03 de janeiro de 2017 – Terça-feira

Leitura: 1Jo 2,29-3,6

Ao autor da primeira carta de João preocupam os critérios para discernir: “nisto conhecemos,… sabemos que,… consta-nos,…”. Como um cristão autêntico é reconhecido? Ele cumpre os mandamentos (2,3-5; 3,24), não peca, mas pratica a justiça (2,29; 3,10), ama o irmão (3,10.19; 4,6.7.9.12), confessa Jesus como Messias/Cristo (4,2) e possui o Espírito (2,27; 4,13).

Já que sabeis que ele é justo, sabei também que todo aquele que pratica a justiça nasceu dele (2,29).

Como Deus é justo (1, 9; 3,7), quem pratica justiça “nasceu dele”, então é filho dele. V. 29 introduz o próximo capítulo sobre os “filhos de Deus” e os “filhos do diabo” (3,1-10); esse dualismo (contraposição) é típico dos escritos joaninos (cf. luz e trevas, Deus e o mundo, Cristo e Anticristo, verdade e mentira etc.).

Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos! Se o mundo não nos conhece, é porque não conheceu o Pai (3,1).

Para os primeiros cristãos, a fé em Cristo era uma coisa tal nova e transformadora igual a uma nova criação (cf. 2Cor 5,17) ou uma geração pelo próprio Deus (Jo 1,12-13; 3,6). Esta filiação é dom, “grande presente de amor”.

No projeto inicial da criação (Gn 1,28), a fecundidade é fruto do amor conjugal, assim a nossa filiação brota do “amor” de Deus (3,1). O mundo é incapaz de descobrir, em Deus, o Pai que em seu Filho nos revela seu “amor” (4,8-9), tampouco pode conhecer os cristãos na sua condição de filhos de Deus (cf. Jo 15,21; 16,3; 17,25).

No AT, Deus é Pai do povo inteiro e do rei que o representa (cf. Ex 4,23; Sl 2,7). No NT, paternidade/filiação é uma revelação central (Jo 1,12; Rm 8,14-17): o filho se assemelha naturalmente a seu pai (Gn 5,3) e pode também parecer quando imita sua conduta.

Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é (3,2).

Em v. 2 temos a tensão escatológica, ou seja, entre “já é“ e “ainda não”, “o que será”. Na segunda vinda (manifestação, parusia) de Cristo, o olhar (a visão) nos transformará (cf. Sl 34,6): “o veremos tal como ele é” (na sua natureza verdadeira e divina).

Todo o que espera nele, purifica-se a si mesmo, como também ele é puro (3,3).

Quem crê em Jesus, espera pela sua segunda vinda. Por sua filiação batismal, o cristão já se parece com Deus, seu Pai, mas deve esforçar-se por afirmar a sua semelhança: deve ser “puro” e “justo” como Ele (2,29; 3,3.7).

Todo o que comete pecado, comete também a iniqüidade, porque o pecado é a iniquidade (3,4).

Um filho de Deus, por natureza, não peca nem pode pecar. Como se explica que os cristãos, filhos de Deus, pequem de fato? Porque “ainda não” está consumada sua natureza nem acabada a sua semelhança (3,2). O pecado contra o qual Jo previne é dos anticristos, é a incredulidade, na qual se manifesta a “iniquidade” do mundo submetido ao império do diabo (3,3-8.10; 5,19; cf. Mt 7,23; 13,41; 24,12; 2Ts 2,3.7).

Vós sabeis que ele se manifestou para tirar os pecados e que nele não há pecado. Todo aquele que peca mostra que não o viu, nem o conheceu (3,5-6).

Na primeira vinda (manifestação), o Cristo veio para “tirar os pecados” (cf. Jo 1,29), pois “nele não há pecado” (cf. Hb 4,15; 7,26; 9,26-28). O pecado é treva; quem peca, está nas trevas e não vê a luz, ou seja, Deus. Em Deus, não há trevas nem injustiça nem pecado (cf. 1,5-7).

João distingue duas etapas na condição filial: o estágio inicial, realizado desde o começo da vida cristã (Jo 1,12; 3,5; cf. 2Cor 3,18) e sua realização final (escatológica) na perfeita semelhança com o Filho de Deus (cf. Cl 3,3-4). No dia de Todos os Santos, esta mesma leitura pode nos inspirar para aprofundar a “vocação universal à santidade” (Vaticano II: LG 39-42).

 

Evangelho: Jo 1,29-34

Depois de esclarecer sobre sua própria função (missão) diante das autoridades (vv. 19-28), João Batista dá testemunho sobre Jesus diante de um público não definido. Começa um ciclo de anotações cronológicas de uma semana que se concluirá no casamento de Caná (vv. 29.35.42; 2,1).

João viu Jesus aproximar-se dele e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo (v. 29).

O quarto evangelho não narra o batismo de Jesus diretamente como os sinóticos (Mc, Mt, Lc), mas através do testemunho de um terceiro: Só João Batista vê o Espírito e ouve a voz (vv. 33-34; dif. Mc 1,10: só Jesus o viu) e já antecipa aqui a interpretação da missão do messias. Enquanto no evangelho mais velho, em Mc, a identidade messiânica e a morte de Jesus na cruz estão cercadas de segredos, no evangelho mais novo, em Jo, a primeira palavra sobre Jesus (fora do hino: vv. 1-18 não falam da morte, só da carne em v. 14) é sobre sua missão redentora: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (vv. 29; cf. v.36 e 1 Jo 3,5).

A frase evoca a morte expiatória de Jesus misturando duas imagens tradicionais: por um lado, a do “servo sofredor” de Javé que assume os pecados da multidão (do mundo) e que, inocente, se oferece “como cordeiro” para carregar os pecados do povo (Is 53,7.11s), e por outro lado, a do “cordeiro pascal”, símbolo de libertação do povo hebreu (Ex 12,1-28). Será título emblemático de Jesus (cf. 1Cor 5,7; 1Pd 1,18-19; Ap 5,6-12). No evangelho de João, Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, sacrificado na cruz na exata hora quando os sacerdotes imolavam milhares de cordeiros no templo para refeição pascal (cf. 19,14.34.36). Aliás, na língua aramaica, “servo” e “cordeiro” parecem ser a mesma palavra. Pode-se pensar ainda no bode que tira os pecados do povo no dia da expiação (Yom kippur; Lv 16,20-22).

Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim. Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel” (vv. 30-31).

Em v. 30, João afirma a prioridade de Jesus: apesar de nascer e “vir depois de mim, ele existia antes de mim” (pré-existência e origem divina, cf. 1,1.14-15). O quarto evangelho não apresenta o Batista como grande pregador da conversão dos pecados, mas como testemunha qualificada.

E João deu testemunho, dizendo: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo. Eu vi e dou testemunho: Este é o Filho de Deus!” (vv. 32-34).

João batizava só com água (sinal de conversão e purificação), mas não com o Espírito Santo. Só o Messias (Cristo), o Filho de Deus (vv. 34.41.49) tem o Espírito (cf. Is 11,2; 42,1; 61,1). Ele pode transmiti-lo, mas só após sua ressurreição (cf. 7,39; 14,26; 16,7-8; 20,22; Lc 24,49; At 1,5; 2; Rm 5,5). O Espírito desce sobre Jesus “como pomba” (cf. Mc 1,9-10p). Em grego (pneuma) e hebraico (ruah), Espírito é a mesma palavra do que “ar, vento” (cf. Gn 1,2); um pássaro é um símbolo propício. A pomba é símbolo tradicional de paz (cf. Mt 10,16), amor (Ct 2,14) e nova vida após a purificação dos pecados através do dilúvio (Gn 8,8-12); ela combina com o nome do messias, “príncipe da paz” (Is 9,5), e a conduta do “servo de Javé” (Is 42,1-3; 50,5s; 53) que não usa violência, mas sofre para pagar os pecados do povo. A pomba também é animal para sacrifícios (cf. Lv 1,14; Lc 2,34).

Só o quarto evangelho salienta que o Espírito “permanece” sobre Jesus (vv. 32-33); esta palavra indica a preocupação do evangelista diante da crise na comunidade e atual ainda hoje: Muitos foram batizados e crismados, mas “não permaneceram” na comunidade (cf. Jo 8,31; 15,4-7.9-10.16; 1Jo 2,19; 2Jo 9).

O site da CNBB comenta: João Batista é o único profeta que profetizou o Messias, manifestou a sua presença no meio dos homens e falou sobre a sua missão de tirar o pecado do mundo. É ele quem batiza o autor do próprio batismo e presencia a vinda do Espírito Santo sobre Jesus. Por fim, o evangelho conclui com o testemunho maior de João Batista a respeito de Jesus: “Este é o Filho de Deus”. A vida e a missão de João Batista só podem ser entendidas tendo como centro o Messias, nos mostrando a centralidade que Jesus deve ter nas nossas vidas e no nosso trabalho evangelizador.

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