8 de Abril de 2020, Quarta-feira – Semana Santa: “O Filho do Homem vai morrer, conforme diz a Escritura a respeito dele. Contudo, ai daquele que trair o Filho do Homem! Seria melhor que nunca tivesse nascido!” (v. 24).

Semana Santa 

Leitura: Is 50,4-9a

O texto da leitura de hoje é tirado do Segundo Isaías (“Deutero-Isaías”, caps. 40-55), é o 3º canto (poema) do Servo de Deus (e também a 1ª leitura do Domingo de Ramos). Enquanto o 1º canto apresentou a missão pacífica do servo (42,1-4, lido na festa do Batismo do Senhor) e o 2º a reafirmou diante do insucesso (49,1-6), o 3º fala da experiência do sofrimento injusto.

Quem está a falar parece o próprio servo, embora não seja aqui nomeado, mas é o que se deduz do contexto (cf. v. 10). Não se chama profeta, mas narra sua vocação como de um profeta (cf. 49,1s). Ele inicia quatro vezes com “o Senhor Deus”, lit. “o Senhor Javé” (vv. 4.5.7.9; cf. 40,10; 48,16; 49,14.22; 51,22; 52,4): ao ouvir a palavra (v. 4, cf. Jr 1,2.7.9; 15,16.19; 17,15; 20,8s), ao sofrer na missão (vv. 5-6; cf. Jr 1,8.17; 10,17s; 17,17s; 18,18; 20,7-10) e para confiar no Senhor (vv. 7-9; cf. Jr 15,20s; 20,11-13).

Pelo gênero literário, é um salmo de confiança com confissão, e a mesmo tempo, uma alegação de defesa pelo próprio réu num tribunal. Suas palavras se dirigem aos homens, não a Deus.

O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo (v. 4).

O autor descreve sua vocação profética. Só pode falar o que ele ouve de Javé (cf. Jo 7,16; 14,24). Ele é um “discípulo” (v. 4; cf. 54,13), talvez saído de uma escola que remonta ao primeiro Isaias (cf. 8,16)? Nas escolas do Oriente, o método didático no primário era e, às vezes, ainda é: o mestre fala, e os discípulos repetem suas palavras.

O profeta está com uma “língua adestrada”, porque o “Senhor Deus” (lit. Senhor Javé, nos vv. 4.5.7.9) “desperta cada manhã e me excita o ouvido” (v. 4). A primeira impressão do dia é a palavra de Deus que o orienta e envia (cf. a oração pela manhã em Sl 5,4; 57,9; 88,14; 90,14; Mc 1,35). Sua missão tem um alcance mais restrito do que 42,1.4.6 e 49,6, mas uma nova qualidade: responder às angustias dos fracos e abatidos (cf. o início do Segundo Isaias em 40,1: “Consolai, consolai meu povo”). O povo no exílio está cansado, abatido, deprimido, fatigado, mas o profeta quer dar novo ânimo com sua palavra (cf. 40,27-31; Mt 9,36; 11,28-30).

O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti nem voltei atrás (v. 5).

  1. 5a repete que Deus lhe “abriu os ouvidos” (metáfora na Babilônia para uma divina revelação verbal a um ser humano). Para isso, o profeta não resiste o que o Senhor Javé pede também a outro profeta no exílio: “Não seja rebelde como esta casa de rebeldes” (Ez 2,8; 3,24-27; 24,27; 33,22). Ele não resiste nem volta atrás, nem faz objeções como Moisés e Jeremias (cf. Ex 3,11; 4,10; Jr 1,6). Nas confissões de Jr (Jr 15,14s; 20,8b-10), o profeta parece deprimido entre o recado de Deus e as hostilidades dos homens, mas a palavra de Javé alimenta seu coração todo dia. Deutero-Isaías já aceita este destino de profeta como intrínseca. Como depois Jesus, ele se identifica com a vontade de Deus (cf. Jo 4,34; Mc 14,36p).

Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas (v. 6).

O profeta não recua diante das dificuldades e ataques de adversários. Além de agressões físicas, sofre ações para envergonhar: cusparadas (Jó 30,10), bofetões, tapas no rosto, eram considerados uma vergonha (cf. Jó 16,10; Mt 5,39), principalmente quando se bate numa autoridade, por ex. num profeta (1 Rs 22,24), num juiz (Mq 4,14; Lc 18,5) ou num rei (cf. Jo 18,22). “Ofereci minhas costas para me baterem, e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas” (v. 6). A barba era símbolo da força e honra masculina. Só escravos estavam sem barba. Existem fotos em que soldados nazistas arrancaram a barba de judeus idosos. Os evangelistas veem o cumprimento destas palavras proféticas na paixão de Cristo (cf. Mc 10,34; 15,19; Mt 26,67; 27,26-30; 27,30; Lc 22,63s).

Não se sabe o porquê destas agressões. O profeta apanhou dos seus conterrâneos, porque não escondeu que a culpa do exílio era do povo de Israel (42,18-25; 43,22-28; 50,1; etc.)? Ou seus adversários ficaram cansados e enfurecidos por causa das suas promessas de um novo êxodo maravilhoso enquanto, na vida real, nada mudou (ainda). Maltrataram este “falso profeta” (cf. Jr 29,8ss) ou o denunciaram diante das autoridades babilônicas?

Mas o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções? Vejamos. Quem é meu adversário? Aproxime-se. Sim, o Senhor Deus é meu Auxiliador; quem é que me vai condenar? (vv. 7-9a).

O profeta-servo torna se firme na sua confiança, faz seu “rosto impassível como pedra” (cf. Jr 1,18s; Ez 3,8s; Jó 28,9; cf. Lc 9,51). É para esconder a dor ou esconder sua ira? É a sua resistência aos adversários, porque ele não recorre à violência (42,2-3) nem foge dos agressores. Ele pode ter medo dos inimigos, mas aplica a si mesmo o que falou aos exilados desanimados: “Não temas” (cf. 41,10-13), e confia na sua defesa pelo Senhor. Como ele é inocente e cumpre o que Deus ordenou, o próprio Deus fará sua defesa. O profeta se declara e desafia como num tribunal (cf. 41,1-7 e o processo em Dt 25,1-3) em que os adversários acham que já ganharam. A não-resistência pode ser tomada como confissão de culpa, dando razão ao adversário.

“Mas o Senhor Javé é meu auxiliador” (vv. 7.9). Mas quem acusará, se seu advogado é o próprio Deus? (cf. a função do Espírito-paráclito em Jo 16,8-11; Mt 10,20; e a grande confiança de Paulo em Rm 8,31-34). Deus demonstrará a inocência do acusado, conseguirá sua absolvição, enquanto os adversários serão apanhados na mesma armadilha que lhe tinham preparado (cf. v. 11). “Certamente todos eles se gastarão como uma veste, a traça os devorará” (v. 9b, omitido pela liturgia de hoje; cf. 51,8).

Neste terceiro canto, o “Servo” de Javé se revela como indivíduo (não como povo, cf. 41,8; 42,19; 43,10; 44,1s; 45,21; 48,20; 49,3?). É um profeta que expressa como recebe a palavra de Deus, quais sofrimentos lhe surgem no seu ofício e como os suporta. Está perto das confissões de Jeremias e da vocação de Ez 2, mas tem seu perfil próprio. Suas palavras aqui se relacionam a outros trechos de Deutero-Isaías (cf. 40,27-31; 41,8-13; 51,8) e não deixam dúvidas: o Servo é o próprio profeta: Deutero-Isaías. Sua solicitude pastoral para com os fracos, cansados e abatidos prefigura Jesus, que os convida como bom pastor, manso e humilde (cf. Mt 11,28; Lc 13,34; 19,9s; cf. Is também Is 40,27-31; 46,1-4; 55,1ss;); sua recusa de violência reencontra-se na ética de Jesus (Mt 5,39b). Mas o servo-profeta espera ser reconhecido, justificado no tribunal. No tempo do AT, moralidade e legalidade ainda eram uma coisa só. Ainda não havia a crença numa possível justificação após a morte. Mas os cantos do servo, na sequência de 50,4-9 e 52,13-53,12 representam um salto na fé. O servo renuncia a vingar-se e espera que sua honra seja recuperada, que injustiça não tenha a última palavra e a violência seja superada (cf. CF 2018). Como, onde e quando o servo será justificado não se fala ainda. A comunidade falará depois na liturgia funeral em 52,13-55,12 (leitura de Sexta-feira Santa).

Evangelho: Mt 26,14-25

A sequência dos evangelhos dos dias da semana abandona hoje o evangelho de João (o retomará amanhã) para aprofundar mais uma vez a traição de Jesus por Judas (cf. evangelho de ontem). Como foi possível que um dos amigos mais íntimos traiu aquele que só fez o bem a todas as pessoas?

Um dos doze discípulos, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse: “O que me dareis se vos entregar Jesus?” Combinaram, então, trinta moedas de prata (vv. 14-15).

Qual o motivo da traição de Judas? Em Mc e Lc, ele já resolveu “entregar” Jesus, e os sumos sacerdotes “alegraram-se e prometeram dar lhe dinheiro” (Mc 14,11; Lc 22,5). O dinheiro parece mais uma recompensa do que o motivo primário. Até hoje não sabemos o motivo de Judas: se ele estava decepcionado com o ensinamento ou as atitudes de Jesus, ou se ele queria provocar uma revolta na qual Jesus sairia vitorioso, quem sabe? São suposições. Mt e Jo destacam mais o motivo financeiro. Em Jo 12,6 ele é descrito como ladrão que desviava os recursos bolsa comum. No apócrifo “Evangelho de Judas” (séc. IV), é apresentado como amigo íntimo de Jesus que o entrega a mando do próprio Jesus (cf. o comentário de ontem).

No evangelho de hoje, ele quer saber: “O que me dareis se vos entregar Jesus?” (v. 15). O preço combinado é “trinta moedas de prata” (v. 15), não significa 30 denários (um denário equivalia uma diária de trabalho, cf. 20,2), mas 30 siclos (40g de ouro), é o preço estabelecido (indenização) de um escravo em Ex 21,32. Em Gn 37,28, José é vendido por 20 moedas de prata (abaixo do preço). Mt alude a uma profecia em Zc 11,12 onde o bom pastor é entregue a um preço irrisório.

E daí em diante, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus (v. 16).

O verbo “entregar” é comumente empregado em sentido pejorativo (4,12; 5,25; 10,17.19), principalmente nos anúncios da paixão (17,22; 20,18; 26,2; cf. 1 Cor 11,23).

No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram: “Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?” Jesus respondeu: “Ide à cidade, procurai certo homem e dizei-lhe: “O Mestre manda dizer: o meu tempo está próximo, vou celebrar a Páscoa em tua casa, junto com meus discípulos.” Os discípulos fizeram como Jesus mandou e prepararam a Páscoa (vv. 17-19).

Como na entrada festiva em Jerusalém (21,1-4), Jesus conhece e controla a situação, pode dar ordens aos discípulos e ao anfitrião. Vários detalhes apontariam para uma ceia da Páscoa: os preparativos (vv. 17-19), o roteiro com a benção (v. 26) e os hinos (v.30). Mas não se menciona o cordeiro (imolado no templo e comido em casa; cf. Ex 12).

A cronologia de Jo é diferente: nele, a ceia não é uma ceia pascal; Jesus morrerá na exata hora em que os cordeiros estão sendo imolados no templo (cf. 1,29; 13,1,19,28; 19,14.31.36). Portanto, nos sinóticos (Mc, Mt e Lc), ou Jesus antecipa por conta própria o rito pascal ou segue outro calendário (ex. dos essênios), ou a celebração cristã da nova Páscoa (1Cor 5,7) influi na redação do relato da última ceia.

Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos. Enquanto comiam, Jesus disse: “Em verdade eu vos digo, um de vós vai me trair.” Eles ficaram muito tristes e, um por um, começaram a lhe perguntar: “Senhor, será que sou eu?” Jesus respondeu: “Quem vai me trair é aquele que comigo põe a mão no prato (vv. 20-23).

A ceia é festiva, porque os comensais se põem (lit. deitam) à mesa. Mt menciona aqui os “doze” pela última vez; eles acompanham Jesus até sua prisão no jardim (v. 56; cf. v. 47). A cena concentra-se no anúncio da traição, é profecia encenada.

A traição do amigo lembra o Sl 41,10: “Até meu amigo em que confiava e que comia do meu pão, é o primeiro a me trair.” Os discípulos “ficavam muito tristes” e perguntam “Senhor, será que sou eu?” Em Mt, o título “Senhor” é empregado pelos discípulos e por pessoas abertas a Jesus. Conforme o costume, um prato comum (com água salgada ou molho de fruta) é servido a todos antes do prato principal.

“O Filho do Homem vai morrer, conforme diz a Escritura a respeito dele. Contudo, ai daquele que trair o Filho do Homem! Seria melhor que nunca tivesse nascido!” (v. 24).

Jesus mandou dizer: “O meu tempo está próximo” (v. 18; cf. Jo 7,30; 13,1; Ap 1,3; 22,10) e declara durante a ceia: “O Filho do Homem vai morrer” (lit.: “se vai”; cf. os anúncios da paixão em 17,22p; 20,18p; 26,2; Mc 8,31p); o “Filho do homem” significa simplesmente ser humano (filho de Adão) ou aquele a quem Deus entregará o reino e o juízo final (cf. Dn 7,13s). Por este duplo sentido, Jesus usa este termo com preferência. Aqui ele se refere ao conjunto da “Escritura” (Antigo Testamento; cf. Lc 24,27.44) que profetizou seu sofrimento (cf. Sl 22; Is 53; Zc 12,10; Sb 2).

“Contudo, ai daquele que trair o Filho do homem. Seria melhor que nunca tivesse nascido!” (v. 24). Não se expressa uma maldição (cf. Lv 20,3-5 grego), mas uma indignação e dor profunda pelo fato de que entre os doze havia um traidor (cf. 1 Jo 4,19; cf. 11,21; 18,7; 24,19; 23,13). Jesus constata a situação infeliz de Judas, ele nem o maldiz nem o condena. Dio Crisóstomos 29,19 consta: “Podia-se encontrar um grande número de pessoas para quem teria sido bem melhor morrer cedo, porque tanta desgraça veio sobre elas”.

Então Judas, o traidor, perguntou: “Mestre, serei eu?” Jesus lhe respondeu: “Tu o dizes” (v. 25).

Judas parece ser o último a perguntar e não chama Jesus de “Senhor” como os outros discípulos (cf. v. 22: “Senhor, será que sou eu?”), mas apenas de “Rabi” (mestre), ou seja, “Mestre, serei eu?”. Este tratamento, Mt usa na boca dos adversários (23,7.8; 26,49). A resposta de Jesus “Tu o dizes” (v. 25) se repete no processo diante do sumo sacerdote (v. 64) e de Pilatos (27,11).

Não se menciona uma reação indignada dos outros apóstolos. Judas foi o traidor, mas o elemento traidor também está nos outros discípulos (cf. vv. 56.69-75: a negação de Pedro e em 27,3-9 a morte de Judas, cf. At 1,15-20), e está em nós também quando traímos nossos princípios, convicções e promessas, e às vezes por pouca coisa.

O site da CNBB comenta: O amor que Deus tem por todas as pessoas nunca foi plenamente correspondido, pois sempre o pecado manifestou o desamor que o homem tem por ele. O episódio da traição de Judas nos mostra de um modo muito mais profundo esta verdade. O Filho, verdadeiro Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, por amor a nós, renuncia à sua condição divina e se faz homem, tornando-se um de nós. A resposta que ele encontra dos homens não é o amor, mas a traição e a morte. Mas nem mesmo esta realidade diminui o amor que Deus tem por nós, uma vez que, por amor, Jesus nos dá livremente a sua vida.

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