02 de setembro de 2016 – Sexta-feira 22ª semana

Leitura: 1Cor 4,1-5

As divisões na comunidade de Corinto podem ter origem na crítica de alguns cristãos a respeito do próprio Paulo. Na leitura de hoje, Paulo coloca seu ponto de vista.

Que todo o mundo nos considere como servidores de Cristo e administradores dos mistérios de Deus. A este respeito, o que se exige dos administradores é que sejam fiéis (vv. 1-2).

Os títulos são contrastantes: os apóstolos, “servidores de Cristo” (única vez em que Paulo usa o termo grego hypêrétai, que designa, nos evangelhos, servos de ínfima categoria) são, no entanto, os “administradores (gerentes) dos mistérios de Deus”. No mundo helenístico, às vezes, confiavam-se grandes responsabilidades também a servos de origem humilde. Os “mistérios de Deus” devem ser equilibrados às “profundezas de Deus” (2,10) e aos “dons da graça” (2,12) revelados a Paulo para que os dê a conhecer. “Mistério de Deus” não é segredo oculto, mas o plano de salvação, ou seja, aquele projeto proposto por Deus e realizado por Jesus Cristo, agora divulgado por Paulo aos pagãos (2,1-16; Rm 16,25; Ef 3,5; Cl 2,2-3). O termo ocorre com freqüência nos textos dos essênios de Qumran.

O critério é a fidelidade no exercício do encargo, cf. de Moisés, criticado por Miriam (Maria) e Aarão e resposta de Deus em Nm 12,7. Nos evangelhos sinóticos, as parábolas dos servos (in)fiéis (Mc 13,34; Mt 24,45-51; 25,14-30; Lc 12,37.41-48; 19,12-26) se referem todas à parusia (volta de Cristo no fim dos tempos).

Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por algum tribunal humano. Nem eu me julgo a mim mesmo (v. 3).

Talvez insinue que a comunidade ou uma facção dela tentava submeter Paulo a julgamento. (sobre julgar por aparências ou antes do tempo, cf. Eclo 11,1-9).

“Tribunal”, lit. “dia”. Paulo usa de ironia falando de um tribunal (dia) humano que se julgaria autorizado a pronunciar um julgamento que é da competência única do “Dia do Senhor” (1,8), isto é, do juízo final na parusia.

É verdade que a minha consciência não me acusa de nada. Mas não é por isso que eu posso ser considerado justo (v. 4).

A respeito da “consciência”, a Bíblia de Jerusalém (p. 2151) comenta: A palavra “syneidesis” (cf. 1Sm 25,31; Sb 12,10) exprime, nas cartas paulinas, valores propriamente cristãos. Quaisquer que sejam as normas exteriores, o comportamento do homem depende apenas do julgamento dele (At 23,1; 24,16; Rm 2,14-15; 9,1; 13,5; 2Cor 1,12), mas esse julgamento está sujeito ao julgamento de Deus (cf. aqui; 8,7-12; 10,25-29; 2Cor 4,2 e 1Pd 2,19). A consciência é boa e pura se inspirada pela fé e pelo amor (1Tm 1,5.19, etc.; 1Pd 3,16.21) e purificada pelo sangue de Cristo (Hb 9,14; 10,22). 

Quem me julga é o Senhor. Portanto, não queirais julgar antes do tempo. Aguardai que o Senhor venha. Ele iluminará o que estiver escondido nas trevas e manifestará os projetos dos corações. Então, cada um receberá de Deus o louvor que tiver merecido (v. 5).

Estando a serviço imediato de Deus, Paulo e seus colaboradores não estão submetidos ao julgamento meramente humano. Embora o julgamento da consciência seja favorável, Paulo se submete ao julgamento supremo e final de Deus (Sl 7,10; 17,3; Pr 15,11; 16,2; 21,2). Cf. “Não julgueis… “, cf. Mt 7,1-5; cf. Lc 6,37-42; Rm 2,1s; 14,13; Jo 8,7.

Refere-se à parusia: “Aguardai que o Senhor venha. Ele iluminará o que estiver escondido nas trevas e manifestará os projetos dos corações”, cf. 1,7s; 2Ts 1,7-10; cf. Rm 2,16: “no dia em que Deus julgará por Cristo Jesus, as ações ocultas dos homens”;  cf. o “tribunal de Cristo” em 2Cor 5,10s (cf. Rm 14,10; Mt 16,27; 25,31-46; etc.).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1390s) comenta: Do apóstolo se exige fidelidade à vocação do serviço ao Senhor. A prestação de contas só se deve a Deus. Por isso, o julgamento cabe tão somente a Deus (Mt 7,1). A comunidade de Corinto, movida por interesses diversos, emitia opiniões, e talvez quisesse constituir um tribunal para julgar os apóstolos. Porém o tribunal da consciência é maior, mas não supera o tribunal divino, que é absoluto e reconhece as intenções da cada pessoa.

 

Evangelho: Lc 5,33-39

A liturgia semanal saltou uns relatos em Lc que já ouvimos nos outros evangelhos: as curas de um leproso (vv. 12-15; Mc 1,40-45p) e de um paralítico (vv. 17-26; Mc 2,1-12p), a vocação do coletor de impostos e o banquete na sua casa (vv. 27-32; Mc 2,13-17). Depois deste banquete com os pecadores, Lc apresenta a questão do jejum (seguindo o roteiro de Mc) que é o terceiro momento de confronto com os fariseus.

Os fariseus e os mestres da Lei disseram a Jesus: “Os discípulos de João, e também os discípulos dos fariseus, jejuam com frequência e fazem orações. Mas os teus discípulos comem e bebem” (v. 33).

Na tradição judaica, o jejum era praticado por lei ou por devoção, como expressão de arrependimento, humildade ou luto (cf. Zc 7,3-5 e a critica em Is 58). Aqui não se trata de jejuns prescritos pela lei, mas de prática ascética de determinados grupos religiosos. João Batista vivia no deserto (1,80; 3,2), era um asceta (1,15; 7,33p; Mc 1,6 omitido por Lc 3,4; cf. 11,18). Os seus discípulos (cf. 11,2s; 14,12), como também os fariseus, costumavam praticar jejuns particulares.

Quem pergunta em Mt 9,14 são os discípulos de João Batista que se surpreenderam com o estilo de vida de Jesus (cf. Lc 7,34; Mt 11,19) e seus discípulos. Quem pergunta em Lc são “eles”, ou seja, os mesmos da controvérsia anterior, então “os fariseus e mestres da lei” de 4,30 (que nossa liturgia acrescentou aqui em v. 33).

Jesus, porém, lhes disse: “Os convidados de um casamento podem fazer jejum enquanto o noivo está com eles? Mas dias virão em que o noivo será tirado do meio deles. Então, naqueles dias, eles jejuarão” (vv. 34-35).

O Messias se apresenta como esposo: título de Javé frequente no AT (Os 2; Is 49; 54; 62; Ez16 etc.), aplicado a Jesus no NT como esposa da nova aliança (Ef 5,22-32; cf. o noivo em Mt 22,1-14; 25,1-13). O casamento é tempo de alegria partilhada (Jr 16,8-9; Ct 3,11; 5,1; Sl 45), de “comer e beber” (5,30; cf. 7,34). Mas Lucas já conhece o tempo em que Jesus lhes foi arrebatado (Is 53,8): é o tempo da Igreja. Na Igreja Católica, a Sexta-feira Santa, “dia em que o noivo foi tirado”, é dia de jejum e abstinência da carne (como também é a Quarta-feira de Cinzas no início da quaresma).

Jesus contou-lhes ainda uma parábola: “Ninguém tira retalho de roupa nova para fazer remendo em roupa velha; senão vai rasgar a roupa nova, e o retalho novo não combinará com a roupa velha. Ninguém coloca vinho novo em odres velhos; porque, senão, o vinho novo arrebenta os odres velhos e se derrama; e os odres se perdem. Vinho novo deve ser colocado em odres novos (vv. 36-38).

Em v. 36, Lc classifica a resposta de Jesus como “parábola” (historinha de comparação). O casamento inaugura uma vida nova, não é um tapa-buraco, por isso “ninguém coloca remendo de pano novo em roupa velha” e “não se coloca vinho novo em odres velhos” (cf. Jó 32,19). Com a imagem do casamento combinam a da roupa e a do vinho. Ambas têm associações matrimoniais (p. ex. Is 52,1; 61,10; Sl 45, 9; Ct 2,4; 8,2) e servem para explicar a “novidade” (“renovando seu amor” diz Sf 3,17; o português “noivo” vem da palavra latim novus) “Antigo”, velho, é o adjetivo que Paulo aplica à aliança de Israel (2Cor 3,14). A imagem dos odres se encontra também em Jó 32,19. Ambas as imagens são muito expressivas, como se disséssemos: o Messias não vem para pôr remendos em panos gastos, ele traz um vinho que fermenta vida nova.

E ninguém, depois de beber vinho velho, deseja vinho novo; porque diz: o velho é melhor” (v. 39).

Só Lc acrescenta esta frase final. O vinho mais velho é mais valorizado, porque tem sabor melhor do que o novo que precisa ainda amadurecer. O costume do antigo impede considerar a qualidade do novo, o que explica de certo modo porque os judeus rejeitaram Jesus (cf. 4,24). Quem está habituado às estruturas do velho sistema, e não se predispõe à mudança, jamais aceita a novidade trazida por Jesus. Em Jo 2,10, o vinho novo (transformado da água) de Jesus é o melhor.

O site da CNBB comenta: A maioria das novidades que nós encontramos no dia a dia não passa, na verdade, de mudanças superficiais em coisas que já existiam antes ou de uma continuidade de um processo evolutivo, de modo que muito pouco vemos de realmente novo. Por isso, temos muita dificuldade em ver a novidade do Evangelho, não percebemos que na verdade ele nos apresenta valores que não existiam antes e uma forma totalmente nova de nos relacionarmos com Deus e com as outras pessoas. Se não estivermos bem atentos e totalmente abertos para a novidade do Evangelho, corremos o risco de querer fazer com que ele seja remendo novo em pano velho, ou vinho novo em odres velhos, uma continuidade dos valores do homem velho, algo que não se insere na realidade nem a transforma.

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