04 de outubro de 2017 – Quarta-feira, 26ª semana

Leitura: Ne 2,1-8

As leituras de hoje e amanhã são do livro de Neemias que continua a narrativa do livro de Esdras sobre a situação dos judeus que os reis da Pérsia deixaram voltar depois do exílio babilônico. Os dois livros surgiram originalmente como um só para descrever, em narrativa bastante tendenciosa, a reconstrução de Judá durante o período da dominação persa. Só na tradução latina (Vulgata, por S. Jerônimo) os dois livros foram separados, e esta divisão entrou nas manuscritos hebraicos a partir do séc. XV. A tradução grega (LXX) mantinha a unidade (1 Esd e 2 Esd).

Desde o decreto de Ciro (538 a.C.) até a conquista de Alexandre Magno (331), Judá é uma pequena província que pertence ao maior império até então construído no antigo Oriente Médio. Em 445-443 acontece a primeira missão de Neemias com o objetivo de construir a muralha em Jerusalém, porque “os sobreviventes do cativeiro que estão lá na província, vivem em grande miséria e humilhação” (1,3).  Nossa liturgia omitiu o cap. 1 com a oração de Neemias inspirada no Dt.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 493) comenta o Começo das Memórias do governador Neemias:

A maior parte do livro que leva seu nome são trechos de outro realmente escrito por ele e que pode ser um relatório oficial ou livro de memórias preservado em Jerusalém (cf. Eclo 49,13). Por isso, a narrativa quase toda está na primeira pessoa do singular.

Iniciando o relato, Neemias lembra sua trajetória política. Sendo alto funcionário, tinha acesso fácil ao rei da Pérsia devido ao cargo de confiança. Do rei recebe a missão de governar a província persa de Judá. Ainda que ele mesmo dê sentido espiritual à sua missão, Neemias tem os mesmos interesses políticos dos repatriados: fazer de Jerusalém o centro político-religioso da província de Judá. Desde o início do exílio, Jerusalém tinha perdido, para o antigo santuário de Masfa, a condição de capital (cf. 2Rs 25,23). Necessitavam de uma pessoa politicamente forte que conseguisse autorização real para a reconstrução das muralhas e o repovoamento da cidade, duas condições necessárias para os repatriados triunfarem sobre os povos da terra. Neemias parte para a missão com o apoio político e financeiro do império persa.

Era o mês de Nisã, no vigésimo ano do rei Artaxerxes (v. 1a)

O rei persa Artaxerxes I (465–423 a.C.) seguiu a Xerxes I (o Assuero do livro de Ester) que tinha tomado Atenas, mas foi derrotado pelos gregos na batalha naval de Salamina (480 a.C.).

“Nisã” é o primeiro mês do ano, segundo o calendário babilônico. Mas como se trata de “vigésimo ano” do rei da Pérsia (445 a.C.) e o mês de Casleu (Kislev) já é mencionado no mesmo ano (1,1), é possível que ainda se tenha utilizado o antigo calendário judaico. Neste caso, o ano iniciava no outono e o mês de nisã vinha depois (e não antes) do mês de Casleu.

Como o vinho estivesse diante do rei, eu peguei no vinho e ofereci-o ao rei. Como em sua presença eu nunca podia estar triste, o rei disse-me: ”Por que estás com a fisionomia triste? Não estás doente. Isso só pode ser tristeza do coração”. Fiquei muito apreensivo e disse ao rei: ”Que o rei viva para sempre! Como o meu rosto poderia não estar triste, quando está em ruínas a cidade onde estão os túmulos de meus pais e suas portas foram consumidas pelo fogo?” E o rei disse-me: “O que desejas?” Então, fazendo uma oração ao Deus do céu, 5eu disse ao rei: ”Se for do agrado do rei e se o teu servo achar graça diante de ti, deixa-me ir para a Judéia, à cidade onde se encontram os túmulos de meus pais, a fim de que possa reconstruí-la” (vv. 1b-4).

A versão grega tem: “o vinho estava na minha frente”, ou seja: o turno era de Neemias, cabendo a ele executar a função de “copeiro do rei”, então um cargo de confiança (alguns manuscritos gregos tem em 1,11 “eunuco” em vez de “copeiro”, mas isso pode ser equívoco, pois os dois termos gregos são semelhantes).

A Bíblia do Peregrino comenta: O medo de Neemias se explica por seu cargo em geral e pelo caráter de Artaxerxes em particular. Um cargo de confiança dependia do favor pessoal do monarca: o favorito podia de um momento a outro cair em desgraça e até perder a vida (como na história de José). Os historiadores antigos pintam Artaxerxes como rei imprevisível e volúvel. Neemias se apresentava ao banquete violando uma regra do protocolo real. Recorde-se que Daniel e seus companheiros deviam ter bom aspecto para apresentar-se ao serviço do rei (Dn 1,10).

A cena supõe relações bastante familiares do súdito com o soberano. A primeira frase do rei poderia ser interpretada como demonstração de interesse ou como reprovação. Pelo tom, Neemias deve ter percebido a reprovação, que provocou o susto. Na sua resposta não menciona a muralha: por cautela? Também se omite o nome da cidade, substituído por uma relação afetiva.

O rei, junto de quem a rainha se sentara, perguntou-me: ”Quanto tempo vai durar a tua viagem e quando estarás de volta?” Eu indiquei-lhe a data do regresso e ele autorizou-me a partir (vv. 4-6).

“O rei, junto de quem a rainha se sentara”; o termo utilizado no texto hebraico designa a primeira das mulheres do harém (conjunto de esposas do rei oriental) e não é a palavra habitual para designar a rainha.

“Quanto tempo vai durar tua viagem?” Não se dá nenhuma indicação deste prazo. A primeira estada de Neemias em Jerusalém foi de 545 a 533, então 12 anos (cf. 5,14 e 13,6).

 Eu disse ainda ao rei: ”Se parecer bem ao rei, sejam-me dadas cartas para os governadores de além do rio, para que me deixem passar, até que chegue à Judéia (v. 7).

As cartas os governadores deviam ser algo mais que simples salvo-conduto; mas não contém nomeação alguma (virá mais tarde). “Além rio” é a Transeufratênia (cf. Esd 4,10), nome oficial da província situada a oeste do rio Eufrates abrangendo a Síria e Palestina

E também outra carta para Asaf, guarda da floresta do rei, para que me forneça madeira de construção para as portas (da cidadela do templo), para as muralhas da cidade, e para a casa em que vou morar”. E o rei concedeu-me tudo, pois a bondosa mão de Deus me protegia (v. 8).

“Guarda da floresta do rei” ou: do “parque”. O termo, de origem persa, resultou no termo “paraíso”, em português.

“Madeira de construção”; não se trata de madeira de lei, geralmente importada do Líbano.

Pode se traduzir “as portas da cidadela próxima a Casa” isto é a Casa do Senhor, o Templo de Jerusalém. Os parênteses parecem acréscimos, pois o que interessava eram os portões da cidade. Aqui Neemias menciona a “muralha”.

A missão de Neemias, à primeira vista, é apenas a reconstrução da muralha que dará segurança à cidade e tornará possível uma organização do grupo judaico. Além disso, o livro deixa claro que a missão de Neemias tinha objetivo político e social: reunir os judeus e dar-lhes uma organização centralizada em Jerusalém. Mas esta missão em favor dos repatriados (chamados de “judeus” a partir de 2,16) enfrentará intrigas e hostilidades pelos remanescentes (“povo da terra”) e vizinhos (samaritanos, amonitas, árabes).

A Bíblia de Jerusalém (p. 701) comenta:

A preocupação de reconstruir as muralhas de Jerusalém surge durante o Exílio (Is 54,11-12) e depois (Is 60,10-17; Zc 2,5s). A iniciativa data provavelmente do tempo de Xerxes (Esd 4,6), e é claramente atestada no tempo de Artaxerxes (Esd 4,12-13.16). Isso foi considerado como uma reivindicação de autonomia, que poderia prejudicar os direitos adquiridos de Samaria. Daí a oposição samaritana, que conseguiu do governo persa o decreto que embargava incontinenti a construção (Esd 4,23).

Animados pelos profetas Ageu e Zacarias, os judeus reconstruíram o templo em Jerusalém que foi inaugurado em 515 a.C. (cf. Esd 6,14-20). Entre 445 a 433, com o esforço de Neemias, a muralha da cidade foi completada (cf. Ne 6,15; 7,1-3; 12,27-43). Em 423-404, os samaritanos constroem um templo no monte Garizim.

Evangelho: Lc 9,57-62

De 9,51 a 18,13, Lc se afasta do roteiro de Mc e junta material da fonte Q e material próprio numa viagem de Jesus a Jerusalém que se estende por quase dez capítulos e pode ser considerada a peça central do terceiro evangelho.

O evangelho de hoje tem seu paralelo em Mt 8,19-22, é da fonte Q (comum com Mt), mas Lc acrescentou a terceira cena. A Bíblia do Peregrino (p. 2489) comenta o evangelho de hoje: Três cenas de seguimento ilustra o começo da marcha de Jesus. São personagens anônimas, típicas. A primeira e a terceira tomam a iniciativa sem serem chamadas, a segunda é Jesus quem a chama. Nos três casos, é decisiva a prontidão, o desprendimento de outros vínculos, a disposição de enfrentar o desconforto. Tudo isso dominado pelo desejo de seguir em companhia do Senhor.

Não se deve iludir, pois o seguimento de Jesus é exigente. As respostas de Jesus são radicais. Ao primeiro, Jesus enfrenta com a dificuldade de não ter lar; ao segundo, Jesus não lhe permite distrair-se. Ao terceiro recomenda a mesma atitude firme de seguir em frente que caracteriza o início da subida a Jerusalém (9,51).

Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores.” Jesus lhe respondeu: “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (vv. 57-58).

Os rabinos (mestres judaicos) costumavam acolher discípulos em suas casas que funcionavam como escolas. Mas Jesus é pregador itinerante (4,43p). Diversamente de Mc e Mt, Lc nunca mostrou Jesus em casa que seja própria dele ou de seu grupo (cf. 5,29p). Jesus se aparece com o patriarca Jacó na paisagem pedregosa de Betel: “pegou uma pedra do lugar, colocou-a como travesseiro e deitou-se naquele lugar” (Gn 28,11). Pr 27,8 compara o “vagabundo longe do lar” com o “pássaro que fugiu do ninho”. O salmo da criação canta, entre outras coisas, as habitações de aves e animais (Sl 104,12.17s, sobre as raposas cf. Sl 63,11; Ez 13,4). No decorrer da viagem, Ben Sirac considera desonroso e desgraçado viver de esmola (Eclo 40,28-30).

Seguir Jesus é caminhar sem pátria nem lar. Jesus fala sobre os pássaros e os lírios que o Pai celeste alimenta e veste (12,22-31; cf. Mt 6,25-34). Assim deve ser a pobreza quotidiana do pregador itinerante, do discípulo missionário cuja primeira preocupação não é alimento nem vestimenta, mas “o reino de Deus e essas coisas vos serão acrescentadas” (12,31).

Nem um lar o Filho do homem tem! O termo “Filho do homem” pode significar simplesmente “ser humano” (em hebraico: “filho de Adão”; cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.), assim Jesus queria dizer: “Até os animais tem tocas e ninhos, mas eu, como ser humano, não tenho residência fixa.” Mais provável, porém, é o significado apocalíptico que vem de Dn 7,13s, onde um ancião (Deus) entrega o reino de Deus a um “Filho do Homem que vem nas nuvens” e “cujo reino não terá fim” (citado no anúncio a Maria, cf. Lc 1,32s); ele contrasta com as bestas-feras dos reinos pagãos. Em Dn 7,29, o Filho do Homem é identificado com o “povo dos santos”. Em alguns círculos judaicos (ex. o autor do Apocalipse de Henoc), este Filho do Homem foi identificado como indivíduo: o Messias que virá e julgará o mundo no final dos tempos (cf. Mc 2,28p; 8,38p; 9,9p; 13,25p; 14,62p; Lc 11,30p; 12,8.40p; 17,22-30p; 18,8; 19,10; 21,27p.36; Mt 13,41; 25,31).

Jesus não podia ser preso ao utilizar este título “filho do homem”, pela ambiguidade do significado, e aplicou-o a si mesmo com predileção, não só para indicar sua futura glória celeste, mas também para expressar sua humilhação humana (cf. anúncios da paixão: 9,22.44; 18,31p; 22,22p; 24,7; cf. Jo 3,14).

No evangelho de hoje, o discípulo não vai entender seu pleno significado (antes da Páscoa), mas para o leitor cristão de Lc (depois da Páscoa) se esclarece: O Filho do Homem, aquele que ressuscitou e voltará para julgar o mundo, tinha que viver na pobreza absoluta e sem lar. Aquele que “vem das nuvens” (21,27p; cf. 22,69p), quem é do céu, aqui na terra não tem lar. Já seu nascimento se deu no caminho, fora de casa no meio de animais, “não havia lugar na hospedaria” (Lc 2,7). O Filho de Deus se fez verdadeiro homem (Filho do homem na carne humana; cf. Jo 1,1.14; Fl 2,5-8) e mostra através da sua pobreza que seu “reino não é deste mundo” (cf. Jo 18,36).

Não se deve interpretar mal o texto e trocar a exigência da pobreza (cf. 14,33; 18,22p) pelo trabalho sem descanso (cf. Jo 5,17). Jesus viveu pobre, não estressado.

Jesus disse a outro: “Segue-me.” Este respondeu: “Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai.” Jesus respondeu: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus” (vv. 59-60).

Em Mt 8,21s, é o discípulo quem se apresenta. Em Lc, é Jesus quem toma a iniciativa de chamá-lo, como em 5,27 e Mc 1,17p; ele o envia para anunciar o reino de Deus.

O homem chamado queria “primeiro ir enterrar meu pai” e assim cumprir um dos deveres mais sagrados do judaísmo e do helenismo como se lê nos relatos patriarcais (cf. Gn 23, a única terra que o nômade Abraão adquiriu foi para enterrar sua esposa) e no livro de Tobias (Tb 2,3-8; 4,3-4; 14,10-13).

A resposta de Jesus numa forma paradoxal é chocante, como um provérbio paradoxal joga com o duplo sentido (físico e espiritual) da palavra “morto”. Quem só conta com esta vida (como os saduceus, cf. 20,27; At 23,8), recebe ao final honras fúnebres, mas Jesus vem trazer uma vida nova (cf. 5,36-39p). O que acabou, acabou (cf. Hb 8,13; Ap 21,1.5).

Jesus se posiciona em favor do mandamento “honrar pai e mãe” (18,20p; cf. Mc 7,10-13p), mas aqui fala da ruptura com a própria família, ruptura que ele mesmo realizou (8,19-21p; 11,27p) e exige dos seus seguidores (14,26). A comunidade a experimentou também após a páscoa (18,29-30p). Mas esta atitude radical combina com o amor e a piedade? Mais uma vez se trata de manifestar o contraste entre este mundo e o reino de Deus. Quem segue a Jesus, deve ser sinal do reino com suas palavras e seu estilo de vida (20,34-36; cf. Jr 16,1-9;).

Os que confiam seu horizonte a esta vida mortal que se ocupem de enterrar; eles por sua vez serão enterrados. Jesus chama a uma vida nova, ele é “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25). Se o discípulo voltar atrás para se despedir da sua família (como Elias permitiu, cf. 1Rs 19,19-21; Lc 9,61s) e participar do luto familiar, perderá a chance de acompanhar Jesus a Jerusalém e testemunhar sua morte e a ressurreição. Se o discípulo seguir sem olhar atrás agora, poderá consolar sua família (e muitos outros) depois com a mensagem da ressurreição e da vitória de Jesus sobre a morte, ou seja, “anunciar o reino de Deus” (acréscimo próprio de Lc, cf. Mt 8,22). Os mortos estão com Ele, com Ele viverão (cf. 20,38p).

Um outro ainda lhe disse: “Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares.” Jesus, porém, respondeu-lhe: “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (vv. 61-62).

Os dois primeiros diálogos se encontram também em Mt; este terceiro é próprio de Lc. Este dá aos três um sentido particular, colocando-os na perspectiva da partida de Jesus, exatamente antes do envio dos setenta e dois discípulos (10,1-16). O candidato ao discipulado o chama de “Senhor”, uma expressão de fé comum em Lc (cf. 5,8.12; 7,6 etc.; cf. At 2,36; Fl 2,11).

Estes dois versículos evocam o chamamento de Eliseu (enquanto arava) por Elias (1Rs 19,19-21); Lc já aludiu a Elias nos vv. anteriores (9,54; cf. a ressurreição do filho da viúva em 7,1-11-17 com 1Rs 17,17-24). Mas Jesus é mais importante e mais exigente que Elias, que deixava o seu discípulo despedir-se dos seus. Quem ara, segura com a mão a rabiça, olha para frente para traçar um sulco reto. Olhar para trás foi a fatalidade da mulher de Ló (Gn 19,26).

“Não está apto para o Reino de Deus”, para entrar nele (cf. 18,24-25p) ou para anunciar o “Reino de Deus” como no v. 60 (cf. 4,43; 8,1; 9,2.11; 16,6).

O site da CNBB comenta: Seguir Jesus significa muito mais do que ser um repetidor doutrinário, significa ser capaz de assumir o seu Projeto como algo próprio, ser capaz de olhar para o futuro e visualizar o Reino de Deus, fundamentar a própria existência nesse Reino, fazer da esperança da sua realização o motor propulsor da própria vida e entregar-se de corpo e alma, com tudo o que se é e que se tem na luta em prol da plena realização desse Projeto, renunciando a todas as conquistas humanas obtidas e a todas as formas de segurança que este mundo pode oferecer. É ser totalmente livre de todos os apegos deste mundo para amar a Deus de forma total e exclusiva e fazer desse amor a grande motivação da construção do Reino e a causa da própria felicidade.

 

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