02 de dezembro de 2016 – Sexta-feira, Advento 1ª semana

Leitura: Is 29,17-24

Para escrever este oráculo tardio de restauração, um discípulo de Is utilizou o conteúdo dos vv. 17-21 e passagens anteriores do seu mestre. A ideia de que o Senhor vai efetivamente inverter a seu modo os papeis que os sábios quiseram arrogar-se corresponde a um procedimento bem característico de Is (cf. vv. 13s; 28,9-13). Javé Deus vai libertar os humildes e fazer reinar a justiça.

As maldições precedentes (cf. 28,1-29,14)serão abolidas. Nossa leitura inicia com uma transformação da natureza, que restaura a destruição (v. 17; cf. 10,33s); depois as mutilações físicas, serão abolidas também na sua função simbólica (v. 18; cf. 6,10;28,12.14,23; 29,10); seguem-se as opressões da injustiça, substituídas pelo reino da justiça (v. 19; cf. 1,21-26; 11,4; 28,6). Finalmente, o homem depara alegremente com Deus (v. 22s; cf. 8,13). Acabarão os malfeitores corruptos e cínicos zombadores (v. 20; 28,14-22; 29,5).

A síntese de natureza transfigurada, sentidos corporais, sentido ético e sentido religioso, é semelhante à de 11,1-9 (cf. leitura de terça-feira passada).

Dentro de pouco tempo,não se transformará o Líbano em jardim?E não poderá o jardim tornar-se floresta?(v. 17).

O tempo de Deus da transformação escatológica é iminente em seu mistério (cf. 2Pd 3,8-10 cita Sl 90,4). O ser humano não pode precipitar seus prazos (5,19), mas deve esperar; tudo tem seu tempo natural (cf. Ecl 3,1-8; Mc 4,26-29; 13,28s)

Pode ser uma alusão a uma devastação do Líbano que não teria atingido o Monte Carmelo (a palavra hebraica carmelo significa “jardim”, cf. 32,15)? Esta foi provavelmente ocaso da devastação de 677/676, quando foi esmagada a região da cidade revoltada de Sidônia, pelo rei assírio, Asaradon (680-669), no tempo do rei Manassés de Judá (687-642), depois da morte de Isaías.

Naquele dia, os surdos ouvirão as palavras do livroe os olhos dos cegos verão,no meio das trevas e das sombras (v. 18).

Trata-seantes da cura de cegueira e surdez espirituais em Jerusalém (cf. vv. 10-11; 6,10; 35,5; 42,16-19; 43,8) que de curas miraculosas, se bem que estas possam ser o sinal daquelas.“As palavras do livro” podem referir-se ao livro de Isaías (cf. 8,16; 34,16).

Os humildes aumentarão sua alegria no Senhor,e os mais pobres dos homens se rejubilarão no Santo de Israel (v. 19).

Deus atende os pobres e humildes, serão felizes e bem-aventurados (cf. 41,17; Mt 5,3s; Lc 1,39-56).“A alegria do Senhor é vossa força” (Ne 8,10).

O “Santo de Israel” é um título que Is dá muitas vezes a Deus (cf. 1,4; 5,19.24; 10,20; 12,6; 17,7; 29,19; 30,11.15; 31,1; 37,23; cf. 6,3; Ap 4,8). Fora de Is, só se encontra em 2Rs 19,22; Jr 50,29; Sl 71,22; 78,41; 89,19. A teologia da santidade de Deus (cf. 6,3) que acarreta e exige a do povo reaparecerá em Ez e em certas tradições sacerdotais conservadas em Jerusalém (cf. a lei da santidade em Lv 17-26).

Fracassou o prepotente,desapareceu o trapaceiro,e sucumbiram todos os malfeitores precoces,os que faziam os outros pecar por palavras,e armavam ciladas ao juiz à porta da cidade e atacavam o justo com palavras falsas (vv. 20-21).

Aqui, os malfeitores estão na área jurídica, os que praticam calúnias, mas impedem a prática do direito e condenam inocentes.Quem faz a justiça aos pobres e castiga os ímpios em 11,4 é o chefe davídico (messias).

Os tribunais da época estavam abertos ao público e aconteciam nas portas das cidades. A mesma palavra traduzida aqui por “juiz” pode designar também “aquele que (se) defende”; de qualquer forma, trata-se de falsos testemunhos contra inocentes (cf. Am 5,12.15 e o caso de Nabot em 1Rs 21). Em vez de “atacavam o justo com palavras falsas”, a Tradução Ecumênica da Bíblia tem: “relegam o inocente ao abismo” e comenta: É uma das palavras que descrevem o estado da terra antes da criação em Gn 1,2.

Isto diz o Senhor à casa de Jacó, ele que libertou Abraão:“Agora, Jacó não mais terá que envergonhar-se nem seu rosto terá que enrubescer. Quando contemplarem as obras de minhas mãos,hão de honrar meu nome no meio do povo,honrarão o Santo de Jacó,e temerão o Deus de Israel;os homens de espírito inconstante conseguirão sabedoria e os maldizentes concordarão em aprender” (vv. 22-24).

Os olhos iluminados contemplam e reconhecem na história a santidade de Deus, a sua transcendência imprevisível e acertada que resgata seu povo, “libertou Abraão”. Recordar os nomes dos patriarcas (Abraão, Jacó=Israel), dá profundidade histórica, falta Isaac. Quando Deus “libertou Abraão”? Da idolatria em Ur dos Caldeus (Babilônia, cf. 11,31)? Do aperto do farão no Egito (Gn 12,10-20)? Da falta de perspectiva por não ter filho (cf. 15,2-5)? Num comentário da tradição judaica (Gênesis Rabbá 38), Abraão é perseguido pelos seus e libertado pelos caldeus.

Como só aqui se menciona Abraão na primeira parte do livro (Is 1-39; depois reaparece em 41,8; 51,2; 63,16), supõe-se que os vv. 22-24 sejam um acréscimo. Não é do estilo de Is falar da “casa de Jacó” (cf. 2,5, também posterior, pós-exílio? cf. comentário de segunda-feira) nem reportar-se à história do passado, ele se refere mais ao futuro, ao“advento” (aquele que vem).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 923s) resume nossa leitura: No futuro, Deus restaura a natureza destruída e as deficiências físicas (35,1-6; 42,18-19; 44,23), e fará desaparecer os tiranos, restabelecendo a justiça e avida para os justos e os pobres (35,15-20). O povo de Israel “resgatado” por Javé (35,10; 51,11; Jr 31,11; Zc 10,8), não será humilhado e caminhará junto com seu Deus, o “Santo de Israel”.

Evangelho:Mt 9,27-31

No tempo de Advento até o dia 17, os evangelhos são escolhidos em vista da leitura (Isaías). Por isso ouvimos hoje uma cura de dois cegos (cf. Is 29,18: “os cegos verão”, na leitura de hoje).

O texto de Mt é uma duplicação em sentido duplo, quer dizer: Mtcopia de Mc (o evangelista mais velho) a cura de um cego mendigo (seu nome “Bartimeu” aparece só em Mc)na cidade de Jericó (Mc 10,46-52; nós ouvimos a versão de Lc 18,35-43 duas semanas atrás na segunda-feira da 33ª semana do Tempo Comum). Também em Mt 20,29-34, a cura em Jericó representa a última cura de Jesus. Mt, porém, duplicou o número de pessoas: em vez de um (Bartimeu) estão dois cegos em Jericó. E Mt não só duplicou o número de cegos em Jericó, mas duplicou a própria cura. Conta duas vezes a cura de dois cegos: em 20,29-34 em Jericó (última etapa antes de chegar a Jerusalém) e aqui em 9,27-31 ainda na Galileia. Por que Mt fez isso?

Para os autores antigos, isso fazia parte da liberdade artística de expressão (cf. Mt 8,28p; Lc 24,4p). Também, pelo uso de duas fontes (o evangelho de Mc e a fonte de palavras Q), surgem textos duplos em Mt e Lc (cf. Mt 9,32s e 12,22-23; Lc 9,1-6 e 10,1-12;Lc 17,20-37 e 21,5-36, etc.). Para Mt e seus leitores judeu-cristãos, o AT (Antigo Testamento) é importante enalei de Moises se diz: “Uma única testemunha não é suficiente” (Dt 19,15); duas pessoas são o mínimo necessário para um testemunho válido (cf. Dt 17,2-7; Lc 7,18; Mt 18,16; 26,60; 2Cor 13,1; 1Tm 5,19; Hb 10,28; Jo 8,16s). Para Mt também é importante que a palavra dos profetas se cumpriu em Jesus. Assim, Mt prefere relatar uma cura de cegos já antes de mencioná-la na resposta de Jesus a João Batista em que cita o profeta Isaías (Mt 11,5; cf. Is 26,19; 29,18s; 35,5s; 61,1).

No evangelho de hoje, Mt descreve esta cura de maneira típica (sem nomes, cf. 9,18p; e sem lugar especificado) aludindo e resumindo as curas anteriores (caps. 8-9).

Partindo Jesus, dois cegos o seguiram, gritando:“Tem piedade de nós, filho de Davi!”Quando Jesus entrou em casa,os cegos se aproximaram dele (vv. 27-28a).

O relato da cura dos cegos é breve, mas chama atenção o encontro mais complicado: os cegos “o seguiram”, como? Pelo ouvido ou com ajuda de outras pessoas (não se fala da multidão como em Jericó, 20,29s). Porque Jesus não os cura no caminho como em Jericó, mas “entrou em casa”? Se a casa é de Jesus, deve ser a de Cafarnaum (4,13; 8,5; 9,1; mas cf. 8,20). A mudança de local (rua, casa) lembra a vocação e a refeição em Mt 9,9-13p (Levi em Mc e Lc). Aqui temos um relato típico com palavras chaves, ex. “seguir, casa”. A casa (família, cf. 12,46-50) de Jesus e o grito “Tem piedade de nós” podem lembrar à comunidade o próprio culto na Igreja(que aconteceu nas casas nos primeiros séculos), onde se invoca aquele que “quer a misericórdia” (cf. 9,13; 12,7; Os 6,6).

Pela fé, os cegos já estavam vendo mais além: “Filho de Davi” é título messiânico (Lc 1,32; Jo 7,42; At 2,30; 12,22s.30-33; Rm 1,3). Mt introduz este título na genealogia: “filho (descendente) de Davi” (Mt 1,1; cf. 2Sm 7). Depois são os doentes e deficientes que aclamam Jesus como tal (9,27; 12,23; 15,22), a mesma aclamação dos cegos em Jericó (20,30s) prepara a aclamação do povo na entrada de Jesus em Jerusalém (21, 9.15p). Lá Jesus demonstra com a citação de Sl 110,1 que o messias é ainda mais do que um filho (descendente) de Davi, é “Senhor” (do universo; cf. 22,41-46p; cf. Fl 2,5-11; Rm 10,9; At 2,36).

Então Jesus perguntou-lhes:“Vós acreditais que eu posso fazer isso?”Eles responderam: “Sim, Senhor.”Então Jesus tocou nos olhos deles, dizendo:“Faça-se conforme a vossa fé.”E os olhos deles se abriram(vv. 28b-30a).

Como em curas anteriores (8,8-10; 9,20-22), Mt quer deixar claro que a fé precede à cura e que precisa de uma fé perseverante. Por isso Jesus não cura logo, mas pergunta sobre a fé, e eles respondem “Sim, Senhor”. O santo nome de Deus (Yhwh, “Javé”, cf. Ex 3,14) no AT foi traduzido por “Kýrios”(grego: Senhor). Chamar Jesus de “Senhor” é uma profissão de fé na sua soberania universal (cf. Fl 2,5-11; Rm 10,9; At 2,36). Os doentes de Israel já declaram Jesus como “Senhor” (9,28; 15,22; 20,31-33; cf. 21,9), mas os líderes fariseus e doutores da lei não, eles ficam como que cegos (cf. 12,23s; 23,16-16-26; cf. Jo 9,41).

Na liturgia batismal, há um diálogo semelhante com perguntas e respostas sobre a fé. O batismo é chamado também de “iluminação” (cf. Hb 6,4; 10,32; Ef 5,14; daí a vela), porque Jesus “toca” no coração e a fé “abre os olhos” da mente dando uma nova visão da vida para Deus (cf. Jo 8,12 e a cura do cego de nascença em Jo 9, lavando-se na “piscina do Enviado”). A fé dos dois cegos torna-se exemplar para a comunidade que se pode identificar com eles e contar com o poder e a misericórdia do Senhor.

Jesus os advertiu severamente:“Tomai cuidado para que ninguém fique sabendo.”Mas eles saíram,e espalharam sua fama por toda aquela região (vv. 30b-31).

Esta proibição de divulgar o milagre fazia parte do segredo do messias, enfatizado por Mc (Mc 1,34.45s; 5,43; 7,36s; 8,30; 9,9). Jesus não queria ser confundido com um messias guerreiro do tipo de Davi (Mc escreveu durante a guerra judaica de 66 a 70 d.C.). Quando Mt escreveu em 80 d.C., a guerra já havia terminado (com a derrota dos judeus). Mas este segredo serve para Mt salientar o impacto da atividade de Jesus. Muitas vezes tal imposição de silêncio não é respeitada, como se a irradiação do poder do Filho de Deus não pudesse ser contida. No contexto de Mt, estes milagres (Mt 8-9),narrados após o sermão da montanha (Mt 5-7), provam a eficácia da palavra de Jesus e contribuem para “sua fama por toda aquela região”; assim preparam a missão dos discípulos (Mt 10) e a resposta de Jesus a João Batista (11,5).

O site da CNBB resume: Jesus é reconhecido pelos cegos como o Filho de Davi, como aquele que realiza o que foi prometido por Deus a Davi no tempo em que ele era o Rei de Israel, de lhe dar um sucessor no trono. Mas Deus vai muito além do que foi prometido a Davi e instala, por meio de Jesus, o seu próprio Reino no meio dos homens, o Reino que é infinitamente superior ao Reino de Israel do Antigo Testamento e totalmente diferente dele. Mas só percebe a presença deste Reino quem tem fé, quem não é cego, mas tem os olhos abertos para as realidades espirituais.

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