03 de abril de 2017 – Segunda-feira, Quaresma 5ª semana

Leitura: Dn 13,1-9.15-17.19-30.33-62 (ou versão breve 13,41c-62)

A leitura de hoje é uma das mais longas no ano litúrgico. A versão mais breve, porém, não revela toda a trama.

A história da salvação da bela Susana falta na Bíblia hebraica (e na dos protestantes). Ela encontra-se só no anexo grego do livro de Dn. Vários ingredientes contribuíram para sua popularidade: o tema com seu drama e seu resultado feliz, que é o triunfo da inocência; a descrição irônica da paixão dos dois velhos e o processo de vingança; a figura do rapaz Daniel que salva a situação com um recurso bastante simples. Pode ter existido um original aramaico, que na origem não tinha nenhuma relação com o livro de Dn, mas o nome do herói bíblico (“Daniel” significa “Deus julga”) possibilitou a identificação e a inserção neste livro.

Na Babilônia vivia um homem chamado Joaquim. Estava casado com uma mulher chamada Susana, filha de Helcias, que era muito bonita e temente a Deus. Também os pais dela eram pessoas justas e tinham educado a filha de acordo com a lei de Moisés. Joaquim era muito rico e possuía um pomar junto à sua casa. Muitos judeus costumavam visitá-lo, pois era o mais respeitado de todos (vv. 1-4).

Susana transcreve a palavra hebraica por “lírio”, como Judite era “muito bela e temente a Deus” (cf. Jt 8,7s). Os pais dela eram “justos” (atributo frequente na literatura sapiencial, retomado no NT, cf. Mt 1,18: José; Lc 1,6; 2,25; 23,47.50: Zacarias e Isabel, Simeão, Jesus e José de Arimateia). A “lei de Moisés” se tornou fundamento da vida judaica e princípio da educação. A situação confortável de Joaquim e de sua casa contraria a situação dos judeus no início do exílio e supõe uma longa permanência na Babilônia. De fato, nem todos voltaram depois do exílio, mas permaneceram lá (cf. o Talmud babilônico, escrito judaico no séc. VI d.C.)

Ora, naquele ano, tinham sido nomeados juízes dois anciãos do povo, a respeito dos quais o Senhor havia dito: “Da Babilônia brotou a maldade de anciãos-juízes, que passavam por condutores do povo.” Eles frequentavam a casa de Joaquim, e todos os que tinham alguma questão se dirigiam a eles. Ora, pelo meio-dia, quando o povo se dispersava, Susana costumava entrar e passear no pomar de seu marido. Os dois anciãos viam-na todos os dias entrar e passear, e acabaram por se apaixonar por ela. Ficaram desnorteados, a ponto de desviarem os olhos para não olharem para o céu, e se esqueceram dos seus justos julgamentos (vv. 5-9).

A cena acontece numa comunidade judaica pequena no exílio babilônico, mas não lhe falta o bem-estar regido por chefes locais (cf. Dt 1,9-18). Mas os dois anciãos, nomeados juízes, são retratados sem piedade: dois velhos apaixonados como rapazes (brincando de esconde-esconde como crianças, até se confessarem um ao outro o mesmo desejo, vv. 10-14), mas abusando seu poder dentro da comunidade (a citação é de Jr 29,21-23). O “céu” (v. 9) designa Deus (cf. 4,23), os “seus justos julgamentos”, os mandamentos de Deus ou o modo pelo qual ele julga os maus.

Assim, enquanto os dois estavam à espera de uma ocasião favorável, certo dia, Susana entrou no pomar como de costume, acompanhada apenas por duas empregadas. E sentiu vontade de tomar banho, por causa do calor. Não havia ali ninguém, exceto os dois velhos que estavam escondidos, e a espreitavam. Então ela disse às empregadas: “Por favor, ide buscar-me óleo e perfumes e trancai as portas do pomar, para que eu possa tomar banho” (vv. 15-17).

O erotismo da cena lembra o começo do adultério de Davi com Betsabeia (2Sm 11,2ss).

Apenas as empregadas tinham saído, os dois velhos levantaram-se e correram para Susana, dizendo: ”Olha, as portas do pomar estão trancadas e ninguém nos está vendo. Estamos apaixonados por ti: concorda conosco e entrega-te a nós! Caso contrário, deporemos contra ti, que um moço esteve aqui, e que foi por isso que mandaste embora as empregadas”. Gemeu Susana, dizendo: “Estou cercada de todos os lados! Se eu fizer isto, espera-me a morte; e, se não o fizer, também não escaparei das vossas mãos; mas é melhor para mim, não o fazendo, cair nas vossas mãos do que pecar diante do Senhor!” (vv. 19-23).

Pela Lei de Moisés, a pena da morte cai sobre os adúlteros flagrados, “tanto o homem como sua cúmplice” (Lv 20,10; Dt 22,22; cf. Jo 8,4s).

Então ela pôs-se a gritar em alta voz, mas também os dois velhos gritaram contra ela. Um deles correu para as portas do pomar e as abriu. As pessoas da casa ouviram a gritaria no pomar e precipitaram-se pela porta do fundo, para ver o que estava acontecendo. Quando os velhos apresentaram sua versão dos fatos, os empregados ficaram muito constrangidos, porque jamais se dissera coisa semelhante a respeito de Susana (vv. 24-27).

A calúnia dos sedutores mal sucedidos lembra a mulher de Putifar que denunciou o honesto José no Egito para se salvar da sua própria tentativa de adultério (Gn 39,7-20).

No dia seguinte, o povo veio reunir-se em casa de Joaquim, seu marido. Os dois anciãos vieram também, com a intenção criminosa de conseguir sua condenação à morte. Por isso, assim falaram ao povo reunido: ”Mandai chamar Susana, filha de Helcias, mulher de Joaquim”! E foram chamá-la. Ela compareceu em companhia dos pais, dos filhos e de todos os seus parentes. Os que estavam com ela e todos os que a viam, choravam. Os dois velhos levantaram-se no meio do povo e puseram as mãos sobre a cabeça de Susana. Ela, entre lágrimas, olhou para o céu, pois seu coração tinha confiança no Senhor (vv. 28-30.33-35).

A liturgia de hoje saltou os vv. 31-32 em que os dois anciãos ordenaram que fosse tirado o véu de Susana (cf. 1Cor 11,2-16). “Puseram a mão sobre a cabeça de Susana” (v. 34). Em Lv 24,14, a comunidade maculada pelo crime purifica-se pela lapidação do culpado, sobre o qual se põe a mão como sobre um animal que substitui a comunidade em um sacrifício (Lv 16,21).

Entretanto, os dois anciãos deram este depoimento: “Enquanto estávamos passeando a sós no pomar, esta mulher entrou com duas empregadas. Depois, fechou as portas do pomar e mandou as servas embora. Então, veio ter com ela um moço que estava escondido, e com ela se deitou. Nós, que estávamos num canto do pomar, vimos esta infâmia. Corremos para eles e os surpreendemos juntos. Quanto ao jovem, não conseguimos agarrá-lo, porque era mais forte do que nós e, abrindo as portas, fugiu. A ela, porém, agarramos, e perguntamos quem era aquele moço. Ela, porém, não quis dizer. Disto nós somos testemunhas”. A assembléia acreditou neles, pois eram anciãos do povo e juízes. E condenaram Susana à morte. Susana, porém, chorando, disse em voz alta: “Ó Deus eterno, que conheces as coisas escondidas e sabes tudo de antemão, antes que aconteça! Tu sabes que é falso o testemunho que levantaram contra mim! Estou condenada a morrer, quando nada fiz do que estes maldosamente inventaram a meu respeito!” O Senhor escutou sua voz (vv. 36-44).

Susana reza em alta voz (vv. 42-43; cf. Pr 15,3; Sl 7,10; 17,3; 27,12; 33,13-15; 120,2; Hb 4,13) a Deus que conhece as coisas escondidas (cf. Sl 139). E o Senhor escuta sua voz (v. 44).

Enquanto a levavam para a execução, Deus excitou o santo espírito de um adolescente, de nome Daniel. E ele clamou em alta voz: “Sou inocente do sangue desta mulher!” Todo o povo então voltou-se para ele e perguntou: “Que palavra é esta, que acabas de dizer?” De pé, no meio deles, Daniel respondeu: “Sois tão insensatos, filhos de Israel? Sem julgamento e sem conhecimento da causa verdadeira, vós condenais uma filha de Israel? Voltai a repetir o julgamento, pois é falso o testemunho que levantaram contra ela!” Todo o povo voltou apressadamente, e outros anciãos disseram ao jovem: “Senta-te no meio de nós e dá-nos o teu parecer, pois Deus te deu a honra da velhice” (vv. 45-50).

Deus intervém suscitando o santo espírito de um adolescente de nome Daniel que evoca a figura de Samuel, que era jovem e depois tornou-se juiz em Israel (1Sm 3; 7,15-17). Seu grito chama atenção: “Sou inocente do sangue dessa mulher!” (vv. 44-47; cf. 5,12: Mt 27,24: Pilatus; At 18,6: Paulo). O grito do rapaz atravessa a multidão como protesto crítico, contra a perversidade de uns e a leviandade de outros; é uma voz profética diante dos chefes institucionais e uma comunidade complacente. O tribunal dos “outros anciãos” (v. 50; vindos de outras cidades) contradiz em certo sentido o v. 5 onde os dois velhos são os próprios juízes na casa de Joaquim (v. 28). Disseram ao jovem: “Senta-te no meio de nós e dá-nos o teu parecer, pois Deus te deu a honra da velhice (o privilégio de anciões)” (v. 50). “Velhice venerável não é longevidade” (Sb 4,8s; cf. Eclo 25,3-6).

Falou então Daniel: “Mantende os dois separados, longe um do outro, e eu os julgarei.” Tendo sido separados, Daniel chamou um deles e lhe disse: “Velho encarquilhado no mal! Agora aparecem os pecados que estavas habituado a praticar. Fazias julgamentos injustos, condenando inocentes e absolvendo culpados, quando o Senhor ordena: ‘Tu não farás morrer o inocente e o justo!’ Pois bem, se é que viste, dize-me à sombra de que árvore os viste abraçados?” Ele respondeu: “É sombra de uma aroeira.” Daniel replicou “Mentiste com perfeição, contra a tua própria cabeça. Por isso o anjo de Deus, tendo recebido já a sentença divina, vai rachar-te pelo meio!” Mandando sair este, ordenou que trouxessem o outro: “Raça de Canaã, e não de Judá, a beleza fascinou-te e a paixão perverteu o teu coração. Era assim que procedíeis com as filhas de Israel, e elas por medo sujeitavam-se a vós. Mas uma filha de Judá não se submeteu a essa iniquidade. Agora, pois, dize-me debaixo de que árvore os surpreendeste juntos?” Ele respondeu: “Debaixo de uma azinheira.” Daniel retrucou: “Também tu mentiste com perfeição, contra a tua própria cabeça. Por isso o anjo de Deus já está à espera, com a espada na mão, para cortar-te ao meio e para te exterminar!” (vv. 51-59).

Daniel interroga os anciões separadamente, e seus depoimentos contraditórios revelam sua mentira (cf. Eclo 25,2). O castigo pronunciado em grego tem seu parecido com os nomes das árvores correspondentes (cf. vv. 54-55.58-59). A distinção entre “filhas de Israel” e ”filha de Judá” indica uma tensão entre os habitantes do antigo território de Israel e os judeus como havia após o cisma dos samaritanos contra os quais o texto polemiza indiretamente (vv. 56-57).

Toda a assistência pôs-se a gritar com força, bendizendo a Deus, que salva os que nele esperam. E voltaram-se contra os dois velhos, pois Daniel os tinha convencido, por suas próprias palavras, de que eram falsas testemunhas. E, agindo segundo a lei de Moisés, fizeram com eles aquilo que haviam tramado perversamente contra o próximo. E assim os mataram, enquanto, naquele dia, era salva uma vida inocente (vv. 60-62).

Já na lei de Moisés, “uma testemunha não é suficiente… A causa será estabelecida pelo depoimento de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15; cf. 17,2-7). O que Daniel exemplificou, era interrogá-las separadamente para descobrir se há uma falsa testemunha. “Agindo segundo a lei de Moises, fizeram com eles aquilo que havia tramado perversamente contra o próximo” (v. 61; cf. Dt 19,18s). No livro de Est, o vilão Amã que tramava matar o povo judeu, foi enforcado depois da descoberta da sua intriga (cf. Est 9,24s).

Susana experimentou que a verdade e fidelidade prevalecem (cf. Sl 85,11s) e que Deus defende os justos enviando ajuda, um “jovem”, desta vez não um anjo, mas um ser humano, cujo nome significa “Deus julga” (Dani-El). Daniel que tem uma consciência sadia, não manchada nem inflada, através da qual Deus volta a tomar posse de seu povo. Outro jovem revelará a justiça de Deus através da sua cruz e ressurreição, renovando a aliança de Deus para com seu povo. Na sua regra para os monges, S. Bento recomenda que o superior deva ouvir também o conselho de um jovem, não só o dos velhos.

 

Evangelho: Jo 8,1-11 (ou opcional: Jo 8,12-20, ano C)

É hoje opinião corrente que este relato sobre a adúltera perdoada é inserção posterior. A linguagem em parte não é de João; o texto falta nos manuscritos antigos; alguns manuscritos o colocam depois de Lc 21,38. Contudo, o relato é canônico, ou seja, faz parte do NT inspirado, conserva a recordação de um episódio de Jesus, e é uma jóia literária e religiosa. S. Jerônimo o acolheu na sua tradução em latim (Vulgata), assim se espalhou no ocidente.

Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los (vv. 1-2).

A cena se desenrola publicamente, no templo, onde Jesus costuma ensinar (18,20). A cena e o estilo combinam melhor com os evangelhos sinóticos (cf. Mc 11,11s.19s.27; 14,49; Lc 19,47-20,1; 21,37): o “monte das Oliveiras” (só aqui em Jo; cf. 18,1), a volta ao templo no outro dia, onde ensina sentado (Mt 5,1s etc.; em Jo, Jesus fica mais de pé, 7,37) com o povo em volta, os detalhes do diálogo sem o dualismo joanino, o perdão à mulher pecadora pela palavra de Jesus (cf. Lc 7,36-50).

Entretanto, os mestres da Lei e os fariseus trouxeram uma mulher surpreendida em adultério. Colocando-a no meio deles, disseram a Jesus: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés na Lei mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?” Perguntavam isso para experimentar Jesus e para terem motivo de o acusar (vv. 3-6a).

O conjunto “mestres da lei e fariseus” (ou letrados do partido dos fariseus) é sinótico (Jo não costuma mencionar os mestres da lei, mas diz logo “os judeus”). Eles apresentam ao “mestre” um caso legal prático, provavelmente com intenção capciosa (como a moeda de César, Mc 12,13-17p; cf. Lc 6,7; Jo 6,6). Não lhe pedem uma sentença forense (o mestre não é juiz), mas um parecer sobre a aplicação da lei mosaica (não de uma observância qualquer) a um caso particular. Isso pressupõe que os interlocutores viram Jesus distanciar-se da lei ao perdoar pecados. A pergunta pode equivaler: nós a surpreendemos em flagrante adultério; devemos levá-la ao tribunal competente ou a executamos sem mais? (cf. Gn 38; Dt 17,7).

A Lei de Moisés decreta pena de morte para adúlteros (Lv 20,10: homem e mulher; Dt 22,22: apedrejar ambos), pena de morte por lapidação para a prometida ou desposada, infiel ao homem a que legitimamente pertence, embora ainda não conviva com ele (Dt 22,21; cf. Mt 1,19). Ez 16,38-40 menciona a lapidação como pena normal das adúlteras. No plano simbólico, muitos textos do AT apresentam Javé Deus como esposo que perdoa e reconcilia consigo a mulher infiel: Samaria (Os 2) ou Jerusalém (Is 1,21-26; 49; 54; Ez 16).

No tempo de Jesus, os romanos se reservavam o direito de condenar à morte (cf. 18,31). Os fariseus queriam linchar a pecadora (cf. At 7,58: Estevão)? Parece que não há saída da pergunta armadilha: Se Jesus concordasse com a lei de Moisés neste sentido, estaria contrariando sua própria misericórdia para com os pecadores (cf. Lc 15,1s) e se colocando ainda contra Roma. Se ele não concordasse com a aplicação da Lei, estaria contra a vontade de Deus no Antigo Testamento (cf. Mc 12,13.15).

Mas Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão. Como persistissem em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra.” E tornando a inclinar-se, continuou a escrever no chão. E eles, ouvindo o que Jesus falou, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos (vv. 6b-9a).

Jesus, em lugar de dar logo uma resposta verbal, escreve no chão, depois responde e continua a escrever. O que escreveu? O narrador não diz, mas os comentaristas encontraram amplo campo para conjecturas: algum texto da legislação penal (costume romano de escrever a sentença e depois pronunciá-la), os nomes dos que “se afastam do Senhor, estarão escritos na terra” (Jr 17,13), os pecados das pessoas presentes e da humanidade, ou simplesmente rabiscos. De fato, este gesto é um recurso narrativo, como que tomando tempo para refletir (v. 6) e na segunda vez (v. 8), como que esperando que os “impecáveis” executassem a sentença.

A resposta de Jesus (v. 7: “Quem estiver sem pecado”…) não se refere à situação jurídica (houve inquérito?) nem às leis do AT (cf. Dt 13,10; 17,7: as testemunhas deviam ser os primeiros a atirar pedras, depois o povo) nem à situação política (privilégio dos romanos de condenar à morte). Jesus questiona a situação dos que o interrogam: Eles têm direito de julgar em nome do AT ou são pecadores também (cf. Mt 5,27s)? São eles realmente pessoas melhores (cf. Lc 13,1-5)? Este argumento talvez não convencesse fariseus, mas reflete a missão cristã anunciando o juízo de Deus sobre todas as pessoas (Rm 1,18; 3,9-18).

Com a atitude serena e soberana de Jesus se desprende uma força que desmascara (“colocaste nossos segredos ante a luz da tua face”, Sl 90,8), uma indignação que os faz “retroceder confusos”, “voltar atrás envergonhados” (Sl 70,3-4; 129,5). Há outro “adultério”, mais grave, a infidelidade dos dirigentes a seu Deus, denunciada pelos profetas (p. ex. Ez 16; Os 2).

Jesus continua a escrever para sua palavra surtar efeito no tempo (cf. o autoconhecimento do oráculo de Délfi: “Conheça-te a ti mesmo”). Os que saem primeiro são os mais velhos (anciãos do sinédrio como o fariseu Nicodemos, cf. 3,1s.4; ou simplesmente: os mais sábios com mais experiência de vida).

E Jesus ficou sozinho com a mulher que estava lá, no meio do povo. Então Jesus se levantou e disse: “Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou ?” Ela respondeu: “Ninguém, Senhor.” Então Jesus lhe disse:”Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (vv. 9b-11).

Ficaram só Jesus e a pecadora “no meio” (o texto grego não diz: “do povo”, v. 9b). Stº. Agostinho comentou: “Restaram só dois, a miserável e o misericordioso.” Resta ainda esclarecer a posição requerida de Jesus a respeito desta pecadora flagrada. A cena não é apenas uma controvérsia com os escribas, mas um problema pastoral que só se resolve pela palavra de Jesus (vv. 7b.11).

Agora Jesus toma iniciativa, porque a solução do caso não pode ser: porque todos são pecadores, todos são isentos? (cf. Mt 7,1-5), mas: todos são pecadores e necessitam de conversão e perdão; nova vida só é possível na base do perdão (cf. Lc 15; Mt 18 e a tradição batismal em 1Cor 6,9-11; cf. “de agora em diante” em relação à vida anterior de pecado em Rm 6,19.21; 8,1; 1Cor 7,14; 2Cor 5,16; 6,2; Ef 5,8; 1Pd 2,10.15). Mas a graça divina exclui o pecado (Rm 6,1), por isso a palavra final: “Não peques mais”.

Na vida de Davi há um caso judicial notável (2Sm 14): o rei tem que sentenciar se deve condenar o homicida ou perdoar o réu (seu próprio filho culpado, Absalão). A lei foi feita para o homem (e a mulher), e Jesus não veio para julgar (condenar) e sim para salvar (3,17; 12,47). A salvação dessa mulher está no perdão e na emenda (Ez 16,63).

O site da CNBB comenta: Quando falamos em pecado, sempre nos referimos aos pecados que os outros cometeram, jamais aos nossos, porque os outros precisam ser condenados pelos seus erros e nós somos diferentes, precisamos ser compreendidos. Quando fazemos isso, geralmente escondemos dos outros a face amorosa e misericordiosa de Deus, porque esta face é só para nós, e lhes mostramos um Deus que pune e é vingativo, que quer o castigo de todos, e esta face não é para nós. Com isso, nos tornamos um obstáculo para a conversão dos outros e, em consequência disso, Deus não agirá com misericórdia e amor conosco.

Opcional: Jo 8,12-20

Depois do acréscimo posterior (vv. 1-11), o evangelho continua na linguagem típica de Jo: Jesus revela a sua própria pessoa como salvação exclusiva (“Eu sou”…; cf. 6,35; 8,12; 10,7.9.11.14; 11,25s; 14,6; 15,1.5) e universal (“do mundo”); questionado, se defende depois contra os adversários.

De novo, lhes falava Jesus: “Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (v. 12).

Um dos ritos da “festa das Tendas” (7,2) consistia em acender vários candelabros num átrio do templo. Jesus apresentou-se como “luz do mundo” (v. 12), não só de Israel. A luz revela as formas e permite a visão (Jó 38,12-14), é por isso que é símbolo de conhecimento. Além disso, é vida. Embora a expressão “luz da vida” (ou luz viva, que não é preciso alimentar periodicamente, à semelhança da água da vida/viva que mana sempre) não seja frequente (Sl 56,14; Jo 33,30), a idéia é comum, já que viver é ver a luz do dia, e o parto é dar à luz. A luz é um dos símbolos mais ricos e frequentes para falar de Deus e do divino (cf. Sl 27,1; 36,9-10). A luz é a primeira criação (Gn 1,3) e anuncia a ressurreição (Mt 28,1p; cf. 2Cor 4,6; Ef 4,8-14).

No evangelho de João, há uma tendência dualista: o símbolo atrai seu oposto, as “trevas”, morte física (Jó 10,20-22) e morte do espírito. A luz se impõe com sua evidência, não precisa de demonstrações, mas a pessoa pode fechar os olhos à luz (cf. 3,19-21; cap. 9). “Seguir” Jesus é caminhar atrás dele, corresponde ao hebraico “ir atrás de” e significa a total adesão à pessoa de Jesus. É um convite a seguir a Jesus e escapar das trevas da morte (cf. 12,35s)

A Bíblia de Jerusalém (p. 2006) anota a respeito da luz: “No NT, o tema da luz desenvolve-se através de três linhas principais, mais ou menos distintas.

  1. Como o sol ilumina uma estrada, também é luz tudo o que ilumina o caminho para Deus: outrora, a Lei, a Sabedoria e a Palavra de Deus (Ecl 2,13; Pr 4,18-19; 6,23; Sl 119,105); agora, o Cristo (Jo 1,9; 9,1-39; 12,35; 1Jo 2,8-11: cf. Mt 17,2; 2Cor 4,6), comparável a Nuvem luminosa do Êxodo (Jo 8,12; cf. Ex 13,21s; Sb 18,3s); finalmente todo cristão, que manifesta Deus aos olhos do mundo (Mt 5,14-16; Lc 8,16; Rm 2,19; Fl 2,15; Ap 21,24).
  2. A luz é símbolo da vida, felicidade e alegria; as trevas, símbolo de morte, desgraças e lágrimas (Jó 30,26; Is 45,7; cf. Sl 17,15); às trevas do cativeiro se opõe, portanto a luz da libertação e da salvação messiânica (Is 8,22-9,1; Mt 4,16; Lc 1,79; Rm 13,11-12), atingindo até nações pagãs (Lc 2,32; At 13,47), através de Cristo-Luz (Jo – cf. os textos citados acima; Ef 5,14), para se consumar no Reino dos Céus (Mt 8,12; 22,13; 25,30; Ap 22,5; cf. 21,3-4).
  3. O dualismo luz-trevas vem caracterizar, por isso, os dois mundos opostos do Bem e do Mal (cf. os textos essênios de Qumrã). No NT, aparecem os dois reinos sob os respectivos domínios de Cristo e de Satanás (2Cor 6,14-15; Cl 1,12-13; At 26,18; 1Pd 2,9), um pelejando por vencer o outro (Lc 22,53; Jo 13,27-30). Os homens se dividem em filhos da luz e filhos das trevas (Lc 16,8; 1Ts 5,4;Ef 5,5-7; Jo 12,36), conforme vivam sob o influxo da luz (Cristo) ou das trevas (Satanás) (Mt 6,23; 1Ts 5,4s; 1Jo 1,6-7; 2,9-10), e se fazem reconhecer por suas obras (Rm 13,12-14; Ef 5,8-11). Essa divisão (julgamento) entre os homens tornou-se manifesta com a vinda da Luz, obrigando cada um a se definir a favor ou contra ele (Jo 3,19-21; 7,7; 9,39; 12,46; cf. Ef 5,12-13). A perspectiva é otimista: as trevas, um dia, terão de ceder lugar à luz (Jo 1,5; 1Jo 2,8; Rm 13,12).

Então os fariseus disseram: “O teu testemunho não vale, porque estás dando testemunho de ti mesmo” (v. 13).

Jesus se declarou salvador (luz do mundo), mas os fariseus questionam se é legitimo. Não se discute o conteúdo (a “luz” podia ser substituída por água, verdade, etc.), indício de que v. 12 já era provérbio tradicional inserido por Jo. As palavras “Eu sou…” remetem à comunicação antiga por mensageiros. O enviado precisava se apresentar e legitimar (“Eu vim para…, ”Eu sou…” cf. Tb 12,14-18).

Jesus respondeu: “Ainda que eu dê testemunho de mim mesmo, o meu testemunho é válido, porque sei de onde venho e para onde vou. Mas vós não sabeis donde venho, nem para onde vou. Vós julgais segundo a carne, eu não julgo ninguém, e se eu julgo, o meu julgamento é verdadeiro, porque não estou só, mas comigo está o Pai, que me enviou. Na vossa Lei está escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro. Ora, eu dou testemunho de mim mesmo e também o Pai, que me enviou, dá testemunho de mim.” (vv. 14-18).

Sobre o testemunho de Jesus, cf. 5,31-37 (comentário de 5ª feira da semana passada). Na “vossa lei” (Jo já se distancia do AT), apenas o testemunho coerente de duas pessoas é aceito (v. 17; cf. Dt 19,15 e a leitura de hoje). Jesus, porém, só pode testemunhar de si mesmo, porque ele é o único que pode revelar Deus num mundo de escuridão (cf. 1,18; 5,37; 6,46). Só se pode acessar e conhecer o Pai através do Filho (cf. Mt 11,27p; Jo 14,6), portanto, fora desta revelação não há legitimação. A legitimação de Jesus é sua união com o Pai (v. 16).

A descrença não aceita isso. As autoridades judaicas não podem aceitar o testemunho de Jesus, porque julguem “segundo a carne” (v. 15; cf. 3,6; 6,63), “segundo as aparências” (7,24) e não conhecem o Pai, que dá testemunho de Jesus (vv. 17-19); assim continuam nas trevas, na ignorância sobre a origem e o destino de Jesus, sobre o próprio Pai. Jesus, porém, julga verdadeiro, porque em união com o Pai. Jesus não julga ninguém (v. 15b), seu ofício é salvar (cf. 3,17s), mas sua presença no mundo leva ao “julgamento verdadeiro” (porque em união com o Pai, cf. v. 16): conforme as pessoas se posicionam a ele, terão luz e vida ou não terão.

Perguntaram então: “Onde está o teu Pai?” Jesus respondeu: “Vós não conheceis nem a mim, nem o meu Pai. Se me conhecêsseis, conheceríeis também o meu Pai” (v. 19).

Não houve progresso no diálogo, mas só posicionamento entre Jesus e os fariseus. A pergunta “onde está o teu Pai” remete à pergunta inicial sobre a legitimação. Na última ceia, Filipe disse: “Mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Jesus lamenta: “Há tanto tempo já estou convosco e tu não me conheces… Quem me vê, vê o Pai… Crede-me: eu estou no Pai e o Pai está em mim” (14,9-11).

Jesus disse estas coisas, enquanto estava ensinando no templo, perto da sala do tesouro. E ninguém o prendeu, porque a hora dele ainda não havia chegado (v. 20).

Jesus estava falando no pátio onde também as mulheres tinham acesso, perto da tesouraria (cf. Mc 12,41.43; Lc 21,1). Ninguém prendeu ainda Jesus, “porque a hora dele ainda não havia chegado” (v. 20; cf. 2,4; 7,6.30.44; 13,1).

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