01 de outubro de 2017 – 26º Domingo Ano A

1ª Leitura: Ez 18,25-28

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje que destaca a importância do fazer (a vontade de Pai) e não do falar (Sim, Senhor).

O profeta Ezequiel fala ao grupo dos judeus exilados que estão na Babilônia. Por que foram exilados? A ideia de moral grupal dizia que uma geração acaba pagando pelos erros de gerações anteriores. Nesse modo de pensar os exilados estariam fatalmente pagando pelo acúmulo de erros dos antepassados.

Junto à responsabilidade coletiva, que une solidariamente os membros de uma comunidade entre si e com os antepassados, e sem anulá-la, anuncia-se a responsabilidade do indivíduo, senhor do seu destino por vontade de Deus. Destino de vida e de morte para os judeus (Dt 30,15) e para todos os homens (Eclo 15,11-17). Precisamente na nova situação, a responsabilidade individual se fará mais consciente e mais bem entendida: não vale jogar a culpa nos pais e avós, e menos ainda ironizar a justiça divina. Ao mesmo tempo, a responsabilidade individual é exigência para começar a ação e perseverar nela. O desterro removeu a confiança mecânica no templo e outras instituições, e o profeta remove a confiança preguiçosa em méritos adquiridos.

Ezequiel não nega que uma geração possa sofrer consequências de atos da geração anterior. Embora a culpa seja das gerações anteriores, aquela que sofre as consequências deverá tomar posição e mudar o rumo dos acontecimentos. No cap. 18, o profeta demonstra o seguinte:

– Cada pessoa e cada geração é responsável por sua conduta, tanto em nível individual como coletivo.

– Cada pessoa e geração tem a possibilidade de se converter, mudando completamente a orientação da própria vida.

O princípio deste cap. está nos vv. 23 e 32: Deus não tem prazer na morte do injusto, mas que ele se converta e viva.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1051) comenta o cap. 18: Este texto com 14,12-23 e 33,10-20, desenvolve a doutrina moral, já tratada em Dt 24,16, sobre a responsabilidade individual (cf. 2Rs 14,6; Jr 31,29-30). Doutrina essa que se contrapõe à responsabilidade coletiva, na qual o indivíduo, considerado como integrado à família e à tribo, é salvo ou castigado junto com os demais membros (cf. Rt 1,16-17). Segundo o redator, a não observância dos estatutos e normas (vv. 9.21), justifica em nome de Deus, a condenação à morte (vv. 23.32; cf. 33,11).

(Assim diz o Senhor:) “Vós andais dizendo: ‘A conduta do Senhor não é correta’. Ouvi, vós da casa de Israel: É a minha conduta que não é correta, ou antes é a vossa conduta que não é correta? (v. 25).

O texto começa com uma estranheza: “A conduta do Senhor não é correta”. Pensava-se dessa forma porque Deus não fazia o que se esperava, a saber: recompensar os “justos” e castigar os “injustos”. Esse modo diferente de Deus proceder irritava as pessoas tidas como santas naquela época.

Por meio do profeta, Deus toma a palavra e põe as intenções humanas às claras: os caminhos humanos é que são tortuosos, mas, apesar disso, Deus continua chamando, respeitando o livre-arbítrio e perdoando a cada um de seus filhos. O texto é um marco importante na história a respeito da responsabilidade individual.

A Bíblia do Peregrino (p. 2052) comenta: A objeção pode ser dos resignados ao fatalismo ou dos que temem e exigência de conversão. Objeção e resposta compõem uma espécie de pleito ou debate de Deus. No proceder injusto dos desterrados se inclui a sua maneira de julgar a justiça de Deus. Tudo desemboca numa exortação final, palavra de Deus que, ao convidar, torna possível o novo começo.

Quando um justo se desvia da justiça, pratica o mal e morre, é por causa do mal praticado que ele morre. Quando um ímpio se arrepende da maldade que praticou e observa o direito e a justiça, conserva a própria vida. Arrependendo-se de todos os seus pecados, com certeza viverá; não morrerá” (vv. 26-28).

A Bíblia do Peregrino (p. 2052) comenta: Da sucessão das gerações, passamos à sucessão de duas etapas na vida de dois indivíduos: o justo que se torna perverso, o perverso que se torna justo. Mas não há simetria na alternativa proposta, já que o justo tornado pecador pode converter-se de novo. A simetria fica quebrada pela vontade de Deus, segundo o princípio fundamental proposto no v. 23.

Em primeiro lugar, Deus se dirige aos tidos por justos. O que se pode dizer de uma pessoa realmente justa? Como pode ser qualificada uma pessoa convertida? Aquele que aparentemente é santo e irrepreensível e comete atos que fazem transparecer grande maldade no coração pode ser considerado justo ou convertido? Segundo o texto que foi proclamado, a pessoa que se qualifica assim, não é verdadeiramente justa, e Deus, que tudo vê, considera os atos de iniquidade dela, e não sua suposta justiça externa.

Outros são tidos por pecadores, hereges, infiéis, gentinha de má conduta. A estes Deus convida à conversão e, caso tenham abertura para acolher o perdão divino, é-lhes assegurado que não serão considerados os atos praticados numa vida desregrada, muitas vezes afetada por condicionamentos sociais, religiosos e psicológicos. Enfim, o texto bíblico exorta todos à conversão, e a todos está destinado o perdão de Deus, segundo o princípio fundamental proposto no v. 23: “Por acaso, eu sinto prazer com a morte do injusto? – oráculo do Senhor Javé – O que eu quero é que ele se converta dos seus maus caminhos e viva” (cf. v. 32). Ponto alto no capitulo, uma mensagem de esperança e exigência (cf. Sb 1,13; Jo 10,10; 1Tm 2,4-6; 2Pd 3,9)

A Bíblia de Jerusalém (p. 1627) comenta: Não somente o homem não é esmagado pelos crimes dos seus antepassados, como também pode subtrair-se ao peso do seu próprio passado. A noção de conversão (e também de perversão), não coletiva, mas estritamente pessoal, é valorizada. A atitude presente da alma é a única coisa a determinar o julgamento de Deus…

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 828) comenta: A pregação dos profetas dirigia-se a toda a comunidade de Israel, da qual julgava o comportamento e antevia o destino; de resto, era o reflexo de uma mentalidade geral muito atenta aos múltiplos vínculos de solidariedade que fazem de um conjunto de indivíduos uma comunidade marcada pelo mesmo futuro (cf. cap. 16; 20; 23). Contudo os sacerdotes, que regulamentavam a participação no culto, mostravam-se, desde há muito, atentos aos comportamentos individuais. É com Jr (31,30) que esse individualismo religioso penetra o ensinamento profético. Ezequiel desenvolve longamente o novo dogma da responsabilidade pessoal. De agora em diante, o indivíduo é dessolidarizado do destino da comunidade; ele é o único responsável pelo próprio destino, só ele. Essas novas afirmações, indícios de notáveis avanços, não eram aceitas sem levantar novas dificuldades que aparecem com o passar do tempo e das quais um livro como o de Jó é o eco patético.

 

2ª Leitura: Fl 2,1-11 (versão breve: vv. 1-5)

Na 2ª leitura, o apóstolo Paulo exorta a comunidade dos filipenses para viver na unidade, harmonia e humildade (a segunda parte, vv. 6-11, é um hino sobre a humildade do Cristo, lido também no Domingo de Ramos). As palavras de Paulo podiam ser mal entendidas como ordem para uniformidade sem admitir opiniões divergentes. Mas lendo ainda os vv. do cap. anterior (1,27-30), compreendemos melhor a leitura de hoje. Paulo está na prisão (1,7.13-14.17). A comunidade dos filipenses tem adversários (cf. At 16,16-40). Estes devem perceber que não têm chance de fazer intrigas e instigar os irmãos uns contra os outros. Eles devem se surpreender com a “unidade” (v. 2) dos cristãos que vivem “como um só coração e uma só alma” (At 2,32).

Este tipo de exortação, frequente em Paulo (cf. Rm 12,16; 15,5; 2Cor 13,11), não contradiz a alegria confiante que se destaca na carta inteira (apesar da prisão).

(Irmãos:) Se existe consolação na vida em Cristo, se existe alento no mútuo amor, se existe comunhão no Espírito, se existe ternura e compaixão, tornai então completa a minha alegria: aspirai à mesma coisa, unidos no mesmo amor; vivei em harmonia, procurando a unidade (vv. 1-2).

“Se existe consolação” lit.: “se há algum apelo insistente, …”; uma espécie de adjuração afetuosa pelo que há de mais sagrado. Por comparação com a saudação trinitária de 2Cor 13,13, pode-se encontrar no começo deste v. uma alusão ao Filho; é uma alusão velada, mas provável à Trindade: o “amor” é dado como característica do Pai e a “comunhão” associada ao Espírito (cf. 2Cor 13,13).

Paulo sabe por experiência quão facilmente surgem nas comunidades as rixas e os conflitos. Ele percebeu sinais disso em Filipos (1,27; 2,14; 4,2). Por isso Paulo insiste em interpelar a “todos” juntos (1,1.4.7.8.25; 2,17.26; 4,21) e exorta os seus correspondentes à “unidade” e à “harmonia” (concórdia).

A unidade só se realizará por uma vida de humildade (v. 3), abnegação e serviço de que o próprio Cristo deu o exemplo a ser imitado (v. 5; Jo 13,13s).

Nada façais por competição ou vanglória, mas, com humildade, cada um julgue que o outro é mais importante, e não cuide somente do que é seu, mas também do que é do outro (vv. 3-4).

Paulo convida a comunidade dos filipenses a evitar as divisões causadas pelo espírito de “competição”, pelo desejo de receber elogios (“vanglória”) e pela busca dos próprios interesses. A comunidade deve zelar pela harmonia interna e, para isso, é necessário que haja humildade, “cada um considerando os outros superiores a si” (v. 3), e que o empenho tenha sempre em vista o bem comum (v. 4).

Cuidar “do que é seu, … do outro”, lit. “o que pertence” a ele mesmo e aos outros: não somente seus “interesses”, mas os dons recebidos, os serviços prestados; poder-se-ia traduzir o “seu bem e o bem dos outros” (cf. 1Cor 10,24.33; 13,5).

Com esta série de motivações de vv. 1-4, Paulo chama para a “humildade” (v. 3) e o “amor” (vv. 1-2). Cada qual deve valorizar o outro, até mais do que a si mesmo (v. 3). Com esse convite a esvaziar-se de si mesmo, Paulo prepara o hino seguinte sobre o exemplo de Jesus Cristo (vv. 6-11; cf. Rm 15,1-6).

A Bíblia do Peregrino (p. 2819) comenta: Com um desenrolar avassalador de motivações, Paulo introduz sua exortação à caridade e à humildade. Ambos os temas são conhecidos de sobra; o acerto e a importância desses vv. estão na conexão: a humildade, resultado e condição de uma caridade autêntica e duradoura. Se o egoísmo é o contrário do amor (1Cor 10,24), o orgulho é seu inimigo capital. Deve-se colocar essas linhas entre a simples proposta do amor como resumo de todos os mandamentos (Mt 22,37-40 par.) e a grande explanação de 1Cor 13.

Tende entre vós o mesmo sentimento que existe em Cristo Jesus (v. 5).

Na tradução proposta recomenda-se imitar “o mesmo sentimento” de Cristo. Outros interpretam: cultivai entre vós os sentimentos próprios do cristão, de quem vive em Cristo. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2282) comenta esta frase gramaticalmente ambígua: lit. “tende essas disposições” (cf. 1,7 nota) “em vós” (e por conseguinte entre vós). O demonstrativo “essas” liga o que segue à exortação precedente. Lit. “quem também em Cristo Jesus”. Pode-se subtender seja “existiam”, seja “existem”, ou compreender: “as disposições que se têm em Jesus Cristo”. As disposições de Cristo, às quais Paulo se referem permanecem presentes e eficazes.

O v. 5 serve de introdução que liga com os vv. anteriores (vv. 1-4) e os vv. 6-11 do hino cristológico em seguida. A unidade invocada no vv. 1-4 só se realizará por uma vida de humildade, abnegação e serviço de que o próprio Cristo deu o exemplo (cf. Jo 13,13s).

Os vv. 6-11 constituem um hino cristológico que alguns creem anterior a Paulo (pelo estilo e conteúdo diferentes). Neste hino, Paulo apresenta em Cristo o modelo da humildade. Embora tivesse a “mesma condição de Deus”, Jesus se apresentou entre os homens como simples homem. E mais: abriu mão de qualquer privilégio, tornando-se apenas homem que obedece a Deus e serve aos homens. Não bastasse isso, Jesus serviu até o fim, perdendo a honra ao morrer na cruz, como se fosse criminoso. Por isso Deus o ressuscitou e o colocou no posto mais elevado que possa existir, como Senhor do universo e da história. Os cristãos são convidados a fazer o mesmo: abrir mão de todo e qualquer privilégio, até mesmo da boa fama, para pôr-se a serviço dos outros, até o fim.

Este hino apresenta o contraste entre os dois movimentos: o rebaixamento voluntário de Cristo (vv. 6-8) e a sua exaltação por Deus (vv. 9-11). É o esquema humilhação/exaltação que se pode detectar já em Pr 15,33; 18,12; Sl 113,7-8; cf. 1Sm 2; Sl 22; 118; Is 53. As diversas etapas do ministério de Cristo estão assim marcadas, cada uma numa estrofe: 1. a descida a partir da preexistência divina, o aniquilamento da encarnação, o aniquilamento (2,7) ulterior da morte, 2. a subida: a glorificação celestial, a adoração do universo, o título novo de “Senhor”. Trata-se do Cristo histórico, Deus e homem, na unidade da sua personalidade concreta, que Paulo jamais divide, se bem que distinga seus diversos estados de existência (cf. Cl 1,13s). A preexistência divina do Filho de Deus e o movimento de descida e subida neste hino mostra que existiam estes conceitos já bem antes da teologia de Jo (cf. Jo 1,1-18; 3,13.31s; 8,27; 12,32; 13,1 etc…).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1435) comenta:  A inserção deste hino aqui está coerente com o pensamento geral da carta. Cantam em síntese, toda a trajetória de Jesus Cristo. Apresenta uma resposta ao escândalo da cruz de Jesus, e consequentemente à humilhação e sofrimento dos cristãos (Cl 1,15-20; 1Tm 3,16; 2Tm 2,11-13). Essa teologia é conhecida como “esvaziamento”, termo que traduz o grego Kénosis, para expressar o movimento de Jesus que parte de Deus, desce até a morte na cruz, e volta para Deus como Senhor. É o modelo bíblico da humilhação e exaltação. Aplica-se também no batismo, enquanto mergulho no pecado e subida na graça. É o movimento da humilhação de Jesus a partir da sua condição divina ou “forma de Deus” (v. 6): ele se esvazia, tomando “a forma de servo” (v. 7), para assemelhar-se aos homens (v. 7), e obedecer até a morte (v. 8), chegando à mais baixa humilhação na cruz (v. 8). No movimento da exaltação, Jesus parte da cruz, é elevado (v. 9), é adorado (v. 10) e proclamado Senhor na glória de Deus (v. 11).  

Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz (vv. 6-8).

“Existindo em condição (lit. forma) divina” (v. 6a). Aqui e no v. 7, “forma” exprime mais do que uma aparência; é figura visível manifestando o ser profundo, ou, então, por alusão a Gn 1,27; 5,1, a imagem de Deus, i. é, o próprio ser de Deus em Cristo. A tradução “condição” permite repetir a palavra em v. 7 (“com aspecto humano”).

Cristo, sendo Deus, tinha por direito todas as prerrogativas divinas.  Considerando que a Carta aos Filipenses foi escrita pelo próprio Paulo entre 56 e 64, temos aqui é o testemunho mais antigo da preexistência de Jesus, 20 a 40 anos antes de Cl 1; Hb 1; Jo 1. A descida e a ascensão de Cristo neste hino antecipam a cristologia joanina (cf. Jo 1,14; 3,13-14; 12,32; 13,1…)

“Não fez do ser igual a Deus uma usurpação” (v. 6b; lit. “não considerou o estado de igualdade com Deus como uma presa” que não se larga, ou, antes, que se deve agarrar). Não se trata da igualdade de natureza (como expressa no Credo niceno-constantinopolitano), suposta pela “condição divina” e da qual Cristo não poderia despojar-se, mas de uma igualdade de tratamento, de dignidade manifesta e reconhecida, que Jesus poderia ter reivindicado mesmo na sua existência humana.

Duas explicações se confrontam. Para uns, a condição divina é o estado do Cristo antes de sua encarnação, e esta é a primeira forma do rebaixamento de Cristo. Neste curso, a “presa” (a igualdade com Deus) deve ser conservada e defendida, não conquistada. A palavra grega parece sugerir antes uma presa da qual alguém quer se apropriar. Neste caso, o reflexo do ser de Deus (imagem de Deus) se manifesta no comportamento terrestre de Cristo. Haveria aí uma alusão a Adão e Eva que procuraram fazer-se “igual a Deus” (cf. Gn 3,5.22): Cristo escolheu na terra a humildade e a obediência em vez do orgulho e da revolta. Este paralelo antitético entre Adão e Cristo, iniciado aqui, será novamente tratado por Paulo em perspectivas mais amplas (Rm 5,14; 1Cor 15,45-47). Como ilustração por contraste podemos comparar as pretensões divinas do rei do Tiro (Ez 28,6.9), do rei da Babilônia (Is 14,13-14) e o convite irônico a Jó (Jó 40,7-14).

“Mas esvaziou-se a si mesmo” (v.7a). Do verbo grego que significa “esvaziar” veio o termo kénosis (oposto do pleroma, plenitude divina, cf. Cl 1,19; 2,9; Ef 1,23; 4,10; Jo 1,16). Trata-se menos da encarnação do que do seu modo. Aquilo de que Cristo feito homem se despojou livremente não é a natureza divina, mas a glória que por direito ela lhe conferia, glória que ele possuía na sua preexistência (cf. Jo 17,5) e que deveria normalmente resplandecer sobre a sua humanidade (cf. a transfiguração, Mt 17,1-8p). Ele preferiu privar-se dela para recebê-la apenas do Pai (cf. Jo 8,50.54), como preço do seu sacrifício (vv. 9-11).

“Assumindo a condição de escravo” (v. 7b). A condição de escravo/servo é simplesmente a condição humana submetida a Deus. O termo “servo” opõe-se ao título de “senhor” (v. 11; cf. Gl 4,1; Cl 3,22s). Cristo feito homem adotou um caminho de submissão e de humilde obediência (v. 8). É provável que Paulo esteja pensando aí no “servo de Javé” de Is 52,13-53,12 (cf. Is 42,1-4).

“Tornando-se igual aos homens” (v. 7c), portanto, não apenas um verdadeiro homem, mas um homem como os outros, partilhando de todas as fraquezas da condição humana, exceto o pecado (cf. Hb 2,17).

“Humilhou-se a si mesmo” (v. 8). Se a encarnação é um primeiro aspecto da kénosis, aqui temos o segundo: Como o Servo de Is 53, Cristo escolheu o rebaixamento por obediência até a morte (cf. Is 53,8.12), “e morte na cruz”, reservada aos malfeitores (Hb 12,2). É o escândalo da cruz, um dos pontos fundamentais da pregação de Paulo (1Cor 1,18-25; 2,1-2; Gl 6,14).

Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai (vv. 9-11).

“Por isso, Deus o exaltou” (v. 9a; lit.: superexaltou). Foi exaltado (cf. Is 52,13; 53,10-12) pela ressurreição dentro os mortos e a ascensão ao céu, obras por excelência do poder de Deus (cf. 1Ts 1,10; Rm 1,4)

“Lhe deu o Nome” (v. 9b). Conferir um nome é não somente atribuir u título, mas uma dignidade autêntica (cf. Ef 1,21; Hb1,4). Aqui Paulo pensa no nome de “Senhor” (cf. v. 11; At 2,21.36; Hb 1,4) que no AT grego é a palavra empregada para exprimir o nome impronunciável de Deus (Yhwh, portuguesado: “Javé”; Ex 3,14s). Assim o Senhorio de Deus se revela em Jesus na sua extrema humilhação.

O Servo é exaltado acima do universo inteiro a fim de que o gesto de adoração e homenagem (devidas a Deus somente) doravante dirija-se também a Jesus “Senhor” em que Deus se revela e age (cf. Is 45,23; Fl 3,21; Ef 1,20-23; 3,14; 4,10; Cl 1,18-20; Rm 14,11; 1Cor 24-28; Mt 28,9.17; Lc 24,51-52). “Nos céus, na terra e abaixo da terra” é a tríplice divisão do mundo criado (cf. Ap 5,3.13). “Debaixo da terra” visa aos habitantes da morada dos mortos, de preferência aos demônios (no AT era opinião comum que os mortos não louvam a Deus, cf. Is 38,18-19; Sl 30,10; 88,11-13, aqui está mais em sintonia o Sl 22,30).

Reconhecer Jesus não apenas como ser humano, mas como Deus (preexistente, encarnado e glorificado; cf. Jo 20,28) apesar da sua morte escandalosa na cruz (cf. 1Cor 1,22-25 e o segredo do messias em Mc) era (e ainda é) o desafio da evangelização. Reconhecendo Jesus como divino e humano ao mesmo tempo, não nos deve levar ao orgulho e à arrogância, mas a mais humildade e amor.

 

Evangelho: Mt 21,28-32

No evangelho deste domingo já encontramos Jesus em Jerusalém discutindo com os chefes dos sacerdotes e anciãos. Jesus havia entrada na cidade santa, aclamado como messias, e expulsou os comerciantes e suas mercadorias da área do templo (21,1-17). Questionado sobre sua autoridade, Jesus responde com o batismo de João (vv. 23-27) e em seguida com três parábolas, com as quais se dirige a elite. A primeira é próprio de Mt, a dos dois filhos na vinha.

(Naquele tempo, Jesus disse aos sacerdotes e anciãos do povo:)

Aqui e em v. 31, nossa liturgia introduz novamente os grupos com os quais Jesus dialoga, “os (sumos) sacerdotes e anciãos do povo” (vv. 15.23). Eles fazem parte do sinédrio (27,57.59), o conselho e tribunal dos judeus em Jerusalém que condenará Jesus (26,57-68). Os sacerdotes são do partido dos saduceus (22,23p; At 23,6-8), enquanto os anciãos são de famílias tradicionais e latifundiários.

Os terceiro grupo do sinédrio são os escribas, ou seja mestre/doutores da Lei, na maior parte do partido dos fariseus (cf. v. 45; 22,15.34.45; 27,41.62; cf. cap. 23) que eram os adversários de Jesus desde a Galileia. Mas em Jerusalém, os adversários principais de Jesus são os “sumos sacerdotes e anciãos do povo” (21,15.23; 26,3.47; 27,1.3.12.20; 28,11s; cf. 21,45; 26,14.59; 27,41).

“Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: ‘Filho, vai trabalhar hoje na vinha!’ O filho respondeu: ‘Não quero’. Mas depois mudou de opinião e foi. O pai dirigiu-se ao outro filho e disse a mesma coisa. Este respondeu: ‘Sim, senhor, eu vou’. Mas não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai?” (Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo) responderam: “O primeiro” (vv. 28-31a).

Histórias com dois irmãos são comuns em todos os povos, geralmente para mostrar dois caminhos ou duas atitudes, diferenças, conflitos, união, reconciliação (cf. Caim e Abel em Gn 4; Esaú e Jacó em Gn 25-36; Maria e Marta em Lc 10; O filho pródigo e seu irmão mais velho em Lc 15; Pedro e André, Tiago e João em Mc 1, etc.). No dia 26/10 (no Candomblé, dia 27) comemora-se Cosme e Damião, dois irmãos gêmeos, médicos e mártires cristãos.

Alguns manuscritos inverteram a ordem das respostas nos vv. 29 e 30, provavelmente influenciados pela interpretação dos filhos ao povo judeu e pagãos. O filho que diz sim e não faz representaria o povo judeu e vem então primeiro. Mas isto é apenas uma interpretação possível.

Outra é sobre nossas próprias escolhas: Jesus conta a parábola dos dois filhos que mudaram de atitude. Deus nos fez livres. A salvação que ele nos oferece é puro dom. Cabe a nós responder “sim” ou “não” a esse convite (cf. 22,1-14), não apenas com palavras, mas com obras (7,21-23. O livre-arbítrio possibilita ao ser humano acolher em sua vida o bom ou o mau caminho (7,13s). Há sempre a possibilidade de mudar de rumo (“opinião”, cf. v. 29). Ambos os irmãos mudaram de rumo. Um fez a vontade do pai e o outro não.

Estar no rumo certo não é sinônimo de segurança, pois podemos ser facilmente levados para outro caminho senão nos mantivermos atentos ao chamado constante de Deus. Por isso a necessidade constante de conversão, porque não estamos prontos. E os que se acham “santos” são muito facilmente propensos ao erro, mais do que os que têm firme consciência das próprias limitações. Os “santos” acabam afogando-se na sua soberba e se fecham à graça divina. Ao contrário, os pecadores são mais abertos para acolher a graça, pois confiam apenas na misericórdia de Deus.

Então Jesus lhes disse: “Em verdade vos digo, que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele” (vv. 31b-32).

Na aplicação da parábola, o primeiro filho é figura dos pecadores públicos que primeiramente disseram “Não” à proposta do Pai, mas se convertem à justiça do Reino anunciada por João Batista e por Jesus (3,2; 4,17). “Veio até vós num caminho de justiça”, é expressão bíblica: João Batista praticava e pregava aquela conformidade com a vontade de Deus, que torna o ser humano “justo”.

O outro filho é figura dos chefes do povo, sacerdotes, mestres da Lei, anciãos, que se consideram justos e não se convertem. No texto original grego, a mesma palavra é empregada para o arrependimento do primeiro filho em v. 29 (“mudou de opinião”), a negação dos sacerdotes e anciãos em v. 32 (“não vos arrependestes”) e o remorso de Judas em 27,3.

Os chefes disseram “Sim, Senhor” a Deus, mas não praticam sua vontade (cf. Mt 7,21). Por isso, “os publicanos e prostitutas vos precedem no Reino de Deus.” Uma provocação de Jesus aos dirigentes que se acham “justos”, pessoas de bem e irrepreensíveis, enquanto desprezam os pequenos e maltratam os pecadores. Jesus se denuncia aqui a elite de Jerusalém como hipócrita, por se apresentar como realizadora da vontade de Deus, quando de fato não é. Os grupos marginalizados que acolheram a pregação de João e de Jesus são os efetivos herdeiros do Reino de Deus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2367) comenta: A parábola dos dois filhos é reduzida a um esquema, que é o dizer e o agir em resposta à vontade de Deus. Os dois filhos podem representar diversos personagens: o povo de Israel histórico que disse sim (Ex 19,8) e não cumpriu (p. ex. Jr 2,20); a geração do momento, com respeito à pregação do Batista (cf. 3,7) e de Jesus. O outro filho representa qualquer um que se arrependa: as duas categorias que recebiam então o qualificativo de “pecadores” (9,10-11; 11,19) e que aceitaram o convite do Batista para o arrependimento (3,2.6.8); também o povo dos pagãos que se arrepende e crê (em Jesus). O caminho da honradez: Pr 8,20; 12,28.

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