03 de fevereiro de 2018 – Sábado, 4ª semana

Leitura: 1Rs 3,4-13

A narração do reinado de Salomão (cerca de 970-931 a.C.) é a mais extensa nos dois livros dos Reis. Já ouvimos da sucessão no trono de Davi (1Rs 1-2). Salomão foi indicado por Davi como seu sucessor e ungido pelo profeta Natã e o sumo sacerdote Sadoc. Depois da morte de Davi, o jovem eliminou seus rivais e tomou posse. Mas o próprio Deus ainda não se manifestou a respeito da escolha do novo rei. A presente leitura oferece a peça que faltava.

Salomão (hebraico Shlomoh) significa “pacífico, paz”. Ao contrário do seu pai Davi não precisava liderar guerras, mas estabeleceu a paz através de uma política de casamentos (em 3,1 com a filha do farão do Egito; cf. 11,1-13), de comércio internacional, cultura (sabedoria) e tolerância religiosa, ele “mantinha os sacrifícios e incenso nos lugares altos” (3,2s). Estes lugares, onde se praticava cultos cananeus e sincretistas, serão proibidos depois pelos reis Ezequias (2Rs 18,4) e Josias (2Rs 23,5.15.19), para centralizar o culto no templo de Jerusalém. Este templo, Salomão construirá ainda (nos próximos capítulos 5-8).

A Bíblia do Peregrino (p. 617) observa: O esquema se parece com alguns modelos egípcios: o rei se afasta da corte para visitar um santuário famoso, aí oferece um sacrifício, tem em sonhos uma visão com deus lhe ordenando alguma coisa ou confirmando seus planos, volta à corte e comunica a visão a seus ministros.

O rei Salomão foi a Gabaon para oferecer um sacrifício, porque esse era o lugar alto mais importante. Salomão ofereceu mil holocaustos naquele altar (v. 4).

Gabaon fica cerca de 10 km a noroeste de Jerusalém e já foi mencionada na história deuteronomista (cf. Js 9-10; 2Sm 2,12-17; 20,8; 21,1-4). Segundo o redator cronista, encontravam-se a tenda sagrada e o altar dos holocaustos ali, até a construção do templo em Jerusalém que Salomão empreenderia (cf. 1Cr 21,29; 2Cr 1,3,13). Os vv. 2-3 (omitidos pela leitura de hoje) talvez queiram desculpar o sacrifício de Salomão num desses lugares altos.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 503) comenta: Os lugares altos (cf. 1Sm 9,12…) são elevações – naturais ou artificiais – sobre os quais os canaanitas ofereceram habitualmente sacrifícios aos seus deuses e praticavam certos ritos religiosos: ritos de fertilidade, culto aos mortos, prostituição sagrada. Os lugares altos eram providos de altar e, sobretudo, de uma estela, provável símbolo da divindade, e de um poste sagrado. Símbolo talvez da deusa Asherá, ou, então, símbolo viril. Associados aos lugares altos, encontram-se muitas vezes árvores sagradas, provavelmente símbolos de fertilidade; sua presença talvez remonte aos tempos do nomadismo. Quando os hebreus se instalaram na Palestina, sofreram intensa influência das práticas dos canaanitas e se puseram a oferecer, nos mesmos lugares altos, seus sacrifícios ao Senhor. Com toda razão, os lugares altos tornaram-se cada vez mais suspeitos aos olhos dos profetas (Os 10,8; Am 7.9; Jr 3,2; Ez 20,28-29 etc.) e a todo um movimento cujos ecos percebemos nos livros dos Reis… O uso dos lugares altos só veio a terminar com o exílio na Babilônia.

Em Gabaon o Senhor apareceu a Salomão, em sonho, durante a noite, e lhe disse: “Pede o que desejas e eu te darei” (v. 5).

Os sonhos eram, antes dos profetas, um dos principais meios de comunicação entre Deus e os homens (cf. Gn 20,3-7; 28,10-22; 31,11s.24; 37,5-7; 40-41; Nm 12,6).

Em Israel, o rei era considerado intermediário entre Deus e o povo. É através do rei que Deus governa; o rei é seu instrumento, seu servo (cf. v. 7). Como os juízes e reis antes dele, Salomão estava em contato direto com o Javé Deus e, portanto, era rei não somente por direito hereditário – sempre contestável – mas pela vontade divina.

Salomão respondeu: “Tu mostraste grande benevolência para com teu servo Davi, meu pai, porque ele andou na tua presença com sinceridade, justiça e retidão de coração para contigo. Tu lhe conservaste esta grande benevolência, e lhe deste um filho que hoje ocupa o seu trono (v. 6).

Em v. 6, Salomão reconhece o início do cumprimento da promessa a seu pai Davi, feita pelo profeta Natã em 2Sm 7,12.16.

A Bíblia do Peregrino (p. 617) comenta os vv. 6-9: A oração do rei é composta e desenvolvida com certa amplidão. Em vez de pedir imediatamente, atrasa o pedido, colocando antes dupla confissão, de onde resulta uma estrutura ternária. As duas confissões têm por tema Davi e Salomão, os dois começos sublinham o paralelismo, e sobretudo a iniciativa divina. A oração recorde o Deuteronômio e também algum salmo (por exemplo, 89). O livro da Sabedoria, atribuído por ficção a Salomão (embora tenha sido escrito mais de nove séculos depois), amplia com grande riqueza esta oração (Sb 9).

Portanto, Senhor meu Deus, tu fizeste reinar o teu servo em lugar de Davi, meu pai. Mas eu não passo de um adolescente, que não sabe ainda como governar. Além disso, teu servo está no meio do teu povo eleito, povo tão numeroso que não se pode contar ou calcular (vv. 7-8).

Os títulos correlativos “Senhor, meu Deus” – “Teu servo”, expressam aqui a relação de soberano e vassalo. “Não passo de adolescente” (a mesma objeção na vocação de Jeremias em Jr 1,6). Um “povo tal numeroso” (“é glória para o rei”, Pr 14,28; cf. Dt 7,7s), “que não se pode contar” (cf. Gn 15,5; Davi o contou em 2Sm 24; cf. leitura de 4ª-feira passada).

Dá, pois, ao teu servo, um coração compreensivo, capaz de governar o teu povo e de discernir entre o bem e o mal. Do contrário, quem poderá governar este teu povo tão numeroso?” (v. 9).

Salomão não considerava sua função como um privilégio pessoal, mas como um ministério a exercer em favor do povo do Senhor; ele não pede favores pessoais (cf. v. 11), mas a sabedoria, ou seja, a faculdade de assumir eficazmente seu cargo, para o bem do povo. Salomão pede uma sabedoria prática, não para governar-se a si mesmo, mas para governar o povo (cf. 5,13; Ex 31,3).

Para ser “capaz de governar”, Salomão pede um “coração compreensivo”, lit. ouvinte, mente dócil, ou seja, a arte de “escutar” (cf. Dt 6,4: “Shema Israel – Ouve, Israel”) e de “discernir entre o bem e o mal”, que é suprema sabedoria (cf. Gn 2-3; Is 7,15; 5,20; Mq 3,2; note-se no livro dos Provérbios como são frequentes as avaliações: “é bom”, “é melhor”, “não é bom”). A principal tarefa da autoridade consiste em saber ouvir, é requisito básico não só para resolver casos no tribunal (cf. a famosa sentença de Salomão em vv. 16-28), mas também para o exercício do governo. Autoridade justa age sempre a partir de assessoramentos que lhe permitam ouvir as legítimas aspirações e reivindicações do povo.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 503) comenta: O rei é considerado o sucessor dos Juízes. Está encarregado de fazer reinar no meio do povo o direito e a ordem de Deus. Será também responsável diante dele por seu modo de estabelecer o direito (cf. Sb 8,9-12). O Salmo 72 dá uma ideia uma visão idealizada do reino de Salomão.

Esta oração de Salomão agradou ao Senhor. E Deus disse a Salomão: “Já que pediste estes dons e não pediste para ti longos anos de vida, nem riquezas, nem a morte de teus inimigos, mas sim sabedoria para praticar a justiça, vou satisfazer o teu pedido; dou-te um coração sábio e inteligente, como nunca houve outro igual antes de ti, nem haverá depois de ti. Mas dou-te também o que não pediste, tanta riqueza e tanta glória como jamais haverá entre os reis, durante toda a tua vida (vv. 10-13).

A resposta de Deus também é muito estilizada. A construção se reduz ao esquema: pediste/não pediste; dou o que pediste/também o que não pediste. Há uma desproporção entre os dons e o pedido. A sabedoria extraordinária de Salomão, descrita nos capítulos seguintes e valorizada nos livros atribuídos a ele (Pr, Eclo, Ct, Sb; cf. Sl 72; 127), é dom de Deus. Também Ezequias e Josias serão considerados reis inigualáveis (“nunca antes de ti nem depois…”, cf. 2Rs 18,5; 23,25). Só Jesus será “maior do que Salomão” (Mt 12,42p).

 

Evangelho: Mc 6,30-34

O evangelista contou o envio dos apóstolos (vv. 7-13), e em seguida o relato retrospectivo da morte de João Batista (vv. 14-29). Assim deu impressão de certa demora da missão dos “apóstolos”. Aqui em v. 30 é a única vez que Mc usa esta palavra grega apóstolos, que significa “enviados”, nas outras vezes, Mc prefere os “Doze”.

Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado. Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco”. Havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não tinham tempo nem para comer (vv. 30-31).

Os apóstolos voltaram da sua missão e havia uma reunião de avaliação de “tudo o que haviam feito e ensinado” (cf. At 11,1-18; 14,27s). Depois Jesus convida para descansar “num lugar deserto” (palavra chave para a multiplicação dos pães que será contada em seguida, lembrando o maná no “deserto”, cf. v. 35; Ex 16). Este gesto humano é motivado também pelo fato de que havia tanta gente chegando (em consequência do sucesso da missão?), “que não tinham tempo nem para comer” (cf. 2,2; 3,20).

Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado. Muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles. Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas (vv. 32-34).

Neste retiro, sozinho com os discípulos, Jesus poderia instruí-los sobre os mistérios do reino (4,10s) e seu segredo messiânico (cf. 10,32), mas as multidões “saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles”. Mc não explica porque o barco demorou mais (vento contrário ou cansaço dos apóstolos?), mas prepara-se “numerosa multidão”, uma assembleia do povo de Deus (cf. 3,7s) no deserto para a multiplicação dos pães em seguida (vv. 35-44). Jesus não fugiu, mas “teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor“ (v. 34; cf. Mt 9,36; Nm 27,17; 1Rs 22,17; Jr 10,21; 23,1-2; Ez 34,5-6.15; Zc 10,2).  O ofício do pastor é feito de cuidado e compaixão.

As multidões não encontraram guias autênticos (cf. 1,22; Jo 10), mas seguiam Jesus até ao deserto (como a Moises ou a Davi: Ex 15,22-16,31; Sl 77,21; 78, 52-53; Jo 6,4,10; Ez 34,23-24; cf. Sl 23,1; 74,1; 80,1). Jesus “começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas”; primeiro Jesus distribui a palavra (sobre o reino) e depois o pão (necessário de cada dia).

Neste contexto do deserto, podemos lembrar que “o homem não vive somente do pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,2-3; Mt 4,4; Lc 4,4). Também na Pastoral Social, é importante “ensinar” pescar e não só dar um peixe. Mc insiste na solidariedade dos apóstolos com Jesus em relação à multidão (vv. 31-33), na participação ativa deles no seu ensino (vv. 30.34) e na obrigação de alimentar o povo em seguida (vv. 35-44).

O site da CNBB comenta (talvez no contexto do evangelho de ontem): Devemos colocar a nossa felicidade onde se encontram os verdadeiros valores. As pessoas que vivem segundo os valores desse mundo colocam a sua felicidade nas coisas do mundo. São pessoas materialistas e hedonistas, marcadas pelo desejo do acúmulo de bens materiais e de poder e também na busca desenfreada de todos os prazeres proporcionados por este mundo, como é o caso do sexo e dos vícios em geral. São pessoas insatisfeitas porque na verdade foram criadas à imagem e semelhança de Deus e só podem ser satisfeitas plenamente em Deus, uma vez que são abertas ao infinito. Somente quem coloca a sua felicidade nos valores eternos encontra em Deus a sua plena satisfação.

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