01 de março de 2018 – Quinta-feira, Quaresma 2ª semana

Leitura: Jr 17,5-10

Parecida com o Sl 1, a leitura de hoje apresenta o homem maldito (vv. 5-6) e o homem bendito (vv. 7-8), e em seguida uma conclusão sobre o coração humano e a justiça de Deus (vv. 9-10).

Isto diz o Senhor: “Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana, enquanto o seu coração se afasta do Senhor; como os cardos no deserto, ele não vê chegar a floração, prefere vegetar na secura do ermo, em região salobra e desabitada (vv. 5-6).

Os vv. 5-8 abordam o tema das seguranças falsas e verdadeiras. Jr quer alertar seus conterrâneos sobre as alianças ilusórias e traiçoeiras que Judá e Jerusalém estão buscando nas grandes polêmicas do Egito e da Assíria (cf. 2,18; cf. Is 30,15; 31,1-3: “o egípcio é um homem e não um deus”). Aqui, o profeta junta frases e provérbios no estilo sapiencial lembrando o tema universal dos dois caminhos (Dt 30,15-20; Pr 4,18-19; 12,28; 15,24; Eclo 15,17; Mt 7,13-14). Este tema domina uma serie de antíteses e se formula numa dupla de sinônimos que formam inclusão, confiança e esperança.

Em quem o homem confia? Em outros homens, no seu saber, na riqueza (v. 11), valores instáveis e enganadores? São seguranças falsas e só trazem frustrações. O profeta Jeremias, solitário e hostilizado por todos os lados (cf. 18,18-20, leitura de ontem), espera unicamente no Senhor (vv. 7-8.12-13).

Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor; é como a árvore plantada junto às águas, que estende as raízes em busca de umidade, por isso não teme a chegada do calor: sua folhagem mantém-se verde, não sofre míngua em tempo de seca e nunca deixa de dar frutos (vv. 7-8).

Os vv. 5-8 têm muito em comum com Sl 1 (salmo responsorial de hoje): se comparam os destinos do infiel e do justo com árvores plantados “no deserto” (v. 6) ou “junto às águas” (v. 8). Diferente do Sl 1, o justo (como o próprio Jeremias em 15,18; 17,8) está exposto também à seca, ou seja, perigos e provações, “a chegada do calor … em tempo de seca”, mas o homem que confia no Senhor “não sofre míngua”, porque “estende as raízes em busca de umidade” (vv. 7-8) e mantém se vivo, porque alcança o Senhor, “manancial de água viva” (v. 13; cf. Is 12,2s; Jo 4).

Além do tempo de provação que o justo pode sofrer, há outra diferença: o Sl 1,2 põe a confiança no estudo e na observância da lei, mas Jeremias fala da fé, ou seja, de quem “confia no Senhor” (cf. Sl 40,5; 18,8-9; 146,3), um destacamento significativo que aponta para o Novo Testamento (NT). Assim o profeta anunciará uma “nova aliança” (31,31), mais interior do que a antiga: “Colocarei minha lei em seu peito e escreverei em seu coração” (31,33). Por sua vez, o apóstolo Paulo afirma muitas vezes que “o justo vive pela fé” (Rm 1,17; cf. Hb 2,4) e “o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gl 2,1).

Em tudo é enganador o coração, e isto é incurável; quem poderá conhecê-lo? Eu sou o Senhor, que perscruto o coração e provo os sentimentos, que dou a cada qual conforme o seu proceder e conforme o fruto de suas obras (vv. 9-10).

O ser humano que tem fé e “confia no Senhor” tem muito mais profundidade do que “o homem que confia no homem e faz consistir na carne humana, … não vê chegar a floração, prefere vegetar na secura” (vv. 2-3). Portanto, não se deve confiar demais nos outros homens nem no próprio “coração” humano que é “enganador” (v. 9; apesar de Eclo 37,13; na Bíblia, o coração é centro das decisões, “raiz do pensamento”, Eclo 37,17). Só o Senhor penetra o coração e os “sentimentos” (lit. rins), e é juiz justo que dá “a cada qual … conforme o fruto de suas obras” (v. 10; cf. Tg 2,14-26).

Evangelho: Lc 16,19-31

O evangelho de hoje sobre o rico esbanjador e pobre Lázaro não é um relato histórico nem uma parábola para comparar o reino de Deus. É uma narrativa didática em duas partes (como a parábola do filho pródigo, cf. 15,11-32).

Para Lc, a justiça social e a partilha de bens são importantes (cf. 11,41; 12,16; 16,9; At 2,44s; 4,32.34-36). A primeira parte da parábola (vv. 19-25) se inspira num tema conhecido no Egito antigo e no judaísmo, a mudança de situação provocada pela passagem deste mundo para o outro. É o que as bem-aventuranças e mal-aventuranças proclamam (6,20-24) e, de certo modo, também Ana e Maria cantavam (1Sm 2; Lc 1,52s). Está mudança, se não ocorrer nesta vida, há de acontecer num “além” imaginado e descrito conforme as crenças judaicas da época em apelo à conversão.

(Naquele tempo, Jesus disse aos fariseus:) Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas (vv. 19-21).

Nossa liturgia introduz os fariseus “amigos de dinheiro” como destinatários desta parábola (cf. vv. 14s). É a única parábola em que um protagonista tem um nome (além de Abraão que é conhecido, v. 22): “Lázaro” (do hebraico Eliazar = Deus auxilia), enquanto o rico permanece anônimo (uma tradução o chama de “Epulão”, fazendo do latim epulo = comilão, um nome próprio). Como a narrativa termina falando da ressurreição (vv. 27-31), pode-se pensar numa relação (pobre, doente, morto) com a ressurreição de Lázaro em Jo 11,1-45. Alguns trechos do evangelho de João parecem ter uma influência ou tradição comum com Lucas (Jo 11,1.20; 12,2-3; 20,3; cf. Lc 10,38-40; 24,12).

O fato de que o pobre na parábola tem nome e o rico não o tem já é bastante significativo, porque, no mundo, os nomes dos ricos são conhecidos (“celebridades ilustres”), enquanto os pobres ficam no anonimato. Deus, porém, conhece o pobre e o chama pelo nome (cf. Is 43,1).

A parábola se coloca no terreno das posses, na oposição entre ricos e pobres. Apresenta um rico pecador e um pobre (suposto justo) e afirma castigo e prêmio após a morte. O pecado consiste em entregar-se a boa vida sem preocupar-se com os necessitados (Is 22,13; Am 6,4-6; Sb 2). “Este foi o pecado de Sodoma: soberba abundancia e despreocupação, mas não deu uma mão ao infeliz e pobre” (Ez 16,49), e qual foi o castigo? “Do céu o Senhor fez chover fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra e arrasou aquelas cidades” (Gn 19,24-25). Uma riqueza empregada assim é injusta. A narrativa ilustra uma frase conclusiva da parábola anterior: “Usai o dinheiro injusto para fazer amigos, e assim quando este acabar, eles vos acolham nas tendas eternas” (v. 9).

De Lázaro, a narrativa só conta só o sofrimento, não as virtudes (estas podem ser deduzidas pelo fato de ele ser elevado ao céu pelos anjos, v. 22). Aqui na terra não consegue afugentar os “cães”, considerados na Bíblia como animais repugnantes e maus (Sl 22,17-21; Pr 26,11; Mt 7,6).

Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado (v. 22).

“Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão“ (lit. ao seio de Abraão), isto é o lugar de honra no banquete presidido pelo ancestral do povo eleito, o patriarca Abraão (cf. 13,28). Conforme o costume da época, os convidados estão reclinados sobre almofadas, Lázaro ao direito de Abraão, em cuja almofada se apoia com o cotovelo esquerdo (cf. Jo 13,23; 1,18; Mt 8,11). A imagem expressa intimidade e corresponde à antiga expressão bíblica “reunir-se a seus pais”, isto é, aos ancestrais, aos patriarcas e matriarcas (Jz 2,10; cf. Gn 15,15; 47,30; Dt 31,16). O “paraíso” é para certos judeus da época o lugar onde os justos falecidos esperam a ressurreição e que se imagina, segundo o significado da origem da palavra, como “parque” (jardim); não se usa a palavra aqui, mas a ideia (cf. 23,43; Gn 2,8; 2Cor 12,4; Ap 2,7; 22,2).

“Morreu também o rico e foi enterrado” (v. 22b); pode-se pensar num funeral luxuoso com muitas pessoas ilustres, enquanto não se menciona o enterro do pobre.

Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: “Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas”. Mas Abraão respondeu: “Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv. 23-26).

“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, … sofro muito nestas chamas” (vv. 23.24). Salvo raras exceções (Jó 14,22), o sheol (ou xeol) do AT (hades em grego, traduzido por “mansão/região dos mortos”) não é lugar de tormentos e sim de existência sem vida (cf. Is 38,18; Sl 88,11; Pr 1,12; Dn 12,2; Mt 16,18). Um apócrifo judaico (4Esd) a representa com fogo de forno instalado no vale de Enon (geena, traduzido por “inferno”) perto de Jerusalém onde crianças eram sacrificadas e queimadas e que se tornou depois lugar de lixo e maldição (Dt 12,31; 2Rs 16,3; Jr 7,31; Mt 5,22; Ap 14,10). O fogo como tormento é raro, é o elemento divino (Gn 15,17; Ex 3,2; 19,18; Dn 7,10; At 2,3 etc.), inacessível (Is 33,14) e aniquilador (Sl 68,3; Is 66,24; Mc 9,48).

O rico pede consolo: “Manda Lazaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua” (v. 24). Abraão responde com o tema clássico da inversão da situação pós-morte, desmentindo a teoria da retribuição nesta vida (cf. Sl 1; 49; 73). Pobreza e riqueza estão em correlação. A riqueza de uma desfrutada com egoísmo, provoca a pobreza do outro. “Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado” (v. 25b; cf. 6,21.24). Nesta vida convivem ricos e pobres, maus e bons. Na vida futura, a separação é definitiva e insuperável. A exclusão do pobre em nossa terra através de muros, grades, cadeias, cerca elétricas, cães etc. tornou-se um “grande abismo” (v. 26), insuperável no além, só que agora o excluído é o rico excludente.

O rico insistiu: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28).

Por um momento, o rico atormentado torna-se mais humano, deixa seu egoísmo de lado e intercede por sua família: “Manda Lázaro a casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos, manda preveni-los” (v 28).

Mas Abraão respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” O rico insistiu: “Não, Pai Abraão, mas se um dos mortos for até eles, certamente vão se converter”. Mas Abraão lhe disse: “Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (vv. 29-31).

Abraão, porém, indica a Escritura: “Se não escutarem a Moisés nem os profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (v. 31). O sinal mais decisivo para atrair a fé não é o milagre, nem o mais sensacional da ressurreição (cf. Jo 11), mas a Palavra de Deus na Escritura (cf. 24,27-44), ou seja, a coerência da mensagem revelada. Jesus falou da ineficácia dos milagres para as cidades da Galileia (10,13) e da superioridade da fé na palavra sobre sinais físicos (12,29-32; Jo 14,11; 20,29).

Ao pecado do luxo desenfreado sem dar a mínima atenção misericordiosa aos pobres acrescenta-se que o rico e seus irmãos não fazem caso da Sagrada Escritura. “Moisés e os profetas” (vv. 29-31) representam todo AT (Antigo Testamento, cf.  9,30p; 16,16; 24,27.44; cf. Mt 7,12; 11,13; 22,40). No culto da sinagoga há uma leitura da Lei, outra dos Profetas (cf. At 13,15). No AT, a exigência de socorrer os pobres é bastante clara e reiterada (Dt 15,1-11; Is 58,7.10, cf. Mt 25,31-46). Um belo exemplo da unidade da Bíblia: Jesus Cristo é centro e cume da revelação, mas o AT não é dispensável.

A parábola pode causar polêmica se for mal-entendida como informação exata sobre a geografia no além. Os protestantes veem nela uma prova de que não existe um purgatório entre céu e inferno, portanto não faria mais sentido tentar mudar o destino dos falecidos através de orações. É verdade que a Bíblia não fala quase nada sobre a existência de um purgatório, um lugar de purificação necessária no além antes de poder entrar no céu. As únicas referências são 1Mc 12,43-46; Mt 12,32; 1Cor 3,15; 1Pd 1,7.

Mas o doutor da graça, Santo Agostinho, insiste na existência do purgatório como argumento que Deus é justo. Se o inferno significa estar atormentado e separado de Deus por toda eternidade, o que Deus vai fazer com os cristãos medíocres como nós que merecemos nem o céu nem o inferno? O purgatório não é vingança de Deus, mas Boa Nova de que uma transformação do mal para o bem é possível para o pecador arrependido. Aliás, no paraíso – um lugar, ou melhor, uma situação sem males -, não devem entrar maus pensamentos, precisamos ser purificados deles, aqui, ou se não merecemos o inferno, então no além.

Os dogmas da Igreja Católica afirmam a existência de um purgatório, mas entendem o fogo e o tempo de purificação apenas em sentido simbólico (cf. CIC 1030-1032; 1472), como imagens de reconhecimento da verdade justa e de intensidade do arrependimento.

A Igreja Católica canonizou muitas pessoas, ou seja, declarou-as santas, porque tem certeza de que estão no céu, mas nunca declarou que tem certeza de certas pessoas estarem condenadas definitivamente ao inferno, porque a Igreja não pode limitar a misericórdia de Deus (Papa Francisco disse em outro contexto: “Quem sou eu para julgar…”). Isso não quer dizer que todos serão salvos. A Igreja tem esperança da misericórdia divina para todos, mas é impossível ter certeza.

Bem-entendida, a doutrina sobre o purgatório expressa a justiça divina com misericórdia respeitando as matizes e nuances e nossa possibilidade de orar pelos falecidos (cf. o trecho de 2Mc 12,43-45, num dos sete livros não reconhecidos na Bíblia dos protestantes e que representa certa espiritualidade judaica na época próxima de Jesus).

Mal-entendida, a doutrina do purgatório pode tirar a seriedade da possibilidade real do inferno, de se perder para sempre. Portanto, há urgência de se converter aqui e agora antes de ser tarde demais. Sem dúvida, neste sentido, a parábola de hoje quer, como muitos textos da Bíblia, incentivar uma conversão sincera e não um relaxamento na fé e na moral diante da urgência de mudança das pessoas e da sociedade.

O site da CNBB comenta: O tempo santo da quaresma é tempo de conversão. Quando falamos de conversão, precisamos pensar antes de tudo nas suas motivações, pois delas depende a sua perseverança. O Evangelho de hoje nos mostra um dos principais elementos que devemos levar em consideração no que diz respeito à motivação para a conversão que é a questão dos valores. Para o homem rico, os valores fundamentais eram a quantidade de bens materiais e os prazeres do mundo. De nada lhe adiantaram Moisés e os Profetas porque, como não havia comunhão de valores, estes se tornaram discursos vazios e a religião foi reduzida a ritualismos. Nesta quaresma, precisamos assumir como próprios de todos nós os valores do Evangelho para que de fato nos convertamos.

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