toda criação (ou de toda criatura)”, trata-se do Cristo preexistente (“anterior a toda criatura”), mas sempre considerando (cf. Fl 2,5) a pessoa histórica e única do Filho de Deus feito homem. É esse ser concreto, que é “imagem de Deus” enquanto reflete numa natureza humana visível “a imagem do Deus invisível” (v. 15; cf. Rm 8,29; 2Cor 4,4) e é ele que pode ser chamado “criatura”, mas “primogênito” na ordem da criação, como um primado de excelência e de causa, assim como de tempo. O Credo Niceno-Constantinopolitano especifica: o Filho de Deus é “gerado, não criado”, contra a heresia de Ário (séc. IV) que queria aceitar Jesus só como se fosse a primeira criatura e não como pessoa divina da Trindade (no séc. 19 nos EUA, as Testemunhas de Jeová surgiram e retomaram a esta mesma heresia).

“Por causa dele, foram criadas todas as coisas” Ele é o primogênito de toda criatura porque tudo o mais que foi criado por sua intercessão. Algumas expressões em seguida mostram o alcance da criação: começa com a antítese – “céus e terra, visíveis e invisíveis” – e continua com sinônimos de força e poder: “tronos, soberanias, principados e autoridades” designam aqui as potências invisíveis (angélicas ou astrais) do mundo sincretista sobre as quais se especulava em Colossas (cf. 2,15; Ef 1,21; 3,10; 6,12; Rm 8,38; 1Cor 8,4-6; 15,24; Fl 1,21; 2,10s; 1Pd 3,22; em 2Pd 2,10 e Jd 8 estes poderes são terrenos).

Ele é a Cabeça do corpo, isto é, da Igreja. Ele é o Princípio, o Primogênito dentre os mortos; de sorte que em tudo ele tem a primazia, porque Deus quis habitar nele com toda a sua plenitude e por ele reconciliar consigo todos os seres, os que estão na terra e no céu, realizando a paz pelo sangue da sua cruz (vv. 18-20).

Primeiro a ressuscitar dos mortos, Cristo é o novo Adão (1Cor 15,20-22), pois na nova criação ele é o “primogênito” (Rm 8,29; 1Cor 15,20; Ap 1,5). Assim, o poder vital de Deus se torna acessível aos homens por meio de Cristo, reconduzindo a criação à paz. A pacificação do universo está na remissão dos pecados (v. 14) realizada por Cristo na cruz. O cálice na ceia pascal é o cálice da paz, o qual Jesus identificou com seu sangue na última ceia (cf. Mt 26,28).

No hino primitivo, o termo “corpo” (v. 18) significava o corpo cósmico, o “universo”; com o acréscimo da expressão “que é a Igreja”, passou a indicar a comunidade da nova criação, da qual Cristo é a “cabeça”, tema importante em Cl (1,24.27; 2,17.19; 3,15).

Paulo já comparou a Igreja com o Corpo de Cristo (cf. 1Cor 6,15; 10.16s; 12,12-27; Rm 12,4s), mas entendia a igreja como entidade local e não fez distinção entre corpo e cabeça. Em Rm 12 e 1Cor 12, o corpo designa a comunidade dos fieis (em 1Cor 12,21 a cabeça é só um membro do corpo); em Ef e Cl, Cristo, chefe das potências e do universo, torna-se chefe da Igreja universal como cabeça personificada (v. 18; Ef 1,23; 4,15s; 5,23). Cristo é a cabeça, por sua prioridade no tempo (v. 1; ele é o primeiro ressuscitado, cf. 1Cor 15,23), como também por ser “princípio” na ordem da salvação (v. 20).

“Deus quis habitar nele com toda a sua Plenitude” ou “Deus, a Plenitude total, quis nele habitar” (v. 19). No gnosticismo, a Plenitude era todo o corpo de poderes celestiais e emanações espirituais procedente de Deus. No ensinamento errôneo, que o autor da carta criticará no cap. 2, provavelmente estavam presentes ideias gnósticas.

Já no AT celebrava-se o mundo cheio da presença e da glória de Deus que nele habita (cf. Is 6,3; Sl 24,1; 68,17) ou a sabedoria considerada morada de Deus que vem habitar na terra (cf. Pr 8,12-21; Eclo 24,7s.10; Br 3,38; cf. Jo 1,14). Esta plenitude reside agora em Cristo, “pois nele habita corporalmente toda plenitude da divindade” (2,9; cf. 2,2; Ef 1,10.23; 3,19; 4,13; Jo 1,16). No NT, o termo é geralmente determinado (plenitude de tempo, das nações, da Lei, de Deus), aqui empregado de modo absoluto (então próximo de “Espírito”).

“Quis reconciliar por ele e para ele todos os seres, na terra e nos céus” (v. 20). O sujeito de reconciliação é sempre Deus (Rm 5,10; 2Cor 5,18-20). Aqui, adquire sua maior extensão, englobando o céu e a terra.

 

Evangelho: Lc 5,33-39

A liturgia semanal saltou uns relatos em Lc que já ouvimos nos outros evangelhos: as curas de um leproso (vv. 12-15; Mc 1,40-45p) e de um paralítico (vv. 17-26; Mc 2,1-12p), a vocação do coletor de impostos e o banquete na sua casa (vv. 27-32; Mc 2,13-17). Depois deste banquete com os pecadores, Lc apresenta a questão do jejum (seguindo o roteiro de Mc) que é o terceiro momento de confronto com os fariseus.

Os fariseus e os mestres da Lei disseram a Jesus: “Os discípulos de João, e também os discípulos dos fariseus, jejuam com frequência e fazem orações. Mas os teus discípulos comem e bebem” (v. 33).

Na tradição judaica, o jejum era praticado por lei ou por devoção, como expressão de arrependimento, humildade ou luto (cf. Zc 7,3-5 e a crítica em Is 58). Aqui não se trata de jejuns prescritos pela lei, mas de prática ascética de determinados grupos religiosos. João Batista vivia no deserto (1,80; 3,2), era um asceta (1,15; 7,33p; Mc 1,6 omitido por Lc 3,4; cf. 11,18). Os seus discípulos (cf. 11,2s; 14,12), como também os fariseus, costumavam praticar jejuns particulares.

Quem pergunta em Mt 9,14 são os discípulos de João Batista que se surpreenderam com o estilo de vida de Jesus (cf. Lc 7,34; Mt 11,19) e seus discípulos. Quem pergunta em Lc são “eles”, ou seja, os mesmos da controvérsia anterior, então “os fariseus e mestres da lei” de 4,30 (que nossa liturgia acrescentou aqui em v. 33).

Jesus, porém, lhes disse: “Os convidados de um casamento podem fazer jejum enquanto o noivo está com eles? Mas dias virão em que o noivo será tirado do meio deles. Então, naqueles dias, eles jejuarão” (vv. 34-35).

O Messias se apresenta como esposo: título de Javé frequente no AT (Os 2; Is 49; 54; 62; Ez16 etc.), aplicado a Jesus no NT como esposa da nova aliança (Ef 5,22-32; cf. o noivo em Mt 22,1-14; 25,1-13). O casamento é tempo de alegria partilhada (Jr 16,8-9; Ct 3,11; 5,1; Sl 45), de “comer e beber” (5,30; cf. 7,34). Mas Lucas já conhece o tempo em que Jesus lhes foi arrebatado (Is 53,8): é o tempo da Igreja. Na Igreja Católica, a Sexta-feira Santa, “dia em que o noivo foi tirado”, é dia de jejum e abstinência da carne (como também é a Quarta-feira de Cinzas no início da quaresma).

Jesus contou-lhes ainda uma parábola: “Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha. Ninguém coloca vinho novo em odres velhos; porque, senão, o vinho novo arrebenta os odres velhos e se derrama; e os odres se perdem. Vinho novo deve ser colocado em odres novos (vv. 36-38).

Em v. 36, Lc classifica a resposta de Jesus como “parábola” (historinha de comparação). O casamento inaugura uma vida nova, não é um tapa-buraco, por isso “ninguém coloca remendo de pano novo em roupa velha” e “não se coloca vinho novo em odres velhos” (cf. Jó 32,19). Com a imagem do casamento combinam a da roupa e a do vinho. Ambas têm associações matrimoniais (p. ex. Is 52,1; 61,10; Sl 45, 9; Ct 2,4; 8,2) e servem para explicar a “novidade” (“renovando seu amor” diz Sf 3,17; o português “noivo” vem da palavra latim novus) “Antigo”, velho, é o adjetivo que Paulo aplica à aliança de Israel (2Cor 3,14). A imagem dos odres se encontra também em Jó 32,19. Ambas as imagens são muito expressivas, como se disséssemos: o Messias não vem para pôr remendos em panos gastos, ele traz um vinho que fermenta vida nova.

E ninguém, depois de beber vinho velho, deseja vinho novo; porque diz: o velho é melhor” (v. 39).

Só Lc acrescenta esta frase final. O vinho mais velho é mais valorizado, porque tem sabor melhor do que o novo que precisa ainda amadurecer. O costume do antigo impede considerar a qualidade do novo, o que explica de certo modo porque os judeus rejeitaram Jesus (cf. 4,24). Quem está habituado às estruturas do velho sistema, e não se predispõe à mudança, jamais aceita a novidade trazida por Jesus. Em Jo 2,10, o vinho novo (transformado da água) de Jesus é o melhor.

O site da CNBB comenta: A maioria das novidades que nós encontramos no dia a dia não passa, na verdade, de mudanças superficiais em coisas que já existiam antes ou de uma continuidade de um processo evolutivo, de modo que muito pouco vemos de realmente novo. Por isso, temos muita dificuldade em ver a novidade do Evangelho, não percebemos que na verdade ele nos apresenta valores que não existiam antes e uma forma totalmente nova de nos relacionarmos com Deus e com as outras pessoas. Se não estivermos bem atentos e totalmente abertos para a novidade do Evangelho, corremos o risco de querer fazer com que ele seja remendo novo em pano velho, ou vinho novo em odres velhos, uma continuidade dos valores do homem velho, algo que não se insere na realidade nem a transforma.

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