02 de agosto de 2017, Quarta-feira- 17ª Semana

Leitura: Ex 34,29-35

Os vv. 29-35 da nossa leitura são de origem incerta e narram uma tradição sobre o “resplendor” do rosto de Moises, expresso pelo verbo hebraico qaram, derivado de qeren, “chifre”, donde vem a tradução literal da Vulgata de S. Jerônimo “o seu rosto tinha chifres“. Isto fez que Miguelângelo e outros artistas apresentassem Moisés com um rosto cornudo em vez de irradiante.

Como conclusão da renovação da aliança (depois da ruptura como o bezerro do ouro), Moisés recebeu a segunda edição do decálogo (dez mandamentos). Mas antes de narrar a construção do santuário móvel (caps. 35-40; execução das instruções recebidas nos caps. 25-31)….

Para os cristãos, Jesus tem este papel de mediador de uma nova aliança (cf. as releituras judaico-cristãs desta narrativa em Mt 17,1-8p e 2Cor 3,7-4,6)

Quando Moisés desceu da montanha do Sinai, trazendo nas mãos as duas tábuas da aliança, não sabia que a pele do seu rosto resplandecia por ter falado com o Senhor (v. 29).

Moisés acabou de receber a segunda edição do decálogo (v. 28; a primeira ele quebrou, 32,19) e desce da montanha onde só ele estava (v. 4: nem Josué estava com ele). Como tem “falado com o Senhor”, ele traz um reflexo da glória divina, “a pele do seu rosto resplandecia” (tradução de S. Jerônimo: “o seu rosto tinha chifres“).

Encontram-se no Pentateuco diversas manifestações da presença divina: a “coluna de fogo” (13,21s; 14,19; cf. Gn 15,17), a “nuvem” escura (14,19s) ou luminosa (24,15-18); finalmente, associada com a nuvem, a “glória” de Javé (16,10; 24,16), fogo devorador que se move como o próprio Javé (tradição sacerdotal em 19,16), distinguido da nuvem que o acompanha e o envolve. Estas noções ou imagens dos quais a mística fez grande uso (na liturgia com incenso e círio pascal) são tomadas das grandes teofanias nas tempestades (19,16), mas assumem um sentido superior.

Moisés pediu a ver a glória do Senhor (33,18). Na montanha, Javé desceu na nuvem e permaneceu junto de Moisés que não podia vera a face de Deus, mas suas costas enquanto passava (33,33; 34,5). É esta luz brilhante cujo reflexo irradiará no rosto de Moisés (34,29; erroneamente traduzido e imaginado por “chifres” na escultura de Moisés por Michelangelo e outros artistas). Exprime a majestade inacessível e temível de Deus. A “glória” pode aparecer na montanha fora da tempestade (33,22) e encher em baixo a Tenda da Reunião (40,34-35), como também tomar posse do templo de Salomão (1Rs 8,10-11). Ezequiel vê-la deixar o templo de Jerusalém, na véspera da destruição (Ez 9,3; 10,4.18-19; 11,22-23) e voltar ao novo santuário (Ez 43), mas para ele, esta glória tem uma aparência humana luminosa (Ez 1,26-28). Em outros textos, como nos Salmos (Sl 29), a gloria de Javé exprime a majestade de Deus ou a honra que se lhe deve, ou ainda o poder miraculoso (Ex 15,7); cf. a glória de Jesus (Jo 2,11; 11,40), a luz e a nuvem na transfiguração, ressurreição e ascensão (Mc 9,1-8 p; At 1,9) e o significado escatológico em Mc 13,26p; At 7,55 (cf. Dn 7,13s); Fl 2,11; Ap 4,9; 5,11).

As “tábuas da aliança”, escritas ora por Moisés (34,27-28) ora por Deus (24,12; 31,18; 32,16; 34,1; Dt 10,4) são o decálogo (dez palavras/mandamentos). Na redação sacerdotal, este decálogo como documento da Aliança, ou seja, o “testemunho”, será depositado na Arca da Aliança (25,10-22; 40,20; cf. Dt 10,1-5; Ap 11,19). Esta era um baú móvel com imagens de anjos (querubins) na tampa e representa o santíssimo do santuário/templo, ou seja, a presença de Deus na casa/tenda dele. Ela é carregada por sacerdotes na travessia do Rio Jordão e na queda do muro de Jericó (Js 3,3-17; 4,6—20), cai nas mãos dos inimigos filisteus (1Sm 4-6), mas é trazida a capital de Jerusalém por Davi (2Sm 6) e colocada no templo de Salomão (1Rs 8,3-9). Ela desaparece por ocasião da destruição do primeiro templo pelo exercito babilônico (Jr 3,16), e reaparece só em Ap 11,19. Na Igreja copta da Etiópia existe o mito que ela esteja escondida no próprio país.

Aarão e os filhos de Israel, vendo o rosto de Moisés resplandecente, tiveram medo de se aproximar (v. 30).

Moises se expôs a luminosidade esplendente, a glória do Senhor, e a luz o transfigurou sem que ele o notasse. Seu rosto tornou-se luminoso, com luz refletida da glória do Senhor. Aarão e os demais israelitas percebem a luz transcendente e tem “medo de se aproximar” (cf. 3,5; 19,10-13.23s.18-21 etc.)

Então Moisés os chamou, e tanto Aarão como os chefes da comunidade foram para junto dele. E, depois que lhes falou, todos os filhos de Israel também se aproximaram dele, e Moisés transmitiu-lhes todas as ordens que tinha recebido do Senhor no monte Sinai (vv. 31-32).

Tudo o que Moisés diz é ressonância de Deus, do mesmo modo que sua luminosidade é reflexo de Deus. A redação sacerdotal apresenta Moisés como único intérprete de Javé para exaltar o cargo do sumo sacerdote pós-exílico (cf. 25,10-22; Lv 4,3).

Quando Moisés acabou de lhes falar, cobriu o rosto com um véu. Todas as vezes que Moisés se apresentava ao Senhor, para falar com ele, retirava o véu, até a hora de sair; depois saía e dizia aos filhos de Israel tudo o que lhe tinha sido ordenado (vv. 33-34).

Os vv. 29.33 usam essa tradição para descreverem Moises em sua descida da montanha; os vv. 34-35 a relacionam com a tenda da reunião, na tradição de 33,7-11. Esta seção encerra a última descida do Sinai e todas as outras. O fenômeno se repetirá, não já na montanha, mas na tenda do encontro. O esplendor é como um halo que emoldura o oráculo e o mediador.

E eles viam a pele do rosto de Moisés resplandecer; mas ele voltava a cobrir o rosto com o véu, até o momento em que entrava para falar com o Senhor (v. 35).

O hebraico acrescenta aqui “a pele” do rosto de Moises”; omitido pelo grego. O Sl 34,6 convida toda a comunidade a contemplar Javé e ficar irradiante.

Em 2Cor 3,7-18; 4,1-40, o apóstolo Paulo aplica esta tradição de Moisés comparando a duração das duas alianças (cf. Jr 31,31-34) e a intensidade do seu resplendor (“glória”): Moisés colocou um véu que só tirava quando falava com o Senhor, porque “os israelitas não podiam fitar o rosto de Moisés por causa do seu fulgor” (2Cor 3,7) e para que os filhos de Israel não percebessem a índole transitória desse fulgor.

Paulo afirma ainda que o mesmo véu cobre agora o rosto dos judeus que absolutizam a aliança antiga e não compreendem ser Cristo a chave para as Escrituras e a aliança nova e definitiva, que conduz à vida como força de libertação e fonte de liberdade: “Até hoje, todas as vezes que lêem os escritos de Moisés, um véu cobre o coração deles” (2Cor 3,15; pode aludir ao véu que Moisés usava ou também ao véu de oração adotado, na sinagoga, pelos judeus no século I, cf. 1Rs 19,13; At 15,21; 28,27).

“Todos nós, porém, que, com o rosto descoberto, contemplamos e refletimos a glória do Senhor, e assim somos transformados à sua imagem, pelo seu Espírito, com a glória cada vez maior” (2Cor 3,18). A “glória do Senhor” é a de Jesus Cristo, pois a “glória de Deus resplandece na face de Cristo” (2Cor 4,6). À diferença de Moises, nós cristãos temos o semblante descoberto e refletimos a glória divina de maneira permanente e não de modo transitório (cf. 2Cor 3,13). O privilégio de Moises é hoje concedido a todos. Do “esplendor” (glória) passa a “imagem” (unidos em 1Cor 11,7), aludindo a Gn 1,27. A luz do Ressuscitado se reflete na vida dos fiéis e a nos transforma na imagem dele de forma cada vez mais profunda (cf. numa espécie de transfiguração espiritual, cf. 17,2; Rm 8,29).

Evangelho: Mt 13,44-46

Ao longo do seu Ev, Mt apresenta cinco discursos de Jesus, em alusão aos cinco livros da Lei de Moisés (chamada Torá, “Lei”, em hebraico; ou Penta-Teuco, “cinco livros” em grego). No terceiro discurso, Mt usa e amplia o discurso de parábolas já existente em Mc 4. Agora finaliza este discurso com pequenas parábolas que só se encontram no Evangelho dele: as do tesouro e da pérola (evangelho de hoje) e a da rede (e uma conclusão, talvez um auto-retrato do próprio evangelista, cf. evangelho de amanhã).

O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola (vv. 44-46).

As duas parábolas formam um par (cf. a semente da mostarda e a fermento em vv. 31-33) com a mesma conclusão: Não importa, se um “encontra” por acaso e outro “procura” há tempo, quem acha o Reino dos Céus deve deixar tudo para entrar nele (cf. 4,22; 8,19-21; 9,9; 19,21.27-30; Lc 9,57-62).

Consideradas fora do seu contexto, essas duas parábolas dão ensejo a vários sentidos possíveis: valor do tesouro e da pérola, alegria da descoberta, obrigação de vender tudo. O tema “escondido/revelado” é primordial e traduz-se pela “alegria”. Enquadradas entre duas ameaças terríveis da “fornalha ardente” (13,42.50) que contrastam violentamente com a alegria, estas parábolas passam a ser uma exortação a vender tudo para possuir esta alegria.

O camponês teria tido outras opções: poderia ter retirado o tesouro em segredo, poderia ter obedecido à lei e publicar seu achado para ver se encontrar-se um dono legítimo, ou poderia fazer um empréstimo no banco. Mas ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo”.

O comprador de perolas é um empresário que importa ou exporta. Pérolas eram importadas da Índia e desde Alexandre Magno estavam na moda tornando-se símbolos de preciosidade (cf. 7,6). Não interessam aqui as circunstâncias da compra, exceto que ele “vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola”.

Para entrar no Reino de Deus é necessária uma decisão total. Apegar-se a seguranças, mesmo religiosas, que são falsas ou puras imitações, em troca da justiça do Reino de Deus, é preferir bijuterias a uma pedra preciosa de “grande valor” (cf. 6,33: “Procurai, em primeiro lugar, o reino de Deus”).

Já a sabedoria do Antigo Testamento foi comparada com tesouros, pérolas, pedras e metais preciosos (Pr 1,9; 4,7-9; Sb 7,9;…). Enquanto uns aplicaram a sabedoria à Lei (Eclo 24), Mt aplica esta preciosidade ao (evangelho do) reino dos céus; o discípulo “cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra” este valor máximo que é o reino; cf. a vocação fracassada do jovem rico em 19,16-22p: “Vai, vende seus bens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu”.

Chama atenção o fato de que Jesus não precisa explicar estas duas parábolas, como outras antes e depois. Os discípulos já devem entender seu significado: é preciso apostar tudo no reino e não se apegar nas muitas coisas deste mundo (13,22: “o cuidado do mundo e a sedução da riqueza sufocam a palavra”; cf. 6,19: “Não juntais para vós tesouros na terra,… mas ajuntai para vós tesouros no céu…”).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra a parábola na qual Jesus compara o Reino de Deus com um tesouro e com uma pérola. A comparação com o tesouro nos mostra o valor que o Reino de Deus deve ter nas nossas vidas, um valor que não pode ser superado por nenhum outro valor deste mundo. A pérola nos mostra a preciosidade inigualável que é o Reino de Deus para todas as pessoas. E tanto o valor como a preciosidade do Reino de Deus significam que todas as outras coisas perdem sua importância diante dele e só têm sentido enquanto contribuem para que o homem possa chegar até Deus.

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