05 de fevereiro de 2017 – 5º Domingo Ano A

1ª Leitura: Is 58,7-10

A 1ª leitura foi escolhida porque apresenta algumas obras de misericórdia (cf. Mt 25,31-46) que trazem a luz da qual o evangelho de hoje também fala: “Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras” (Mt 5,16).

O texto desta leitura são apenas três versículos de um exortação mais longa (Is 58,1-12) do Terceiro Isaias (Trito-Isaías, caps. 56-66), um profeta (ou grupo anônimo) na época da volta do exílio (cerca de 530 a.C.). O templo em Jerusalém estava sendo reconstruído, mas o culto devia que ser acompanhado pela justiça e pela misericórdia. Como em casos semelhantes (Sl 50; Is 1,10-20; Jr 7), há uma tensão entre o culto litúrgico e a justiça social. Como outros profetas (cf. Am 5,21-25), Is afirma que não são exercícios religiosos e rituais que agradam a Deus, mas a prática da justiça e da misericórdia tem sua preferência (cf. Os 6,6 citado por Mt 9,13).

(Assim diz o Senhor:) Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos. Quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne (v. 7).

Nossa liturgia fez uma modificações significativas: cortou as referências sobre o jejum hipócrita (vv. 3-5) e a primeira das obras de misericórdia apresentadas, que é “quebrar as cadeias injustas, desligar as amarras do jugo, tornar livres os que estão detidos, enfim, romper todo tipo de sujeição” (v. 6), talvez por assemelhar-se à sequência das obras da misericórdia em Mt 25,35s ou porque não é popular mencionar a situação carcerária? Mas o jejum que o Senhor prefere é “quebrar as cadeias injustas”; as quatro expressões de libertação em v. 6 demonstram como o dom da liberdade é mais bem apreciado depois da experiência do exílio (cf. Dt 15,12-15; Jr 34,8s). Nossa liturgia transformou ainda a interrogação do texto em imperativo (v. 7a).

Em vez de afligir-se a si mesmo (v. 5: jejuar, mortificar, curvar a cabeça) deve se sentir a aflição do próximo na cadeia, a miséria do pobre sem alimento, sem teto, sem roupas e partilhar com ele (cf. Mt 25,31-46).  Uns referem “a tua carne” que não se deve desprezar (v. 7d) aos próprios parentes, para outros a carne designa a fraqueza e carência comum a todos. Não se deve desprezar a condição humana, a própria saúde e a dos outros (cf. St.º Irineu: “A glória de Deus é o ser humano vivo”).

O papa Francisco disse sobre este texto (em 07.03.2014): O cristianismo é a própria “carne” de Cristo que se inclina sem se envergonhar sobre quem sofre… Jejum que se preocupa com a vida do irmão, que não se envergonha – o próprio Isaías diz isto – com a carne do irmão… O ato de santidade de hoje, nosso, aqui, no altar, não é jejum hipócrita: é não se envergonhar com a carne de Cristo que vem hoje aqui! É o mistério do Corpo e do Sangue de Cristo, É ir dividir o opção com o faminto, curar os doentes, os idosos, aqueles que não podem dar-=nos nada em troca: isso é não se envergonhar com a carne!

Então, brilhará tua luz como a aurora e tua saúde há de recuperar-se mais depressa; à frente caminhará tua justiça e a glória do Senhor te seguirá. Então invocarás o Senhor e ele te atenderá, pedirás socorro, e ele dirá: “Eis-me aqui” (vv. 8-9a).

O jejum autêntico através destas obras de misericórdia transfigura o ser humano, devolve sua saúde e quase o diviniza, “como a aurora”, o sol que amanhece (v. 8; cf. Sl 112,4). A justiça abre seu cortejo “à frente”, e a “glória do Senhor” o encerra, “seguirá”. Pela caridade generosa, o ser humano resplandece, porque revela a glória de Deus (cf. Mt 5,16; 6,19-23).

Também hoje, qualquer ato de piedade ou devoção pode esconder um não-compromisso com a vontade de Deus. Ao contrário, a sinceridade da religião se revela através da solidariedade com os oprimidos, os pobres, os doentes, os presos etc., na participação afetiva de um processo de libertação. Só assim estamos procurando a Deus e recebemos dele uma resposta benévola: “Eis me aqui” (v. 9a; 52,6; 65,1); alude ao possível significado do nome de Deus, Yhwh (Javé), em hebraico: “Eu estou aqui” (traduzido em grego: “Eu sou aquele que sou”; cf. Ex 3,14).

Na sua exortação apostólica “A alegria do Evangelho” (nº 49), Papa Francisco chama a Igreja “enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” quando não sai à procura dos pobres e outras pessoas fora dela. “Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres” (nº 48). Ele cita Tomás de Aquino: “O nosso culto a Deus com sacrifícios e com ofertas exteriores não é exercido em proveito dele, mas nosso e do próximo. Por isso a misericórdia, pela qual se socorre a miséria alheia, é o sacrifício que mais lhe agrada, porque assegura mais de perto o bem do próximo” (nº 37, rodapé 61).

Se destruíres teus instrumentos de opressão, e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa; se acolheres de coração aberto o indigente e prestares todo socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz e tua vida obscura será como o meio-dia (vv. 9b-10).

Procurar a Deus é praticar o direito e a justiça, ou seja, destruir os “instrumentos de opressão” e deixar os “hábitos autoritários e a linguagem maldosa” (v. 9b). Para quem agir com misericórdia (como o bom samaritano em Lc 10,25-37), “acolher de coração aberto o indigente e prestar socorro ao necessitado, nascerá nas trevas a tua luz…” (v. 10; cf. v. 8; 9,1; Jo 8,12), semelhante à luz que resplandecerá sobre Jerusalém (60,1-2).

 

2ª Leitura: 1Cor 2,1-5

O apóstolo Paulo continua a aplicação da sua experiência pessoal, quando chegou a Corinto e anunciou a palavra com a expressão da fraqueza humana (At 18,1-17). O seu apoio não estava na linguagem da sabedoria humana, mas na realidade do poder de Deus, que é o próprio Cristo crucificado (1Cor 1,18s.23s; Gl 6,14). Esse mistério do poder de Deus não é nenhuma mensagem secreta, e sim o plano divino para salvar toda a humanidade, realizado agora através de Jesus Cristo, pela pregação do evangelho.

Irmãos, quando fui à vossa cidade anunciar-vos o mistério de Deus, não recorri a uma linguagem elevada ou ao prestígio da sabedoria humana. Pois, entre vós, não julguei saber coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, e este, crucificado. Aliás, eu estive junto de vós, com fraqueza e receio, e muito tremor (vv. 1-3).

O tema da sabedoria continua (cf. 1,17-30), como o mostram as seis repetições da palavra grega sofia (sabedoria) em 2,1-9 para unificar variações e oposições: pode ser sabedoria de Paulo, retórica, humana, mundana, divina; pode opor-se a segredo (mistério) e a poder.

A falta de eloquência (v. 1: “linguagem elevada”) e o “tremor” (v. 3) lembram a experiência vocacional de Moisés (Ex 4,10-16) e a de Jeremias (Jr 1). A Bíblia do Peregrino (p. 2740) comenta: Paulo não baseou seu ministério em valores da cultura grega: filosofia como atividade simplesmente humana (cf. Jó 28), retórica como recurso para persuadir. Seu tema não é descoberta humana, mas segredo revelado, e se condensa numa pessoa, Jesus. Sua força persuasiva vem do Espírito.

Paulo costuma referir o “mistério (ou segredo; outra leitura: o testemunho) de Deus” ao plano de Deus para a salvação universal por meio de Jesus Cristo. Ao se proclamar o evangelho aos pagãos, o plano de Deus está se cumprindo (cf. v. 7; Rm 16,25s; Ef 3,1-13, Cl 1,24-29; 2,2s).

“Receio e tremor” é uma expressão bíblica típica (2Cor 7,15; Ef 6,5; Fl 2,12; cf. Sl 2,11s). O temor de Paulo se explica pelo empreendimento descomunal: uma mensagem estranha (Is 53,1: “inaudita”), à margem da sabedoria humana reconhecida e contra ela (cf. 1,22s).

Também a minha palavra e a minha pregação não tinham nada dos discursos persuasivos da sabedoria, mas eram uma demonstração do poder do Espírito, para que a vossa fé se baseasse no poder de Deus e não na sabedoria dos homens (vv. 4-5).

Texto gramático é difícil de traduzir, mas o sentido não padece dúvida. Paulo opõe o prestígio de uma palavra de sabedoria humana à palavra e à sabedoria que vêm de Deus (vv. 4.7).

“Uma demonstração do poder do Espírito” pode ser uma alusão aos milagres e às efusões do Espírito que acompanharam a pregação de Paulo (1,5; 2Cor 12,12). Mas a Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2207s) comenta: Nesta manifestação do Espírito, é preciso ver sem dúvida não milagres (At 18 não os menciona), mas antes a atividade do Espírito em Paulo e entre os convertidos de Corinto (cf. 14,25; 1Ts 1,5). Paulo rejeita os discursos de uma sabedoria humana, que seriam “persuasivos por si mesmo” (v. 4) e fariam da fé uma adesão de ordem puramente humana (v. 5). A sua pregação é realmente uma demonstração (v. 4), mas uma demonstração do poder do Espírito, vindo de Deus, e que por isso pede uma adesão de outra ordem: da ordem do Espírito.

 

Evangelho: Mt 5,13-16

Estamos ouvindo nestes domingos o primeiro discurso em Mt, o “sermão da montanha” que Jesus dirige ao povo vindo de todas as partes de Israel. Aos seus leitores judeu-cristãos, Mt quer lembrar Moisés no monte Sinai. Jesus, porém, iniciou sua mensagem não com mandamentos, mas com as bem-aventuranças para seus ouvintes pobres e aflitos (cf. vv. 1-12, evangelho do domingo passado)

Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que salgaremos? Ele não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e ser pisado pelos homens (v. 13).

O sal é o tempero principal e era valorizado tanto que servia até de moeda. A nossa palavra “salário” vem do exército romano que remunerava seus soldados em sal. O sal dá sabor e a palavra “sabedoria” vem de saborear, experimentar.

O sal não só torna alimentos saborosos (Jó 6,6), mas por ter propriedade de conservá-los (Br 6,27), acaba significando o valor duradouro de um contrato, tal como uma “aliança de sal” (Nm 18,19), pacto perpétuo (2Cr 13,5). Mt interpreta a palavra de Jesus (Lc 14,34; Mc 9,50) afirmando que o cristão deve conservar e tornar saboroso o mundo dos homens em sua aliança com Deus: senão já não serve para nada, e os discípulos mereceriam ser jogados fora (cf. Lc 14,35).

Vós sois a luz do mundo. Não pode ficar escondida uma cidade construída sobre um monte (v. 14).

A Bíblia do Peregrino (p. 2326) comenta: O sal comunica seu sabor e conserva alimentos, mas pode se desvirtuar; a luz ilumina todos, mas pode ser escondida. Assim deve ser a comunidade cristã: ativamente, não por vaidade, mas para louvor do Pai. A cidade irradiando luz do alto é como a Jerusalém que, em meio às trevas, ilumina como farol os povos, na visão do Is 60,1-3; sua luz é somente reflexo do amanhecer do Senhor.

Jerusalém é uma cidade construída num monte (Sião). Is 60,1-3 prometeu a luz do Senhor sobre ela que atrairia as nações (cf. os reis magos em Mt 2). Em 49,6, o Servo de Deus foi estabelecido a ser “luz para as nações”, termo aplicado a Jesus em Lc 2,32 e a Paulo em At 26,17s. Em Jo 8,12, o próprio Jesus declara: “Eu sou a luz do mundo”. Os membros da comunidade de Qumrã se consideravam “filhos da luz”. No batismo, os cristãos renunciam às obras das trevas para viver como filhos da luz (cf. Ef 5,8-14). O Concílio Vaticano II chamou uma das suas constituições principais “Lumen gentium” (“Luz dos povos” é Cristo; a igreja é iluminada por ele como a lua pelo sol; cf. LG 1).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2006) anota a respeito da luz: No NT, o tema da luz desenvolve-se através de três linhas principais, mais ou menos distintas.

  1. Como o sol ilumina uma estrada, também é luz tudo o que ilumina o caminho para Deus: outrora, a lei, a sabedoria e a palavra de Deus (Ecl 2,13; Pr 4,18-19; 6,23; Sl 119,105); agora, o Cristo (Jo 1,9; 9,1-39; 12,35; 1Jo 2,8-11: cf. Mt 17,2; 2Cor 4,6), comparável a nuvem luminosa do Êxodo (Jo 8,12; cf. Ex 13,21s; Sb 18,3s); finalmente todo cristão, que manifesta Deus aos olhos do mundo (Mt 5,14-16; Lc 8,16; Rm 2,19; Fl 2,15; Ap 21,24).
  2. A luz é símbolo da vida, felicidade e alegria; as trevas, símbolo de morte, desgraças e lagrimas (Jó 30,26; Is 45,7; cf. Sl 17,15); às trevas do cativeiro se opõe, portanto a luz da libertação e da salvação messiânica (Is 8,22-9,1; Mt 4,16; Lc 1,79; Rm 13,11-12), atingindo até nações pagãs (Lc 2,32; At 13,47), através de Cristo luz (Jo – cf. os textos citados acima; Ef 5,14), para se consumar no reino dos céus (Mt 8,12; 22,13; 25,30; Ap 22,5; cf. 21,3-4).
  3. O dualismo luz-trevas vem caracterizar, por isso, os dois mundos opostos do bem e do mal (cf. os textos essênios de Qumrã). No NT, aparecem os dois reinos sob os respectivos domínios de Cristo e de Satanás (2Cor 6,14-15; Cl 1,12-13; At 26,18; 1Pd 2,9), um pelejando por vencer o outro (Lc 22,53; Jo 13,27-30). Os homens se dividem em filhos da luz e filhos das trevas (Lc 16,8; 1Ts 5,4; 1Jo 1,6-7; 2,9-10), e se fazem reconhecer por suas obras (Rm 13,12-14; Ef 5,8-11). Essa divisão (julgamento) entre os homens tornou-se manifesta com a vinda da luz, obrigando cada um a se definir a favor ou contra ele (Jo 3,19-21; 7,7; 9,39; 12,46; cf. Ef 5,12-13). A perspectiva é otimista: as trevas, um dia, terão de ceder lugar à luz (Jo 1,5; 1Jo 2,8; Rm 13,12).

Ninguém acende uma lâmpada, e a coloca debaixo de uma vasilha, mas sim, num candeeiro, onde brilha para todos que estão na casa (v. 15).

Na antiguidade, o alqueire (“vasilha”) era um pequeno móvel de 3 ou 4 pés. Aqui se trata apenas de esconder a lâmpada debaixo de um móvel (Mc 4,21p acrescenta: “ou debaixo de uma cama”), e não apagá-la, cobrindo-a com um alqueire moderno (i.é., com uma medida, uma vasilha que cabe hoje 20 litros).

No Oriente e outras regiões, a casa das pessoas humildes consta de uma peça só, não há divisão de quartos. Uma lâmpada num candeeiro “brilha para todos que estão na casa”.

Assim também brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus (v. 16).

“Para que vejam as boas obras”, aquelas de que o Sermão da Montanha apresenta alguns exemplos. Realizar as obras, fazer a vontade do Pai e não só falar “Senhor, Senhor” (7,21s) é importante para Mt que enfatiza a prática, o agir ético no seu evangelho (cf. vv. 15-27; 25,32-46 etc.). O texto parece contradizer Mt 6,1-18, onde os exercícios de piedade, esmola, oração e jejum devem ficar escondidos (6,4: “tua esmola fique no segredo”) por causa da ostentação dos hipócritas que fazem as estas coisas “a fim de serem vistos pelos homens” (6,2.5; cf. 6,16). Mas aqui se faz as boas obras para que Deus seja louvado (S. Inácio: “Tudo para maior glória de Deus”).

O site da CNBB comenta: Todos nós devemos testemunhar Jesus e os valores do Reino dos céus a fim de que o mundo não se corrompa, mas descubra os caminhos da santidade, da justiça e da graça. Com isso, é de suma importância que o anúncio da Palavra seja acompanhado pela coerência de vida, pela busca da santidade e pelo seguimento de Jesus a partir da vivência dos seus mandamentos. O Papa Paulo VI nos falava sobre isso na sua Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, quando se referia à exigência da santidade em todo trabalho evangelizador. Todo trabalho evangelizador deve começar pela caridade, pelo serviço, ou seja, pela explicitação, através da vida, dos valores do Evangelho.

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