03 de Fevereiro de 2019, Domingo: ”Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações” (v. 5).

1ª Leitura – Jr 1,4-5.17-19

A leitura de hoje foi escolhida em vista do evangelho que fala da rejeição e tentativa de homicídio que Jesus sofreu na sua cidade de Nazaré por causa da sua missão universal (cf. Jr 17,5, “eu te consagrei e te fiz profeta das nações” e Lc 4,21-30: “Nenhum profeta é bem recebida em sua pátria…”). Havia profetas na corte de reis que foram reconhecidos e respeitados (cf. Natã por Davi; 2Sm 7; 12). Mas um dos mais sofridos e perseguidos foi Jeremias, devido a sua mensagem que não agradou. Hoje ouvimos uma parte da vocação de Jeremias.

Sua atividade profética se desenvolveu entre os anos 627 e 586 a.C., e pode ser dividida em quatro períodos: durante o reinado de Josias (627-609 a.C.), durante o reinado de Joaquim (609-598 a.C.), durante o reinado de Sedecias (597-586 a.C.) e depois da queda de Jerusalém (586 a.C.). Enquanto surgiu esperança em Jerusalém pelo enfraquecimento do império assírio (Nínive caiu em 612), Jeremias, na contramão, anunciava um novo jugo, o império neo-babilônico, que resultará na destruição em Jerusalém em 586.

Hoje ouvimos uma parte da vocação de Jeremias. A Bíblia do Peregrino (p. 1846) comenta:

A vocação inclui escolha, consagração e nomeação: 1. A escolha precede a existência, como se a fundamentasse (cf. Is 49,5; Lc 1,41s; Gl 1,15s). Se a vocação fundamenta a existência, um dia a missão poderá consumir a existência 2. Consagrar é apropriar-se de algo para uma tarefa sagrada. A vocação profética é mais sagrada que a sacerdotal (cf. Dt 17-18). 3. A nomeação tem dimensão universal ultrapassando os limites do próprio país e tempo, embora esteja centrada neles. O que dizer do alcance universal de Jr em nossa história?

(Nos dias de Josias, rei de Judá,) foi-me dirigida a palavra do Senhor, dizendo: (v. 4)

Nossa liturgia resume a introdução dos vv. 1-3 que datam a vocação de Jeremias “nos dias de Josias, rei de Judá” em 627 ou 626 e a duração da sua pregação até 586 (queda de Jerusalém). Com isso, ele é o profeta cuja atividade se estende mais de 40 anos, mais do que todos os outros profetas.

“Foi-me dirigida a palavra do Senhor, dizendo”; em Jr (também em Ez, Zc e Ag), esta fórmula introduz, com frequência, a exposição de quanto Javé revelou ao profeta (vv. 4.11.13; 2,1; 13,3 etc.) e o enunciado das mensagens que ele lhe incumbe a transmitir (2,1 etc.). A expressão realça com força a Palavra em pessoa (!) e a sua ação (cf. v. 2; 14,1; 46,1; 47,1; 49,34; cf. Jo 1,1-3).

A “Palavra do Senhor (lit. Yhwh = Javé)” define a pregação e a vida de Jeremias (cf. 20,8). Diante da missão profética, Jeremias apresenta uma objeção, sua própria inexperiência (v. 6; cf. Moisés em Ex 4,10-12.40; 6,12; Gedeão Jz 6, 15; outros profetas em Am 7,10-15; Is 6; Ez 2-3; cf. Maria em Lc 1,34; Pedro em Lc 5,8). Deus, porém, lhe garante sua presença libertadora: “Eu estou contigo” (vv. 8.19; cf. Ex 3,12; Is 41,10; Mt 28,20; Rm 8,31).

”Antes de formar-te no ventre materno, eu te conheci; antes de saíres do seio de tua mãe, eu te consagrei e te fiz profeta das nações” (v. 5).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 713) comenta: O “criador de todas as coisas” (10,16; 51,19), que modelou e deu vida ao primeiro homem (Gn 2,7), forma todo homem desde sua concepção (18,6; Sl 33,15; 104,30; 139.13-16; Jó 10,8-12; Sb 7,1; 2Mc 7,22-23). Trata-se da obra de sabedoria e de amor daquele que “conhece” de antemão os que chama à existência, convidando-os a um “conhecimento” recíproco, à intimidade com ele (cf. Rm 8,29). Isto se dá de forma toda especial para os que (indivíduos ou comunidades) têm papel a desempenhar no cumprimento de seu designo sobre toda a humanidade (Gn 18,19; Is 44,2.21.24; 49,1,5; cf. Pr 8,22-23).

Ele é reservado [“consagrado”] (2,3; cf. 12,3), separado (cf. Lv 20,26; Sl 105,15; Gl 1,15) pelo “Santo de Israel” (50,29; 51,5), para um ministério especial que lhe será indicado em seguida. Isto comporta de sua parte uma comunhão íntima com o Senhor, um conhecimento mais direto do pensamento de Deus (cf. Lc 1,75; Jo 17,3.17.19.25-26; Ef 1,4). No caso de Sansão (Jz 13,5). João Batista (Lc 1,15.41), Paulo (Gl 1,15) e em particular no caso de Jesus (Lc 1,35; cf. Jo 10,36), trata-se de uma consagração prévia ao nascimento (cf. Pr 8,23; Ef 1,4s).

Última preparação do “profeta por vocação”: depois da escolha relacionada ao designo eterno de Deus e da consagração desde antes do nascimento, trata-se agora da entronização em suas funções (cf. Lc 3,22p) e da notificação de sua missão (cf. vv. 9-10).

“Te fiz profeta das nações”; cf. v. 10: “Eu te constituí sobre povos e reinos”. Jeremias foi enviado especialmente a Judá e a Jerusalém. Contudo, no conjunto de suas profecias, a mensagem dirigida às nações não se limita ao grupo de oráculos endereçados a elas exclusivamente (25,15-38; 46-51), mas aparece também em outras partes do livro (cf. p.ex. 12; 27; 44.30), ainda mais que Judá é também uma nação (5,9-29; 7,28; 9,8…) e um reino.

Vamos, põe a roupa e o cinto, levanta-te e comunica-lhes tudo que eu te mandar dizer: não tenhas medo, senão, eu te farei tremer na presença deles. Com efeito, eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, frente aos reis de Judá e seus príncipes, aos sacerdotes e ao povo da terra; eles farão guerra contra ti, mas não prevalecerão, porque eu estou contigo para defender-te”, diz o Senhor (vv. 17-19).

A mensagem que Jeremias há de anunciar será mal recebida, mas o profeta não deve ter medo: “Não tenhas medo, senão, eu te farei tremer na presença deles” (cf. 10,2; 30,10). O Senhor abandona os que não confiam nele (cf. Is 7,9; Mt 13,25); uma fé sólida produz grande segurança (cf. At 4,13; 28,31). A Bíblia do Peregrino (p. 1846) comenta: Quem veste longa túnica flutuante, a cinge para o trabalho (Sl 65; 2Rs 1,8) ou para a luta (Jó 38,3; 40,7). Quando a perseguição cerca por fora, surgem por dentro os medos que paralisam; o profeta deve superá-los confiando em Deus (Sl 27). Se falhar na confiança, ficará invadido de medos que se multiplicam, como que atiçados por Deus.

Jeremias não deve temer os maus governantes, os “reis, príncipes (chefes), sacerdotes e o povo da terra”. Este último é o grupo de grandes proprietários que defende implacável a dinastia davídica e que instituiu o rei Josias (cf. 2Rs 21,23-24; Jr 34,19). Diferente dos “pobres da terra”, o povo explorado e sofrido (cf. Sl 2,3; Jr 40,7). Após o exílio, em Esd e Ne, esta expressão, sempre no plural, designa os habitantes não-judaicos da Palestina.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 714) traduz aqui “sua milícia” e comenta o termo “povo da terra”: Esta expressão caracteriza, em certa época, o conjunto de cidadãos que gozam de todos os direitos civis e aos quais competem certos deveres específicos: eles podem intervir nos assuntos público (2Rs 21,24; 23,30; cf. 2Rs 14,21) e são também obrigados a servir no exércitos (52,25 traduzimos a mesma expressão com o termo “proprietários de terras” em 34,17 e 37,2 e com o termo “cidadãos” em 44,21.

Três comparações expressivas: “cidade (praça) fortificada, coluna de ferro, muro de bronze”. Cairá a cidade de Jerusalém, abrirão brecha na sua muralha, derrubarão suas colunas, mas o profeta resistirá, porque Deus está com ele para o defender (cf. v. 8), cf. o envio de Jesus em Mt 28,18-20 e a promessa do Espirito Paráclito (defensor) em Jo 14,16s.26; 15,26s; 16,7-15  (cf. Mt 10,17-20p).

2ª Leitura: 1 Cor 12,31-13,13

Ouvimos hoje uma leitura favorita nas celebrações de casamento. Seu autor Paulo, porém, não pensava em casamento, mas na convivência da comunidade e na harmonia entre os diversos dons e carismas. Paulo era mestre da lei e doutor das nações. Na leitura de hoje, ele se mostra poeta do amor.

Aspirai aos dons mais elevados. Eu vou ainda mostrar-vos um caminho incomparavelmente superior (12,31).

No cap. 12 (cf. domingos passados), Paulo esclareceu os coríntios sobre a origem única (o Espírito) e as funções diversas dos “dons” (grego: carismas) comparando-os com os membros de um único corpo (de Cristo, ou seja, a Igreja). Estabeleceu certa hierarquia colocando apóstolos, profetas e mestres antes de outros carismas valorizados em Corinto (por ex. falar em línguas, cf. cap. 14). Mas acima de todos os carismas, Paulo mostra um “caminho incomparavelmente superior”, o amor (caridade). O amor não é um carisma que alguns tem e outros não (cf. 12,29s), mas acessível para todos.

Em todo este capítulo, trata-se do amor fraterno que Paulo descreve numa linguagem lírica (por isso é chamado de “cântico de amor”). É um hino em três partes: a superioridade da caridade (vv. 1-3), suas obras (vv. 4-7) e sua perenidade (vv. 8-13). Trata-se do amor fraterno; nossa liturgia traduz “caridade” para não ser confundido com outros amores. O amor a Deus não é visado diretamente, mas sempre está presente de modo implícito, máxime no v. 13, em conexão com a fé e a esperança.

A Bíblia do Peregrino (p. 2759) comenta: Pode-se comparar com os ensinamentos de sermão da última ceia (especialmente Jo 15,2-17) e a primeira carta de João. Aos termos gregos correspondentes, “eros”, “philia”, Paulo preferiu um menos frequente e mais neutro, “ágape”. Não canta o amor conjugal, como o Cântico dos Cânticos, nem o amor de companheiros que Davi cantou (2Sm 1,19-27), nem outros amores humanos, ainda que nobilíssimos. Canta o amor que o Espírito de Deus e Cristo infunde no cristão. Ainda que em algumas de suas manifestações coincida com as de outros amores, a origem e finalidade os transcendem.

Como gênero literário, parece-se com o louvor grego. Do AT, para a comparação, convém citar, antes de tudo, poema de Ben Sirac, “Melhor que os dois” (Eclo 40,18-27): o poeta vai elencando duplas de valores e acrescenta um terceiro elemento “melhor que os dois”; até chegar ao décimo, melhor que os dois e que os vinte e nove, o “respeito de Yhwh”. Mais frequente é o elogio da Sabedoria por parte de autores sapienciais: a busca fracassada e resolvida (Jó 28), grande parte do livro da Sabedoria, os vinte e um atributos (Sb 7,22-23). Também o amor desse capítulo parece personificado.

Se eu falasse todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, mas não tivesse caridade, eu seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de transportar montanhas, mas se não tivesse caridade, eu não seria nada. Se eu gastasse todos os meus bens para sustento dos pobres, se entregasse o meu corpo às chamas, mas não tivesse caridade, isso de nada me serviria (13,1-3).

Paulo compara o amor com os carismas de falar (v. 1; cf. 12,28), de conhecer (v. 2a; cf. 12,8), de fazer milagres (v. 2b; cf. 12,9), de entrega. Nas suas viagens missionárias, estava em contato com vários povos com diversas línguas estrangeiras (“dos homens”). Imagina ainda os anjos falando mutuamente numa língua celeste (“dos anjos”), não nas que usam para comunicar-se com os homens. Os instrumentos musicais citados talvez sejam de percussão (“bronze”, “címbalo”); de qualquer modo, não produzem uma linguagem articulada.

Ao quem tem o dom da profecia (cf. 14,1-3.24s.37), “mistérios” são revelados (cf. 2,7; Rm 16,25; Ef 3,9; Cl 1,26; 2,2) ou explicados ao profeta, como afirma Amós (3,7). Ezequiel e Zacarias contaram suas visões; em Daniel acrescentaram-se explicações de um anjo (cf. Ap).

Depois de falar dos mistérios e seu conhecimento (“ciência”), o texto menciona a “fé” que opera milagres, anunciada por Jesus: “transportar montanhas” (Mc 11,23p).

“Se eu gastasse todos os meus bens para sustento dos pobres, se entregasse o meu corpo às chamas”; lit. “mesmo que distribua todos os meus bens em bocados, mesmo que entregue meu corpo para ser queimado”. Variação de texto muito atestada e preferida por certos editores: “para disso auferir orgulho”. Neste caso, compreender-se-ia: “Mesmo que eu me entregue a mim mesmo” (como escravo, para dar aos pobres o produto dessa venda), “se for para disso auferir orgulho e sem amor, nada ganharei com isso.”

A Bíblia do Peregrino (p. 2759) comenta: A terceira comparação é paradoxal (alguns manuscritos leem “para gloriar-me” = “por vaidade”): é possível semelhante entrega sem amor? Por convicção estoica, niilismo, louca ostentação? Pensa-se nos jovens na fornalha (Dn 3) ou nos sete irmãos (2Mc 7), não para negar-lhes o amor; Paulo imagina uma hipótese em que o paradoxo acrescenta ênfase à afirmação. Nós podemos pensar em movimentos que por cansaço ou desprezo renunciam aos bens, nos quais se queimam como gesto de protesto; não seria semelhante entrega a grande prova de amor? Paulo passa do ato em si ao espírito que o anima.

A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra com a iniquidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo (vv. 4-7).

O amor-caridade não é definido em forma abstrata, mas mediante uma série de verbos, isto é concretamente, pela ação e comportamento que suscita. São quinze características do amor, nas quais a abundância conta mais que a exatidão. Há oito enunciados negativos (o que se deve evitar, por ex. não guardar rancor, não pensar no mal) e um quarteto positivo final (ex.: “desculpa tudo”, lit. cobre tudo).

Podemos encontrar breves paralelos desta série ou ilustrações em conselhos sapienciais e em relatos (por ex. Pr 10,12: “O amor dissimula as ofensas”; ou Pr 14,17: “Lábios honrados conhecem de afabilidade”).

No AT, a sabedoria parece atuar como pessoa (cf. Pr 8-9), aqui é o amor que parece personificado e vários dos seus atributos se parecem aos do próprio Javé (cf. Ex 34,6s: “Deus de compaixão e de piedade, lento para cólera e cheio de amor e fidelidade… tolera a falta… mas deixa ninguém impune”). Em Jo 4,8.16 se identifica: “Deus é amor.”

A caridade não acabará nunca. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá (v. 8).

A caridade se parece com o próprio Deus, também por sua eternidade, “não acabará nunca”. Os diversos carismas válidos em si ficam relativizados ao ser comparados com a plenitude e a perfeição do amor, são expedientes provisórios.

Com efeito, o nosso conhecimento é limitado e a nossa profecia é imperfeita. Mas, quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança. Agora nós vemos num espelho, confusamente, mas, então, veremos face a face. Agora, conheço apenas de modo imperfeito, mas, então, conhecerei como sou conhecido (vv. 9-12).

Paulo compara o conhecimento com a visão num espelho e o crescimento na mente com o amadurecimento da criança para o adulto (cf. o exemplo da criança em Mt 18,1-4p).

Os espelhos antigos, de metal polido, não eram tão perfeitos como os nossos de mercúrio. Ao conhecimento de Deus indireto e confuso, pelo espelho das coisas criadas, sucederá o conhecimento direto (face a face) e claro da vida eterna. Os filósofos gregos usavam metáforas análogas para falar do conhecimento do mundo real (cf. o mito da caverna de Platão). Os gregos querem “ver Jesus” (Jo 12,21). Ver “face a face” lembra a o contato pessoal de Moisés com o Senhor (Nm 12,6-8; cf. Jo 1,17s); era o resultado da luta de Jacó (Gn 32,31) e a esperança do salmista (17,15). A cultura grega se baseia na visão, a semítica (judaica) mais na audição (palavra).

Ao passo que o nosso conhecimento imperfeito (v. 11) e indireto (v. 12) desaparecerá para dar lugar à visão de Deus face a face, a caridade nos eleitos será a mesma que eles tiverem tido na vida presente.

Atualmente permanecem estas três coisas: fé, esperança, caridade. Mas a maior delas é a caridade (v. 13).

Três vezes lemos “agora” em vv. 12-13. Ao contrário das realidades que passarão (vv. 8-10), “atualmente” (lit. agora) permanecem estas três coisas: “fé, esperança, caridade”. Desde agora nos introduzem no domínio das realidades que nunca passarão, que “permanecem” para sempre. A caridade é “a maior delas”, porque no céu, onde se vê Deus “face a face”, não precisa mais de fé e esperança (no sentido de Hb 11,1), mas o amor (o próprio Deus) continua se comunicando em plenitude.

Outros interpretam: na vida presente (agora portanto) a fé, a esperança e o amor permanecem as únicas realidades que, afinal, merecem ser levadas em conta. A tradição cristã chama estas três virtudes de “virtudes teologais”, o que não corresponde por completo já que nesse capítulo a caridade significa o amor fraterno.

O agrupamento das três virtudes aparece nas cartas de Paulo desde 1Ts 1,3 e lhe é, sem dúvida, anterior. Paulo tem o costume de agradecer por estas três virtudes, principalmente no início das suas cartas, mas também em outras ocasiões e com alterações na ordem (1Ts 1,3; 5,8; 1Cor 13,7.13; Gl 5,5s; Rm 5,15; 12,6-12; Cl 1,4-5; Ef 1,15-18; 4,2-5; 1Tm 6,11; Tt 2,2; cf. Hb 6,10-12; 10,22-2224; 1Pd 1,3-9.21s). Além disso, encontram-se juntos fé e amor (1Ts 3,6; 2Ts 1,3; Fm 5), constância e fé (2Ts 1,4), caridade e constância e fé (2Ts 3,5; cf. 2Cor 13,13). A centralidade do amor na vida cristã se expressa em diversos textos bíblicos (cf. Mc 12,28-34; Jo 3,16; Rm 13,8-10; 1Jo 4,8.16)

A Bíblia de Jerusalém (p. 2164s) comenta o amor cristão (em grego: agápe):

À diferença do amor passional e egoísta, a caridade (agápe) é um amor de dileção, que quer o bem do próximo. A sua fonte está em Deus, que amou primeiro (1Jo 4,19) e entregou seu Filho para reconciliar consigo os pecadores (Rm 5,8; 8,32-39; 2Cor 5,18-21; Ef 2,4-7; cf. Jo 3,16s; 1Jo 4,9-10), tornando-os seus eleitos (Ef 1,4) e seus filhos (1Jo 3,1). Atribuído primeiramente a Deus (o Pai, Rm 5,5; 8,39; 2Cor 13,11.13; Fl 2,1; 2Ts 2,16; cf. 1Jo 2,15), esse amor, que é a natureza mesma de Deus (1Jo 4,7s. 16), encontra-se ao mesmo título, no filho (Rm 8,35.37.39; 2Cor 5,14; Ef 3,19; 1Tm 1,14; 2Tm 1,13), que ama o Pai como é amado pelo Pai (Ef 1,6; Cl 1,13; cf. Jo 3,35; 10,17; 14,31), compartilha o amor do Pai pelos homens (Jo 13,1.34; 14,21; 15,9), homens pelos quais ele se entregou (2Cor 5,14s ;Gl 2,20; Ef 5,2.25; 1Tm 1,14s; cf. Jo 15,13; 1Jo 3,16; Ap 1,5). Agápe também é o amor do Espírito Santo (Rm 15,30; Cl 1,8), que o derrama nos corações dos cristãos (Rm 5,5; cf. Gl 5,22), dando-lhes cumprir (cf. Rm 8,4) o preceito essencial da Lei, que é o amor de Deus e do próximo (Mt 22,37-40p; Rm 13,8-10; Gl 5,14), pois o amor dos irmãos, e até dos inimigos (Mt 5,43-48p), é a consequência necessária e a genuína prova de amor a Deus (1Jo 3,17; 4,20s); é o mandamento novo que Jesus deixou (Jo 13,34s; 15,12.17; 1Jo 3,23, etc.) e que os seus discípulos não cessam de incutir (Rm 13,8; Gl 5,13s; Ef 1,15; Fl 2,2s; Cl 1,4; 1Ts 3,12; 2Ts 1,13; Fm 5,7; cf. Tg 2,8; 1Pd 1,22; 2,17; 4,8; 1Jo 2,10; 3,10s. 14, etc.). Esse amor, baseado na sinceridade e na humildade, no esquecimento e no dom de si (Rm 12,9s; 1Cor 13,4-7; 2Cor 6,6; Fl 2,2s), no serviço (Gl 5,13; cf. Hb 6,10) e no mútuo sustento (Ef 4,2; cf. Rm 14,15; 2Cor 2,7s), deve-se provar por atos (2Cor 8,8-11. 24; cf. 1Jo 3,18) e observar os mandamentos do Senhor (Jo 14,15; 1Jo 5,2s, etc.), tornando a fé efetiva (Gl 5,6; cf. Hb 10,24). Tal é o vínculo da perfeição (Cl 3,14; cf. 2Pd 1,7) e “cobre os pecadores” (1Pd 4,8; cf. Lc 7,47). Apoiando-se no amor de Deus, o agápe nada teme (Rm 8,28-39; cf. 1Jo 4,17s). Exercendo-se na verdade (Ef 4,15; cf. 2Ts 2,10), ele dá o genuíno sentido à vida moral (Fl 1,9s) e abre o homem ao conhecimento espiritual do mistério de Deus (Cl 2,2; cf. 1Jo 4,7) e do amor de Cristo, que ultrapassa todo entendimento (Ef 3,17-19; cf. 1Cor 8,1-3; 13,8-12). Fazendo habitar na pessoa Cristo (Ef 3,17) e toda a Trindade (2Cor 13,13; cf. Jo 14,15-23; 1Jo 4,12), esse amor alimenta uma vida de virtudes teologias (cf. Rm 1,16; 5,2), das quais a caridade (agápe) é a rainha (1Cor 13,13), pois ele nunca passará (1Cor 13,8), mas se expandirá na visão (1Cor 13,12; cf. 1Jo 3,2), quando Deus concederá aos seus eleitos os bens que ele prometeu aos que o amam (1Cor 2,9; Rm 8,28; Ef 6,24; 2Tm 4,8; cf. Tg 1,12; 2,5).

 

Evangelho: Lc 4,21-30

Ouvimos hoje a continuação do evangelho do domingo passado, a visita de Jesus na sinagoga de Nazaré que, em Lc, representa a primeira pregação e o programa do messias (cf. 4,14-21).

Hoje ouvimos também a reação negativa do público que já estava descrita no evangelho mais velho de Mc 6,1-6, que Lc especificou destacando que a missão do messias não se restringe apenas aos judeus, mas alcança os pagãos (todos os povos; cf. o segundo volume de Lc, os Atos dos Apóstolos).

(Naquele tempo, entrando Jesus na sinagoga disse:) “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” (v. 21).

Como introdução, nossa liturgia de hoje repete a frase que finalizou o evangelho do domingo passado. Jesus fez a leitura na sinagoga e aplicou estas palavras de Is 61,1s a si mesmo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres…” (4,18s)

A todos quantos tinha “os olhos fixos nele” (v. 20), Jesus declara-se messias (cf. 22,67-71p), porque a palavra messias (em grego: Cristo) quer dizer “ungido”. O messias é o rei ungido, descendente de Davi (1,32; 2,4.11.26) e prometido ao povo sofrido dos judeus há muito tempo (cf. 2Sm 7; Is 7,14; 9,1-6; 11,1-9 etc.). “Hoje” é palavra chave para salvação em Lc (2,10; 4,21; 5,26; 19,5.9; 23,43; cf. 19,47; Mc 1,15).

Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca. E diziam: “Não é este o filho de José?” (v. 22).

Depois da parte positiva do programa do messias, Lc passa narrar como a admiração dos nazarenos se transforma em rejeição. Isto já foi relatado em Mc 6,1-6, mas Lc amplia e agrava esse relato. Começa pela dúvida sobre sua família, mas em Lc os nazarenos só perguntam sobre o pai (cf. Jo 6,46), não falam da mãe, dos irmãos e das irmãs de Jesus (cf. Mc 6,3; Lc os menciona em 8,19-21p).

Em Mc 6,3, a pergunta é: “Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, irmãos de Tiago…?” Mc nem menciona José no seu evangelho. Podemos concluir que José já estava morto, porque Jesus foi identificado como filho de Maria. Lc substitui o carpinteiro pelo nome do pai José (também Mt 13,55 modificou: “Não é ele o filho do carpinteiro? Não se chama a mãe dele Maria e seus irmãos Tiago…?”). Talvez Lc não queira pairar dúvidas sobre Maria e menciona o pai José em vez do carpinteiro para dizer: Jesus é apenas o filho de um homem comum como nós? Para o leitor de Lc, as dúvidas sobre o verdadeiro Pai de Jesus já foram esclarecidas (cf. 1,34s; 2,48-50)

Estranho que Lc comunicou tantos detalhes da infância de Jesus, mas não menciona em nenhum lugar a profissão de carpinteiro que José e Jesus exerciam (cf. Mc 6,3; Mt 13,55); o motivo não pode ser desprezo de trabalhos manuais, porque Lc não escondeu a pobreza da família de Nazaré (2,7.24) nem a profissão simples dos apóstolos (5,3; At 18,3). Lc se mostra solidário com os humildes, aliás, tem forte consciência social. Mas talvez houvesse pessoas preconceituosas entre seus leitores mais eruditos (cf. 1,3: “excelentíssimo Teófilo”) a quem Lc queria convencer, aos poucos, que um homem simples, sem formação acadêmica, pode ser o salvador (vencendo um preconceito semelhante daquele que os próprios nazarenos tinham; cf. Jo 1,46).

Jesus, porém, disse: “Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Faze também aqui, em tua terra, tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum.” E acrescentou: “Em verdade eu vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria (vv. 23-24).

De Mc, Lc copia a frase sobre o profeta que não é reconhecido na sua pátria (mas omite “na sua família”, cf. Mc 6,4) e a referência às curas em Cafarnaum (Mc 6,2), mas estas curas serão narradas só em seguida em 4,31-44 (cf. Mc 1,21-39).

A palavra do “médico” pode ter vários significados: “estás doente, começa curar a ti mesmo, pois precisas”, ou “não queremos teus serviços”, ou “prova que é capaz” ou “cura a ti mesmo e os teus (conterrâneos) para que sejas acreditado” (cf. a cena com o messias na cruz em 23,35.39). Talvez essa frase particular de Lc (cf. 5,31p) tenha indicado a possível autoria do evangelho, “Lucas, o querido médico” (Cl 1,14; cf. Fm 24; 2Tm 4,11).

De fato, eu vos digo: no tempo do profeta Elias, quando não choveu durante três anos e seis meses e houve grande fome em toda a região, havia muitas viúvas em Israel. No entanto, a nenhuma delas foi enviado Elias, senão a uma viúva que vivia em Sarepta, na Sidônia. E no tempo do profeta Eliseu, havia muitos leprosos em Israel. Contudo, nenhum deles foi curado, mas sim Naamã, o sírio” (vv. 25-27).

Jesus cita os profetas Elias e Eliseu e seu serviço excepcional aos pagãos (1Rs 17,1-7; 2Rs 5,1-27) como exemplos: um homem de Deus pode ser enviado para fazer maravilhas não para os seus conterrâneos, mas para pessoas estranhas e pagãs superando preconceitos (cf. 7,1-17; 8,26-39p; 10,29-37; 17,11-19; At 8; 10 etc.)

Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício. Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou o seu caminho (vv. 28-30).

Enquanto em Mc 6,5s, Jesus “não podia fazer milagre ali” em Nazaré por causa da “incredulidade” dos seus conterrâneos, em Lc a cena é bem mais dramática. As dúvidas e a rejeição que se seguiam ao primeiro entusiasmo levam até a tentativa de homicídio.

Para os nazarenos em Lc, se Jesus não confirma sua pretensão com um milagre, é usurpador do título de “messias” e, portanto, um falso profeta que merece a morte (Dt 13,6). A Bíblia nada fala do atirar no abismo como forma de execução, mas a cena corresponde à situação geográfica de Nazaré. Por pouco o lugar onde começou a vida de Jesus (com a gravidez de Maria) se torna o lugar de sua morte. Mas Jesus, “passando no meio deles” (pode ser uma alusão à páscoa, cf. Ex 12,11s.27; 14; Jo 13,1), “continuou seu caminho” para Jerusalém (9,51-19,28 parte central de Lc; cf. Lc 24,15 no caminho a Emaús).

No evangelho de hoje, Lc antecipa os fatos numa composição dramática. Reúne nesta única narração na sinagoga de Nazaré sua admiração pelos costumes judaicos (Escritura do AT, sinagoga), o programa do messias (anunciado em Is 61,1 e identificado com Jesus), a recusa por boa parte de Israel que leva a morte e ressurreição de Jesus e a pregação da salvação aos pagãos que os apóstolos realizarão (cf. At 28,25-28, conclusão da obra dupla de Lc).

O site da CNBB comenta: Jesus é o ungido do Pai que veio até nós com a missão de evangelizar os pobres, ou seja, de tornar membro do Reino dos Céus todos os que colocam a sua esperança no Senhor. A sua vida terrena não foi outra coisa senão o pleno cumprimento dessa missão. Ele anunciou a liberdade dos filhos de Deus e a libertação dos cativos do pecado e da morte, curou os cegos, de modo que todos podem enxergar além do mero horizonte da realidade natural, lutou contra todo tipo de injustiça que é causa de opressão e anunciou a presença do Reino da graça e da verdade. Assim, Jesus também nos mostra o que é necessário para que a Igreja, o seu Corpo Místico, seja fiel à sua missão de continuadora da sua obra. 

 

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