21 de Agosto 2019, Quarta-feira: “Os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos”

20ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Jz 9,6-15

A leitura de hoje nos apresenta uma das mais antigas narrativas bíblicas e o primeiro exemplo de uma fábula (parábola que põe em cena plantas ou animais, cf. 2Rs 14,9; Ez 17, 3-10 e muitas vezes nos Provérbios). Este gênero literário é comum entre os povos antigos. Esta fábula apresenta crítica severa à monarquia. As arvoras nobres não aceitam reinar, mas o espinheiro, inútil e perigoso por propagar o fogo, aceita a função. A fábula poderia ter tido existência independente antes de ser utilizada para ilustrar a história de Jerobaal (Gedeão) e Abimelec.

O juiz libertador, Gedeão Jerobaal (cf. leitura de ontem; Jerobaal é seu apelido, cf. 6,32), “teve setenta filhos gerados por ele porque tinha muitas mulheres” (8,30; costume da época). “A sua concubina cananeia, que residia em Siquém, lhe gerou também um filho, ao qual deu o nome de Abimelec” (8,31) cujo nome significa “Meu Pai e Rei”. Depois de sua vitória sobres os madianitas, os israelitas pediram a Gedeão: “Reina sobre nós, tu e teu filho e teu neto!” Mas Gedeão recusou a oferta dos israelitas dizendo: “Nem eu nem meu filho seremos vosso reis; o vosso rei será o Senhor (Javé)” (8,22s). Isto representa o ideal defendido pelas tribos contra o sistema monárquico da cidade-estado, onde os reis se perpetuavam no poder através de sucessão dinástica (de pai para filho): a única autoridade sobre o povo de Israel é Javé, e isso não permite constituir poderes absolutos que sempre acabam por explorar e oprimir o povo (cf. 1Sm 8). A história de Abimelec serve ao redator deuteronomista para demonstrar que em Israel só pode haver um rei escolhido por Javé e criticar a incapacidade dos reis que levaram o povo ao exílio.

Todos os habitantes de Siquém e os de Bet-Melo se reuniram junto a um carvalho que havia em Siquém e proclamaram rei a Abimelec. Informado disso, Joatão foi postar-se no cume do monte Garizim e se pôs a gritar em alta voz, dizendo: “Ouvi-me, moradores de Siquém, e que Deus vos ouça” (vv. 6-7). 

Em Siquém, Josué tinha celebrado a aliança entre Javé e o povo e como testemunha tinha erguido uma pedra debaixo do carvalho (Js 24,25-28). Lá havia uma convivência sincretista de israelitas e cananeus. Abimelec convenceu seus parentes cananeus (por parte da mãe) de elegê-lo rei, cercou-se de aventureiros e matou seus setenta irmãos, filhos de Gedeão. Só o mais novo, Joatão, escapou, subiu ao monte sagrado de Garizim (cf. Js 8,33; Jo 4,20) e pronunciou com voz profética da consciência esta fábula. Natã, Isaias, Ezequiel imitarão seus procedimentos oratórios. É um pouco exagerado dizer que do alto (“cume”) Joatão se faz ouvir; o efeito é antes exaltar sua figura e seu púlpito (cf. Is 13,2; 40,9).

Joatão pode ser nome teofórico que significa “Yhwh (Javé) é perfeito” e tem estranha semelhança com órfão (yatom). Não lhe restam mais armas senão a voz e a palavra, mas sua maldição será mais forte que o valor e as armas do seu meio-irmão. Não tem personalidade  independente, aparece na narração e desaparece (v. 21) com a função exclusiva de pronunciar este discurso.

Certa vez, as árvores resolveram ungir um rei para reinar sobre elas, e disseram à oliveira: “Reina sobre nós”. Mas ela respondeu: “Iria eu renunciar ao meu azeite, com que se honram os deuses e os homens, para me balançar acima das árvores?” (vv. 8-9).

A parábola não parece ter origem israelita já que põe em dupla complementar “os deuses e os homens”, porque para Israel só existe um só Deus (pelo menos a partir da reforma de Josias, cf. 2Rs 23).

A primeira visita das árvores é para “ungir” a oliveira, de onde vem o azeite para ungir: há ironia na proposta? Há uma alusão a primeira tentativa de ungir Gedeão? O óleo de oliva (azeite) é usado também no culto para ungir reis e sacerdotes (cf. Ex 27,20; 29,7; Lv 2; Sl 104,15; 133,2; 1Sm 10,1; 16,13). O verbo kbd significa engordar, enriquecer, sustentar, “honrar”.

Então as árvores disseram à figueira: ”Vem e reina sobre nós”. E ela lhes respondeu: “Iria eu renunciar à minha doçura e aos saborosos frutos, para me balançar acima das outras árvores?” As árvores disseram então à videira: ”Vem e reina sobre nós”. E ela lhes respondeu: “Iria eu renunciar ao meu vinho, que alegra os deuses e os homens, para me balançar acima das outras árvores?” (vv. 10-13).

O estribilho é que caracteriza ironicamente o governo é: “me balançar acima das outras árvores”. As figueiras representam as árvores frutíferas. O vinho é para “alegrar” ou também “festejar” (Sl 104,15; Eclo 31,27s; PR 31,6; Ecl 9,7).

Por fim, todas as árvores disseram ao espinheiro: “Vem tu reinar sobre nós”. O espinheiro respondeu-lhes: “Se deveras me constituís vosso rei, vinde e repousai à minha sombra; mas se não o quereis, saia fogo do espinheiro e devore os cedros do Líbano!” (vv. 14-15).

Repetições e mudanças preparam e salientam o elemento final. Oliveira, figueira e videira (ou parreira) são plantas básicas na economia do país; com elas contrastam a nobreza dos cedros do Líbano (boa madeira, mas sem frutos) e a mesquinhez daninha e perigosa do espinheiro. É bem irônico que o espinheiro oferece sua “sombra” e seu asilo às arvores; mas não estranha que seja causa de um incêndio florestal (cf. a sarça ardente em Ex 3,2 e a coroação de Jesus em Mc 15,27s). O tema do fogo e dos ramos se realizam em vv. 46-49 (Abimelec destruiu a cidade de Siquem); o tema da sombra ressoa com outra função no v. 36. A parábola já é bastante significativa: Os notáveis de Siquém (nobres cedros) escolheram como rei Abimelec (um espinheiro) que será a ruína deles (cf. 9,22-49).

Esta fábula representa a mais severa crítica ao poder político: somente aquele que nada produz é que se presta para exercer o poder, e a segurança que ele oferece não passa de armadilha contra a liberdade do povo. Ainda hoje há pessoas que entram na política depois de fracassarem com seus empreendimentos, esperando enriquecer agora com o dinheiro público. Por isso é importante conhecer a vida e a motivação dos candidatos e não confiar cegamente em promessas e propagandas.

Evangelho: Mt 20,1-16a

O evangelho de hoje é uma parábola que se encontra somente em Mt. No evangelho de ontem, Pedro perguntou a Jesus: “Nós deixamos tudo e te seguimos. O que haveremos de receber?” (19,27). A estrutura lembra 18,21-35: pergunta de Pedro, resposta direta de Jesus (19,28-30) e uma parábola em seguida para aprofundar o assunto (20,1-16). A resposta direta de Jesus terminou com a frase que será repetida também no final da parábola: “Muitos que agora são os primeiros serão os últimos. E muitos que agora são os últimos serão os primeiros” (19,30; cf. 20,16).

O Reino dos Céus é como a história do patrão que saiu de madrugada para contratar trabalhadores para a sua vinha (v. 1).

Mt começa uma série de três parábolas sobre a vinha (cf. 21,28-32.33-46). Vinha ou videira é a imagem tradicional de Israel (Is 5; Sl 80 etc.) e se aplica depois à Igreja (Jo 15). O texto situa-se no “sermão sobre a comunidade”, começado no cap. 18. Jesus continua instruindo seus seguidores sobre o comportamento no mundo.

Combinou com os trabalhadores uma moeda de prata por dia, e os mandou para a vinha. Às nove horas da manhã, o patrão saiu de novo, viu outros que estavam na praça, desocupados, e lhes disse: “Ide também vós para a minha vinha! E eu vos pagarei o que for justo”. E eles foram. O patrão saiu de novo ao meio-dia e às três horas da tarde e fez a mesma coisa (vv. 2-5).

O Reino dos Céus é aqui comparado ao proprietário que contratou vários trabalhadores para sua vinha, em horários diferentes. A jornada costumava ser de sol a sol e pagava-se diariamente. Um denário, ou seja, “uma moeda de prata” era a diária comum.

Saindo outra vez pelas cinco horas da tarde, encontrou outros que estavam na praça, e lhes disse: “Por que estais aí o dia inteiro desocupados?” Eles responderam: “Porque ninguém nos contratou”. O patrão lhes disse: “Ide vós também para a minha vinha” (vv. 6-7).

Os últimos são contratados ainda às cinco horas da tarde; estavam desempregados, sentados na praça “o dia inteiro” aguardando por um contrato de serviço.

Quando chegou à tarde, o patrão disse ao administrador: “Chama os trabalhadores e paga-lhes uma diária a todos, começando pelos últimos até os primeiros!” Vieram os que tinham sido contratados às cinco da tarde e cada um recebeu uma moeda de prata (vv. 8-9).

Segundo o preceito bíblico de não atrasar o salário do trabalhador (Lv 19,13; Dt 24,15; Jó 7,2), o patrão paga no final do dia, mas invertendo a ordem (recurso necessário da narrativa para falar depois do ciúme dos primeiros). Ele paga a todos igualmente, começando pelos últimos, contratados à tardinha, até os primeiros, contratados de manhã, a mesma diária.

Em seguida vieram os que foram contratados primeiro, e pensavam que iam receber mais. Porém, cada um deles também recebeu uma moeda de prata. Ao receberem o pagamento, começaram a resmungar contra o patrão: “Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro”. Então o patrão disse a um deles: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. (vv. 10-14).

Aos primeiros que ficaram com inveja (cf. a sutil instrução de Eclo 14,3-10), ele diz: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata?”. A justiça é feita, mas o patrão é mais do que justo: ele é bondoso, sabe que os últimos também precisam alimentar suas famílias.

“Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?” (v. 15).

O direito do trabalhador é receber o salário combinado, o direito do proprietário é fazer com seu dinheiro o que quer (respeitando as obrigações sociais e ambientais).

Aqui terminava provavelmente a parábola original que, talvez, se endereçasse aos fariseus, (como as parábolas de Lc 15). Jesus queria mostrar-lhes que a bondade de Deus ultrapassa os critérios humanos na retribuição concebida como um salário devido, sem, contudo, descambar na arbitrariedade, que não leva em conta a justiça. Ele convida a não se mostrar invejoso perante a liberalidade do amor de Deus.

“Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (v. 16a).

A sentença final é aberta e se encontra também em outro lugar e outro contexto (19,30). Aqui, provavelmente foi acrescentada à parábola original (vv. 1-15) e sublinha a ordem da distribuição dos salários (v. 8). Corresponde a uma nova situação, a da igreja de Mt, onde judeu-cristãos e pagão-cristãos se misturam. Os que foram chamados primeiro são os judeus (cf. 10,5s), mas os pagãos e pecadores convertidos que foram chamados posteriormente, chegarão ao reino antes dos judeus (cf. 21,31)? Aplica-se dentro da Igreja em diversas circunstâncias, p. ex. cargos confiados na Igreja a ex-pagãos em vez de dar preferência aos judeu-cristãos. Os primeiros (judeus) refugiam-se em suas prestações de serviço, os últimos (pagãos) na generosidade de Deus (cf. Rm 9-11).

A maneira como este patrão trata seus operários nos chama a atenção para a gratuidade com que Deus nos acolhe em seu reino. Não é segundo os critérios humanos que Deus age em favor da humanidade. A estranheza das palavras de Jesus nessa parábola deve nos chamar a atenção para nossa maneira de julgar a Deus ou de atribuir-lhe atitudes especificamente humanas.

Geralmente o ser humano quer recompensa por suas boas ações (em vez de alimentar privilégios, a meritocracia recompensa e motiva os que trabalham bem, não favorece os preguiçosos). E, quando não se sente recompensado, acha que Deus é injusto, não o ama ou se esqueceu dele. Costuma-se até dizer: “Por que Deus não atende às minhas preces? Sou tão dedicado, tenho tanta fé!” Mas a maneira de Deus agir não se iguala à nossa (cf. Is 55,8s). Ele é absolutamente livre para agir como quiser. E essa liberdade é pontuada por seu amor incondicional e sua generosidade inestimável. Deus nos ama e deu-nos mais do que ousamos pedir. Deu-nos a vida. Deu-nos a si mesmo no seu Filho. Deu-nos a eternidade ao seu lado.

Por isso, o reino dos céus não se apresenta como recompensa por nossos méritos pessoais. É puro dom de Deus, que nos chama gratuitamente a participar da vida plena. Cabe a nós acolhê-lo como dom e não ficar numa atitude mesquinha de sempre esperar recompensas por méritos prévios. Isso não é cristianismo, não é gratuidade. Isso não é resposta amorosa a Deus.

No Reino não existem marginalizados. Todos têm o mesmo direito de participar da bondade e misericórdia divinas que superam tudo quanto os homens consideram como justiça. No Reino, não há lugar para o ciúme. Aqueles que julgam possuir mais méritos do que os outros devem aprender que o Reino é dom gratuito.

A maior parte da Bíblia é o Antigo Testamento, que é a Sagrada Escritura dos judeus (Bíblia Hebraica). Eles são aqueles trabalhadores das primeiras horas. Os hebreus foram os primeiros a responder “sim” ao apelo do dono da vinha (cf. Gn 15,6; Ex 19,8; 24,3 etc.). As demais nações herdaram desse povo as alianças, as promessas, a história e principalmente o Messias (Rm 9,3-5). Sejamos gratos a Deus por nossa vocação tardia, mas sejamos gratos também aos judeus, nossos irmãos mais velhos, fatigados pelo dia inteiro de trabalho.

O site da CNBB comenta: Nós estamos acostumados com a forma de justiça que foi estabelecida pelos homens e, por causa disso, encontramos dificuldades para compreender a justiça divina, principalmente porque os principais critérios da justiça dos homens são a diferença entre as pessoas e a troca entre os valores enquanto que os principais critérios da justiça divina são a igualdade entre as pessoas e a gratuidade dos valores. Isso nos mostra que a lógica divina é totalmente diferente da lógica dos homens e que nós vivemos reivindicando valores que, na verdade, são valores humanos e que não nos conduzem a Deus. Também nos mostra o quanto todos nós somos comprometidos com os valores humanos e deixamos de lado os valores do Reino.

Voltar