8 de Agosto 2019, Quinta-feira: Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19).

18ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Nm 20,1-13

Continuamos a acompanhar a caminhada do povo de Israel pelo deserto. Supõem-se que se passaram os quarentas anos da primeira geração (cf. 14,33s; leitura de ontem); agora começa a marcha sistemática rumo a terra prometida. Depois do acontecimento descrito em nossa leitura de hoje, termina a região desértica e começa a região povoada, os primeiros encontros com povos hostis à marcha (já em Ex 17,8-16). A leitura de hoje apresenta um motivo suplementar, que é a exclusão de Moisés e de Aarão do povo que entrará na terra prometida, impelindo à obediência absoluta à teocracia pós-exílica (vv. 12-13)

Toda a comunidade dos filhos de Israel chegou ao deserto de Sin, no primeiro mês, e o povo permaneceu em Cades (v. 1a).

Na data incompleta parece que desapareceu “no ano quarenta”. A localidade se encontra no extremo sul da palestina; o nome Cades (hebraico: santo) não é exclusivo de um lugar (cf. 13,26, leitura e comentário de ontem). Sua localização agora em Cades é secundaria: este lugar (um oásis em 13,26) não pode ser aquele que o v. 5 descreve; contudo o episódio aqui narrado fez dar a Cades o nome de Meriba-Cades (cf. 27,14 etc.).

Ali morreu Maria e ali mesmo foi sepultada (v. 1b).

Três mortes na mesma família se destacam na última etapa: aqui a de Maria (tradução grega do nome hebraico Miriam, v. 1), a irmã de Aarão e a de Moisés, este dois morrerão também antes de entrar na terra prometida (cf. vv. 23-29; Dt 34). Nem os representantes da profecia (Maria, cf. 15,2s) nem do sacerdócio (Aarão), nem da lei (Moisés) entrarão, mas entrarão seus sucessores.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 177) comenta: A persistência da memória de Maria, cuja morte é lembrada junto com a Aarão (vv. 22-29), revela a importância das mulheres na religião pré-exílica de Israel, bem como sua resistência à sua exclusão no pós-exílio.

Como não havia água para o povo, este juntou-se contra Moisés e Aarão, e, levantando-se em motim, disseram: “Antes tivéssemos morrido, quando morreram nossos irmãos diante do Senhor! Para que trouxestes a comunidade do Senhor a este deserto, a fim de que morrêssemos, nós e nossos animais? Por que nos fizestes sair do Egito e nos trouxestes a este lugar detestável, em que não se pode semear, e que não produz figueiras, nem vinhas, nem romãzeiras, e, além disso, não tem água para beber?” (vv. 2-5).

Várias narrativas mostram o povo no deserto clamando por água (Ex 15,22-27; 17,1-17; Nm 20,2-13; 21,16-18). Este episódio é uma releitura sacerdotal de Ex 17,1-17 (localizada em Massa e Meriba; cf. Sl 95,8), segundo a técnica de espelho: lê-se no princípio e no fim da marcha. A repetição poderia dever-se ao desejo do autor de submeter às mesmas provas a nova geração; o problema é o mesmo, repetem-se os protestos, inclusive literalmente.

O protesto repete motivos já ouvidos em alguns castigos coletivos precedentes: a reclamação “porque?”, a razão pervertida da saída “para que morramos “, a invocação à morte “oxalá tivéssemos morrido”.

Deixando a comunidade, Moisés e Aarão foram até a entrada da Tenda da Reunião, e prostraram-se com a face em terra. E a glória do Senhor apareceu sobre eles (v. 6).

O gesto de Moisés e Aarão é de intercessão, sem palavras citadas. O oráculo divino se pressupõe. A glória do Senhor aparece em forma de nuvem durante a caminhada, na Tenda e depois no Templo (cf. Ex 16,10; 24,26; 33,9s; 40,34 etc.; cf. 1Rs 8,10-12).

O Senhor falou, então, a Moisés, dizendo: “Toma a tua vara e reúne o povo, tu e teu irmão Aarão; na presença deles ordenai à pedra e ela dará água. Quando fizeres sair água da pedra, dá de beber à comunidade e aos seus animais” (vv. 7-8).

O texto distingue duas coisas: bastão (“vara”) e palavra. O bastão deve ser o dos prodígios do êxodo (Ex 4,1-9; 7,9-20; … 14,16; 17,5), não a vara florescida de Aarão (Nm 17,16-26). Seguro na mão, é sinal de autoridade, não varinha mágica. Moisés deve dar uma ordem à rocha, e está lhe obedecerá (cf. Sl 78,15s; 1Cor 10,4).

Moisés tomou, então, a vara que estava diante do Senhor, como lhe fora ordenado. Depois, Moisés e Aarão reuniram a assembleia diante do rochedo, e Moisés lhes disse: “Ouvi, rebeldes! Poderemos, acaso, fazer sair água desta pedra para vós?” E, levantando a mão, Moisés feriu duas vezes a rocha com a vara, e jorrou água em abundância, de modo que o povo e os animais puderam beber (vv. 9-11).

As palavras da pergunta são claras. É duvidoso o tom: será pergunta retórica que inclui resposta afirmativa? Moisés fica contagiado pela dúvida? A execução não coincide com a ordem: Moisés não fala ordenando a pedra, só bate, mas o faz duas vezes. Mesmo assim, a água jorra (cf. Sb 11,7).

Provavelmente, a água da rocha simboliza a Lei de Moisés que emana do Templo pós-exílico, como nas visões dos profetas (Ez 47,1-12; Jl 4,18; Zc 13,1; 14,8; cf. a releitura desta imagem em Jo 4,10-14; Ap 22,1s).

Então o Senhor disse a Moisés e a Aarão: “Visto que não acreditastes em mim, para manifestar a minha santidade aos olhos dos filhos de Israel, não introduzireis este povo na terra que lhe vou dar” (v. 12).

Não está claro em que consiste o pecado de Moisés e Aarão. Que deveriam ter feito e não fizeram para mostrar publicamente a santidade do Senhor? O texto nem o diz nem o insinua. O Sl 106,32-33 diz que “seus lábios” desvairaram, não diz em quê. Demonstrou Moisés falta de fé ao ferir o rochedo por duas vezes? Isto não se encontra no paralelo de Ex 17. Talvez a tradição ou a redação tenha preferido calar ou dizer o menos possível para explicar por que Moisés e Aarão não entraram na terra prometida: seria essa a razão que levou a colocar esta narrativa modificada (v. 11) antes da morte de Aarão (vv. 22-29) e a repeti-la antes da morte de Moisés (Dt 32,51s; cf. Nm 27,14)? Segundo Dt 1,37; 3,26; 4,21, Moisés é punido porque o povo se recusou a subir de Cades a Canaã (cf. Nm 14, leitura de ontem).

Estas são as águas de Meriba, onde os filhos de Israel disputaram contra o Senhor, e ele lhes manifestou a sua santidade (v. 13).

Os lugares Meriba e Cades apareceram unidos em Dt 32,51; Ez 47,19; 48,28. “Manifestar a santidade” (vv. 11.12) joga em hebraico com o nome de Cades que significa em hebraico “santo (lugar)”, como o verbo “disputar” joga com o nome Meriba (cf. Ex 17,7).

Evangelho: Mt 16,13-23

No evangelho de hoje, Mateus copia Mc 8,27-33, mas destaca o papel de Simão Pedro através de uma declaração de Jesus. Para apreciar, precisa reconhecer que Mt já usava o evangelho mais antigo, o de Marcos. Para Mc, a profissão de fé de Pedro está no centro do evangelho, mas Mc não nos transmite as palavras de Jesus sobre o primado de Pedro. Na primeira metade de Mc, Jesus demonstra seu poder, cura e atua milagres na Galileia até ser aclamado de “Cristo-Messias” por Simão Pedro (Mc 8,29). Mas a partir daí, Jesus começa anunciar sua paixão e morte em Jerusalém (Mc 8,31; 9, 31, 10,33). Simão Pedro deve ficar calado ainda sobre o segredo do messias, mas não quer entender o sofrimento anunciado a respeito do messias e repreende o mestre. A reação de Jesus é durissima: “Atrás de mim, Satanás, não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8,33).

O segredo do messias e a incompreensão até por parte dos discípulos são características do evangelho de Mc. João Marcos acompanhava Paulo e era intérprete de Pedro, conhecia bem o lado humano deles (cf. At 12,12.25; 13,5.13; 15,37.39; Cl 4,10; Fm 24; 2Tm 4,11; 1Pd 5,13). A obra atribuída a ele foi concluída cerca de 70 d.C., durante da guerra judaica e pouco depois da perseguição violenta pelo César Nero que resultou no martírio de Pedro e Paulo (65 ou 67 d.C.) e de muitos outros cristãos, por isso falava da necessidade da cruz e da dificuldade de entender isso.

Para Mt, a situação é diferente. Ele atenua ou evita falar da incompreensão dos discípulos. Para Mt e Lc, que escreveram cerca de 15 anos depois, os apóstolos já ganharam o status de santos. Como a guerra judaica tinha acabado com a derrota dos judeus, não havia mais tanta necessidade de um segredo messiânico, não precisava evitar o mal-entendido de um messias-Cristo nacionalista e guerreiro. Mas por fidelidade à sua fonte Mc, Mateus não omite nem o silêncio nem a repreensão, mas os adia para vv. 20-23, declarando antes Pedro como “pedra” fundamental da Igreja.

Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas.” Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (vv. 13-16).

Na primeira parte do evangelho de hoje, Mt segue fielmente a Mc. Antes de ir ao sul para cumprir sua missão Jerusalém, Jesus e os discípulos encontram-se no ponto mais setentrional da sua trajetória, em Cesareia de Filipe, uma cidade construída junto às nascentes do Jordão, em 2 ou 3 a.C., por Herodes Filipe em honra de César Augusto. A pergunta de Jesus força os discípulos a fazer uma revisão de tudo o que ele realizou no meio de povo. Esse povo não entendeu bem quem é Jesus. Os discípulos, porém, que acompanham e vêem tudo que Jesus tem feito, reconhecem agora, através de Pedro, que Jesus é o Messias.

O termo “Filho do Homem” (cf. 8,20 etc.) pode significar simplesmente “ser humano” (cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.; em hebraico: “filho de Adão”) ou aludir à visão apocalíptica de Dn 7,13s, na qual um ancião (Deus) entrega o reino de Deus a um Filho do Homem que vem nas nuvens e contrasta com as bestas-feiras dos reinos pagãos. Em Dn 7,29, o Filho do Homem é identificado com o “povo dos santos”.  Em alguns círculos judaicos (cf. o livro apócrifo Apocalipse de Henoc), este Filho do Homem foi identificado como indivíduo: o messias que virá e julgará o mundo no final dos tempos (cf. Mt 13,41; 16,27; 24,30.37.39.44; 25,31; 26,64). Jesus não podia ser preso ao utilizar este título pela ambiguidade do seu significado, aplicou-o a si mesmo com predileção, não só para indicar sua futura glória celeste (cf. 10,23; 13,37; 24,34p; 25,31; 26,64), mas também para expressar sua humilhação humana (8,20; anúncios da paixão: 17,12; 20,17-19; Mc 8,31; Jo 3,14).

O título “profeta”, que Jesus não reivindicou senão de maneira indireta e velada (13,57p; Lc 13,33), mas as multidões lhe deram sem hesitar (16,14; 21,11.46; Mc 6,15p; Lc 7,16. 39; 24,19: Jo 4,19; 9,17), tinha valor messiânico, pois o espírito de profecia, extinto desde Malaquias, devia reaparecer, segundo a opinião dominante entre os judeus, como sinal da era messiânica, seja na pessoa de Elias (17,10-11p), seja sob a forma de uma efusão geral do Espírito (At 2,17s.33). De fato, no tempo de Jesus sugiram muitos (falsos) profetas (24,11.24p; etc.). Quanto a João Batista, esse foi realmente profeta (11,9p; 14,5; 21,26p; Lc 1,76), como precursor vindo com o espírito de Elias (11,10p.14; 17,12p). Em Jo 1,21, o Batista negou ser “o profeta” que Moisés havia predito (Dt 18,15). Este profeta, a fé cristã só reconheceu na pessoa de Jesus (At 3,22-26; Jo 6,14; 7,40). Contudo, por ter-se disseminado na Igreja primitiva o carisma da profecia, após o Pentecostes (At 2,11s; 11,27; 13,1; 15,32; 19,6; 21,9s; Rm 12,6; 1Cor 11,4s; 12,10.28s; 13,2.8-12; 14,6.22.24.29-32.37; Ef 2,20; 4,11; Ap 1,3; 10,11; 19,10; 22,6-10.18s), este título deixou, bem cedo, de ser aplicado a Jesus, cedendo o lugar a títulos mais específicos da cristologia.

Entre os profetas, Mt acrescenta o nome “Jeremias”, talvez pela perseguição que este profeta sofreu, ou pelo sonho em 2Mc 15,12-16 em que Jeremias dá uma espada a Judas Macabeus: num gesto semelhante Jesus dará a chave a Pedro.

“Cristo” não é um nome, é título, tradução grega da palavra hebraica meshiach = messias, quer dizer, “ungido”, consagrado por uma unção (em grego: crisma – o óleo; cristo – o ungido). Quem foi ungido no AT? Reis e sacerdotes com frequência, e raramente um profeta (1Rs 19,15s; Is 61,1; cf. Lc 4,18). Quanto aos membros do sacerdócio, não parece que a unção lhes tenha sido conferida antes da época persa. Os textos sacerdotais antigos a reservavam ao sumo sacerdote (Ex 29,7.29; Lv 4,3.5.16; 8,12). Depois foi estendida a todos os sacerdotes (Ex 28,41; 30,30; 40,15; Lv 7,36; 10,7; Nm 3,3). Nos textos históricos antigos, a unção é reservada ao rei (1Sm 10, 1s; 16,1ss; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esta unção confere ao rei um caráter sagrado: ele é o Ungido de Javé (1Sm 24,7; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16;19,22). Aplicado muitas vezes pelos Salmos a Davi e sua dinastia, este título tornou-se o título por excelência do Rei do futuro, o “messias”, do qual Davi era o protótipo, e o Novo Testamento o atribui ao “Cristo” Jesus.

A esperança do messias iniciou-se 1000 anos antes de Jesus. Em 2Sm 7 Deus prometeu a Davi que sua dinastia e seu trono permanecesse para sempre. O oráculo ultrapassa o sucessor de Davi, Salomão, e deixa entrever um descendente privilegiado em que Deus se comprazerá. É o primeiro elo das profecias sobre o messias, “filho de Davi” (cf. Is 7,14; 9,5-6; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5-6; Mq 4,14; Ag 2,23; Mt 1,1; Mc 10,47s; 11,10p). A maioria dos sucessores no trono de Davi não seguiu os caminhos de Deus (cf. 1-2Rs). Depois do exílio não havia mais um rei da descendência de Davi em Israel. O rei Herodes não era nem judeu (era idumeu, de um povo vizinho ao sul da Judéia) e foi instituído por imposição de César Augusto. Mas a esperança por um messias salvador, que libertasse o povo dos seus opressores igual a Davi, se mantinha viva (e existe até hoje entre muitos judeus).

“Messias” ou “Cristo” é designação judaica do salvador esperado. Mc compreende esse título no sentido novo que lhe confere sua aplicação a Jesus (Mc 9,41; 12,35-37). Em Mc, Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (Mc 14,61s), antes mandava calar os espíritos impuros que o reconheciam como “Filho de Deus” (3,11). O segredo messiânico de Jesus só pode ser entendido a partir da cruz; o centurião no pé da cruz proclama “Este era o filho de Deus” (15,39). Só um homem, porém, reconhece Jesus como “Messias”: Pedro, mas ele é logo intimado ao silêncio (Mc 8,30.33), enquanto em Mt 16, é instituído “Papa” primeiro, pela inserção dos vv. 17-19, ainda antes de Mt copiar (de Mc) a ordem de silêncio, o anúncio da paixão e a repreensão de Pedro (vv. 20-23).

À resposta de Pedro “Tu és o Messias (Cristo)” em Mc 8,29, Mt acrescenta “o Filho de Deus vivo”. No AT, “filho de Deus” aplica-se aos anjos, ao povo eleito, aos israelitas fiéis e ao messias (2Sm 7,14; Sl 2,7; 89,27), designa uma relação particular com Deus fundada em sua eleição e na missão. Os cristãos destacam, com suas primeiras confissões de fé, o caráter único e decisivo da pessoa de Jesus: ele é mais do que um profeta ou rei (cf. Mt 12,41s), ele mantém com Deus uma relação filial inigualável (“Abba” significa papai, cf. Mc 14,36) e a ele foi confiada uma missão impar na obra da salvação (cf. Rm 10,9; Hb 9,26-28; Jo 3,16-17).

Em Mt, não é a primeira profissão de fé. Já em 14,33, depois da caminhada de Jesus sobre as águas (cf. Mc 6,45-52p), Mt substitui a incompreensão dos discípulos por uma profissão de fé: “se ajoelharam diante dele dizendo: ‘De fato, tu és o Filho de Deus’”. Mas aqui, no evangelho de hoje, Mt aproveita a oportunidade e apresenta um paralelismo das identificações: “o povo diz … vós dizeis, …; Pedro diz ‘tu és o Messias’, … Jesus diz ‘tu és Pedro’”.

Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu (v. 17).

Simão, pela “carne e sangue” é “filho de Jonas”, mas declara que Jesus é o messias esperado, e Jesus ratifica, declarando que esta confissão procede de uma revelação do seu “Pai que está no céu” (cf. 11,25-27; Gl 1,16). A fé é resposta à revelação, à palavra de Deus. A fé (de Pedro e nossa também) é sempre dom de Deus, mas é tarefa também. Este dom da fé que recebemos no batismo (quando crianças) precisa ser aprofundado e vivido, praticado, celebrado, transmitido. A revelação a Pedro tem um sentido cuja profundidade Pedro mostraria, mais tarde, não ter aprendido ainda (vv. 22-23).

Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la (v. 18).

“Pedro” (cf. 10,2) é tradução grega do nome aramaico Cefas (Jo 1,42; 1Cor 1,12; 9,5; 15,5; Gl 1,18). Tal nome grego não era usado como nome próprio de pessoa na época. A mudança de nome pode ter ocorrido mais cedo (cf. Jo 1,42; Mc 3,16; Lc 5,8; 6,14).

A palavra grega ekklésia (Igreja) traduz o termo hebraico qahal que significa “assembleia” e é comum no AT para designar o povo eleito (cf. Dt 4,10; 23,2; 1Rs 8,22 etc.; At 7,38); lit. “chamada para fora”, uma voz chama os indivíduos para fora da casa para se reunirem em assembleia. Certos grupos judaicos que se consideravam o “resto de Israel” (cf. Is 4,3) dos últimos tempos (ex. os essênios em Qumrã), aplicaram qahal ao seu próprio círculo. Jesus o transfere à comunidade messiânica, que ele irá construir selando uma nova aliança pelo derramamento de seu sangue (26,28; cf. 5,25). “O reino de Deus já está próximo” (4,17), por isso esta comunidade deve começar já aqui na terra por uma sociedade organizada (assembleia, igreja: At 5,11; 1Cor 1,2 etc.) cujo chefe é instituído por Jesus com estas palavras a Pedro.

Essa nova comunidade é simbolizada por um templo que Jesus “construirá”; ele é o dono da construção (“minha igreja”) e Pedro será a pedra fundamental (cf. Ef 4,20-22; Gl 2,47-9; 1Cor 10,10-17; 1Pd 2,4-8; Ap 21,14). Pedro terá um papel medianeiro: por sua fé, adesão e aderência a Cristo, participa da solidez da “rocha”, símbolo antigo de Deus (cf. Dt 32,4.15.18.30.31; Sl 19,14; 27,5 etc.) e da fé (cf. 7,24). A declaração de Jesus corresponde à função eminente que Pedro desempenhou no início da Igreja (4,18; 17,1; At 1,13.15; 3,1; 10,5; 15,7; Jo 6,67-69; 21,15-23; Gl 2,7).

A interpretação destas palavras e seu alcance diferem nas diferentes denominações. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1890) anota o seguinte: A tradição católica aduz este texto para fundamentar a doutrina segundo a qual os sucessores de Pedro herdaram o seu primado. A tradição ortodoxa opina que, em suas dioceses, todos os bispos que confessam a verdadeira fé integram-se na sucessão de Pedro e na dos demais apóstolos. Embora reconheçam a posição e a função privilegiada de Pedro nas origens da Igreja, os exegetas protestantes estimam que Jesus só tem em vista, aqui, a pessoa de Pedro.”

O primado do bispo de Roma (chamado “Papa”) era um primado de honra (por ser Roma a capital do império e o lugar do martírio de Pedro e Paulo); somente no segundo milênio desenvolveu-se o primado jurídico de chefe quase absoluto (“vigário de Cristo”) culminando no dogma na infalibilidade do papa (no Concilio Vaticano I em 1870), mas completado pela colegialidade dos bispos (o papa é o primeiro entre iguais) no Concílio Vaticano II (1962-1965). A permanência própria da Igreja durante 2000 anos, apesar de perseguições de fora e crises internas, cismas etc., comprovam de certo modo a palavra de Jesus: ”o poder do inferno nunca poderá vencê-la”, lit. as portas do hades. Esta palavra grega, em hebraico sheol, designa a morada dos mortos (cf. Nm 16,33). As portas simbolizam seu poder (cf Jó 38,17; Sb 16,13). O hades não conseguirá reter na morte os membros da comunidade messiânica de Jesus.

Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19).

Jesus promete a Pedro “as chaves do reino dos céus”, e com essas dá acesso ao reino (conforme as bem-aventuranças, cf. 5,3.10). Ele terá o poder de “ligar e desligar”, ou seja, proibir ou permitir, julgar, condenar ou perdoar, ensinar e interpretar, ratificado por Deus, diferente dos fariseus e doutores da lei que amarram fardos pesados (23,4) e fecharam o acesso ao reino de Deus (23,13). Enquanto somente Pedro fica com o símbolo da chave (cf. Is 22,22), a autoridade de ligar e desligar é dada também ao conjunto dos discípulos (18,18; Jo 20,23). O Reino de Deus está vinculado a uma Igreja cujos traços ainda não estão definidos, mas com o poder das chaves já não está desprovida de certa estrutura: depois das chaves, será a cátedra (cadeira para ensinar e presidir), daí a “catedral” e o magistério dos bispos e do papa no Vaticano.

Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias (v. 20).

Na terceira parte do evangelho de hoje, Mt segue Mc 8,30 com o “segredo messiânico” e a incompreensão do primeiro discípulo (como já foi dito mais a cima). Em Mc, só um homem reconhece Jesus como Messias: Pedro, mas junto com os discípulos é logo intimado ao silêncio (Mc 8,29s). Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (Mc 14,61s).

Esta imposição de silêncio era frequente em Mc (cf. Mc 1,34; 9,9; 1,34.45; 5,43; 7,36s, 9,9), só depois de sua morte seria suspensa (Mc 9,9; 16,7; cf. Mt 10,27).

Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir à Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia (v. 21).

Depois da profissão da fé de Pedro, Jesus fala sobre o modo pelo qual deve cumprir sua missão de messias e anuncia sua paixão (vv. 21p; 17,12.22p; 20,17-19p; 26,2). Mt destaca a necessidade (devia) de ir à Jerusalém para sofrer lá (cf. Lc 24,26.44). Mt omite aqui o termo “Filho do Homem” (Mc 8,31); Jesus aqui é só o Filho obediente que cumprirá a profecia de Is 53 sobre o “Servo de Javé”, que devia morrer para salvar seu povo dos pecados (cf. o acréscimo de Mt em 26,28). O quarto canto do Servo de Javé é o ápice de Deutero-Isaias e um texto profético sobre o sofrimento do messias/profeta (cf. Is 42,1; 61,1) que era usado muito no anúncio dos primeiros cristãos (citado em Mt 8,17; Lc 22,37; At 8,30-35; 1Pd 2,21-25; cf. Mt 26,28.63;27,29-31.38s.60; Jo 1,29; 19,5 etc.) para identificar a paixão de Cristo (cf. Sl 22).

“Os anciãos, os sumos sacerdotes e os mestres da Lei” são os três grupos do Grande Sinédrio, colégio de 71 membros, que governava o povo judeu. Ele constava dos representantes da aristocracia leiga (os anciãos), das grandes famílias sacerdotais (os sumos sacerdotes, entre os quais se elegia o Sumo Sacerdote) e dos escribas ou intérpretes da lei (na maioria com tendência farisaica). O Sinédrio era presidido pelo Sumo Sacerdote em exercício, Caifás, em 18-36 d.C.. Aqui o evangelho não diz de que maneira Jesus “será morto”, mas num versículo próximo deixa claro que será na “cruz” (v. 24, evangelho de amanhã).

Mt e Lc trocam o “ressuscitar três dias depois” de Mc 8,31 pelo “ressuscitar no terceiro dia”, contando sexta-feira, sábado e domingo (o tríduo pascal da liturgia começa na quinta-feira santa e termina no domingo da Páscoa). O terceiro dia é tradicionalmente o dia da salvação (Os 6,2; Jn 2,1; Mt 12,40).

Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus mas sim as coisas dos homens!” (vv. 22-23).

Enquanto Lc simplesmente cortou esta incompreensão de Pedro e as palavras duras de Jesus em Mc 8,32s, Mt as transmite fielmente, mas as relativiza e atenua, já antes pelo elogio de Pedro e seu papel de pedra fundamental da Igreja em vv. 17-19.

A reação de Pedro (cf. 2Sm 20,20; 23,17; 1Cr 11,19) ilustra bem a dificuldade de associar o título de Cristo às perspectivas da paixão e da morte. Opondo-se ao padecimento de Jesus, Pedro endossa o papel de “Satanás” (cf. Jó 1-2) que tenta desviar Jesus da obediência a Deus (4,1-11p). Ele abandona a sua posição de discípulo que deve seguir “atrás” de Jesus (v. 24; cf. 4,20.22; 8,19-22; 19,21.27-29). A reação de Jesus é duríssima, chama o primeiro papa de “Satanás” (cf. após a última tentação no deserto em 4,10).

Mt salienta que desta maneira Pedro se torna uma “pedra de tropeço” (lit. escândalo, cf. Is 8,14; ou seja, um motivo de pecado) em vez de uma “pedra fundamental” da Igreja; desta maneira não é mais movido pelo Pai do céu (v. 17), mas por seus instintos humanos (a amizade por Jesus e o medo de seguir). Esta ambivalência de Pedro se repetirá na sua tríplice negação em 26,33-35.69-75.

Na história da Igreja, os sucessores de Pedro, os 266 papas, se mostraram ambíguos também.  Nem todo papa foi santo, uns escandalizaram (por sua vida mundana, p. ex. Alexandro VI, aquele que traçou a divisa entre os territórios português e espanhol nas Américas no tratado de Tordesilhas). Na polêmica depois da sua excomunhão, Lutero xingou o papa Leão de “besta-fera” (cf. Ap 13), palavrão que uns protestantes repetem até hoje. Devemos levar em conta que já Pedro foi chamado assim, no entanto, e se arrependeu e recebeu de Jesus o mandato de papa (primeiro dos apóstolos) novamente (cf. Jo 21). Na Igreja, somos todos justos e pecadores, também os papas (na maioria foram pessoas santas).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje pode sugerir duas perguntas para a nossa vida pessoal. A primeira é: em que fundamentamos o nosso conhecimento no que diz respeito à nossa fé? A segunda pergunta é: quais são as consequências da nossa fé para a nossa vida? Quanto à primeira pergunta, podemos fundamentar o nosso conhecimento sobre as coisas da fé a partir da Palavra e do Magistério da Igreja, que nos garantem a verdade, mas podemos fundamentar este conhecimento na opinião de muita gente que fala muita coisa a respeito de Deus sem entender nada de nada ou até mesmo termos uma fé sem fundamento nenhum. Quanto à segunda pergunta, podemos fazer da nossa fé o motor da nossa vida ou podemos ter apenas uma fé discursiva ou indiferente, que não representa nada para a nossa vida concreta.

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