12 de Julho de 2020, 15º Domingo do Tempo Comum: A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto. Um dá cem, outro sessenta e outro trinta” (v. 23).

15º Domingo do Tempo Comum 

 1ª Leitura: Is 55,10-11

A 1ª leitura foi escolhida em vista da parábola do semeador no evangelho de hoje que compara a Palavra com a semente. Para apreciar melhor esta frase única (só dois versículos) da leitura de hoje, olhamos para o contexto. O capítulo 55 conclui a obra do Segundo Isaías (“Deutero-Isaías”: Is 40-55) que exerceu o ministério entre os judeus desterrados na Babilônia, durante a ascensão do rei persa Ciro (553-530 a.C.). Sua mensagem é consolação (“consolai”; 40,1) e esperança, porque anuncia a volta do exílio (que Ciro concederá em 538, após conquistar Babilônia em 539, cf. 2Cr 36,22s; Esd 1,1-4), como um segundo êxodo, semelhante e mais glorioso do que o primeiro.

Através do profeta no exílio, o “Senhor” (Yhwh, Javé) se declara o único Deus do universo: “Fora de mim não há Deus” (44,6; 45,5-7.14; cf. 40,12-31; 41,4 etc.). Mas o Senhor tem de vencer múltiplas resistências: a Babilônia e seus múltiplos ídolos (falsos deuses) e, pior, o cansaço do próprio povo que tem medo (41,13) e protesta (40,27), é cego e surdo (42,18-20), nostálgico (43,18), pecador (43,23s), incompreensível (45,9-11), falso e obstinado (48,1-8), julga-se totalmente abandonado (49,14). Um “servo” anônimo de Deus há de carregar a culpa desse povo, morrerá, mas triunfará (53,1-12).

O profeta tem de converter à esperança esse povo fracassado, resignado e desanimado. Para sua tarefa, o profeta dispõe só da palavra, que marca a obra inteira (v. 11; 40,8; cf. 1Pd 1,24-25), é eficaz (cf. Hb 4,12; Gn 1) como promessa de Deus. O profeta tem o título novo de “evangelista”, ou seja, “mensageiro da boa notícia” (40,9; 41,27; 44,26; 52,7).

(Isto diz o Senhor:) Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam mais, mas vêm irrigar e fecundar a terra, e fazê-la germinar e dar semente, para o plantio e para a alimentação, assim a palavra que sair de minha boca: não voltará para mim vazia; antes, realizará tudo que for de minha vontade e produzirá os efeitos que pretendi, ao enviá-la (vv. 10-11).

Neste último capítulo (55) da sua obra, Deutero-Isaías convida para o banquete de uma nova e eterna aliança com Deus (“escutai-me atentos e comereis bem”, v. 2a). A realização deste projeto atrairá os povos, porque transforma as relações sociais e assegura vida e dignidade para todos. O profeta insta os obstinados a se converter e confiar no perdão de Deus, pois sua visão ultrapassa a deles (vv. 8-9: “meus planos não são vossos planos…”) e sua palavra nunca decepciona.

A Bíblia do Peregrino (p. 1811) comenta os vv. 6-11: O arauto da boa noticia pronunciou tantas palavras, tão magníficas que chegam a ser incríveis. Serão verdade? Sim, porque o Senhor que as pronunciou, as cumprirá. O que acontece é que Deus tem outro estilo ou modo de planejar e agir (40,14s).

Entre a proximidade de Deus (v. 6) e sua distância (v. 9) é a sua palavra que media, desce do céu para realizar e revelar a salvação. É “como a chuva”, benção e dom que vem irrigar e fecundar a terra e fazê-la germinar e dar sementes para o plantio e alimentação. Seu ritmo não é de eficiência, mas de fecundidade (cf. Mc 4,26-29). A chuva põe em movimento o ciclo: alimento hoje, semente para a colheita de amanhã (cf. Sl 104,13-15; 2Cor 9,10).

A palavra de Deus é irreversível (45,23) como uma lei da natureza, “terá êxito” (53,10; Jr 29,10; cf. Jo 19,30), “não voltará para mim vazia … e produzirá os frutos que pretendi ao enviá-la” (v. 11).

Deutero-Isaias atua na mesma época quando a redação sacerdotal escreveu Gn 1,1-2,4a, o poema da criação: Deus criou tudo apenas com sua palavra (Gn 1, cf. comentário de 2ª e 3ª feira da 5ª semana comum, ano ímpar). A palavra de Deus é acontecimento, ação (falou e assim se fez; cf. Sl 33,9: “Ele diz e a coisa acontece”; cf. Sl 148,5). A palavra do Senhor é semelhante a um mensageiro que não regressa senão após haver cumprido sua missão (cf. a fé do centurião em Mt 8,9p). A palavra de Deus é personificada, como em outros livros a Sabedoria (Sb 18,14-15; cf. Sb 7,22; Pr 8) ou o Espírito (Is 11,2), e se faz ser humano (carne) em Jesus Cristo (Jo 1,1.14; cf. Jo 19,30 com Gn 2,1s).

Podemos nos perguntar ao final, quem é que faz história? Só os poderosos com todas suas máquinas de dinheiro e propaganda? Ou a palavra profética que não tem nenhuma proteção institucional, econômica, política?

2ª Leitura: Rm 8,18-23

Na 2ª leitura continuamos com o capítulo central da carta aos romanos que trata da vida no Espírito. É o Espírito que nos faz viver como filhos de Deus, herdeiros do reino (cf. vv. 14-16)

(Irmãos) Eu entendo que os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós (v. 18).

Paulo não opõe alegrias a sofrimentos, como poderia se esperar da filosofia corrente, mas opõe à “glória”, uma qualidade divina que irradia e nos atinge (cf. 3,23). Glória no sentido bíblico (cf. Ex 24,16 etc.) é a presença de Deus comunicando-se ao ser humano de modo mais íntimo, bem por excelência dos tempos messiânicos (cf. Sl 85,10; Is 40,5, etc.). “A glória que deve ser revelada em nós” (cf. 2Cor 4,17) existe desde agora no Cristo ressuscitado, e mesmo, de certa maneira, nos cristãos (2Cor 3,18) no modo do futuro (cf. 3,23; Is 40,5; Sl 85,10).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Mas ela ainda não foi manifestada. Paulo não fala somente de manifestação, mas de revelação, porque o homem não pode conceber atualmente uma ideia do esplendor dessa glória futura e porque, através dele, essa manifestação atingirá a criação inteira (vv. seguintes).

De fato, toda a criação está esperando ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus. Pois a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua livre vontade, mas por sua dependência daquele que a sujeitou; também ela espera ser libertada da escravidão da corrupção e, assim, participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus (vv. 19-21).

“A criação ficou sujeita à vaidade” (cf. Ecl 1,2). É o condição da criação após o pecado (original) do ser humano que dela se serve contra a vontade de Deus, em favor do seu egoísmo e da sua vontade de domínio. Outra interpretação fala do caráter corruptível e efêmero das realidades criadas.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2133) comenta: O mundo material, criado para o homem, participa do seu destino. Amaldiçoado por causa do pecado do homem (Gn 3,17), ele se encontra atualmente num estado de tensão: “vaidade” (v. 20), qualidade de ordem moral ligada ao pecado do homem, “servidão da corrupção” (v. 21), qualidade de ordem física. Mas como o corpo do homem, destinado à gloria, é também objeto de redenção (vv. 21.23). A filosofia grega queria libertar o espírito da matéria, considerada má; o cristianismo liberta a própria matéria. Mesma extensão da salvação ao mundo não humano (especialmente ao mundo angélico) em Cl 1,20; Ef 1,10; 2Pd 3,13; Ap 21,1-5. Com relação à nova criação, cf. 2Cor 5,17.

“Por sua dependência daquele que a sujeitou (ou “por vontade daquele que a submeteu”); isto é, provavelmente o homem por seu pecado. Ou: Deus por sua autoridade vingadora; ou ainda: Deus como criador (cf. submeter e dominar em Gn 1,28).

“Participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2186) comenta: O AT já ensinava que o universo material seria associado à glória escatológica do povo de Deus (Is 65,17; Ap 21,1). Aqui esta afirmação aparece com a consequência da glorificação do corpo do cristão (vv.17 e 23), que também é fruto da cruz e da ressurreição de Jesus (cf. Cl 1,18-20). 

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) apresenta duas hipóteses:

A interpretação desses versículos depende do significado atribuído a “ktísis”: criação ou humanidade. A tradição exegética tem optado pelo primeiro. O correlativo “nós” e o contexto sobre escravidão e liberdade, corrupção e glória, fracasso e esperança favorecem o segundo. Com outras palavras: a nós, os cristãos, se opõe o resto da humanidade; e não a nós, os homens, se opõe o resto da criação.

  1. a) Se o sujeito é a criação inteira, Paulo dá dimensão cósmica à redenção. Isso supõe que, com a queda do homem, a criação inteira (também a sideral?) ficou submetida à desordem e dela participa (o contrário da distinção proposta pelo Salmo 104); ou então supõe que a caducidade da criação (Sl 102,27) vem do pecado de Adão (seria ampliar a sugestão dos cardos de Gn 3). A libertação dessa criação escravizada estaria vinculada à doutrina do céu e de terra novos (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13).
  2. b) Se o sujeito é a humanidade inteira, fora os cristãos, Paulo formula o anseio de vida e vida plena que todo homem acalenta no íntimo… Nos Sl 96,98, em Is 35; 55,12s etc. podemos encontrar alguma participação da natureza na libertação do povo… A relação que propomos, entre a humanidade e cristãos filhos de Deus, é semelhante à de Jr 31,9s entre pagãos e Israel filho do Senhor (cf. também 1Jo 3,2) … A corrupção ou condição mortal é a última escravidão do homem (cf. 1Cor 15,26). Pois bem, os filhos de Deus são livres por natureza; enquanto tais, não nascem na escravidão. É o argumento de Deus em Ex 4,23 e Jr 2,14. Sua liberdade é gloriosa porque quem os adota lhes comunica sua glória.

Com efeito, sabemos que toda a criação, até ao tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também, que temos os primeiros frutos do Espírito, estamos interiormente gemendo, aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo (vv. 22-23).

“Sabemos” pela revelação (alusão à árvore de Gn 2,17). As “dores de parto” são consequência do pecado de Eva (Gn 3,16) e podem indicar a intensidade da dor e da angústia, outras vezes a dor fecunda (cf. Jr 4,31; 1Sm 4,19-22).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Essa expressão bíblica (Jr 13,21; Is 66,6-8; Jo 16,20-22) designa, ao mesmo tempo, um doloroso estado atual e a espera de um futuro estado glorioso. Toda esta passagem (vv. 19-22) afirma enfaticamente que o mundo material e inanimado será associado à glorificação do corpo do homem no Cristo ressuscitado. Trata-se, em Paulo, de uma afirmação da fé, que não se deve confundir com uma reflexão filosófica sobre o sentido e o devir do cosmo.

Se a corrupção é escravidão, o escravo tornado filho é resgatado para a imortalidade, que é liberdade. Também o corpo pertence à condição filial de filhos de Deus. Há “gemidos” da criação/humanidade (v. 22), do cristão (v. 23) e do Espírito (v. 26; cf. 8,15; Gl 4,6; 1Cor 2,10-13).

“Os primeiros frutos do Espírito”, a ideia das primícias implica um dom parcial e antecipado, penhor e garantia do futuro total (cf. 1Cor 15,20; Rm 11,16). A adoção “já” está adquirida (v. 15), o que “ainda não” se realizou é a plenitude de seus efeitos: a libertação e glorificação do nosso corpo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) comenta: Em ambas as hipóteses deve-se manter que os cristãos formam um grupo à parte: sua redenção está realizada, mas não consumada. Falta algo substancial à sua filiação divina: a glorificação também do corpo. Por isso também os cristãos gemem e esperam. Em ambas as hipóteses, a criação/humanidade aparece com “a cabeça voltada e à espera” (etimologia de apo-kara-dokia); com as dores de um parto que, apenas com suas forças, não teria êxito (cf. Is 26,17s; 37,3). Será necessária uma nova ação de Deus (cf. Jo 16,21; Ap 12). É possível que Paulo pense nas clássicas “dores de parto” que anunciam a era messiânica.

 

Evangelho: Mt 13,1-23 (versão breve: vv. 1-9)

Chegamos ao terceiro grande discurso de Jesus no evangelho de Mt. Depois da ética do sermão da montanha (caps. 5-7) e das recomendações para missão (cap. 10), Jesus fala sobre o reino de Deus (cf. 4,17.23; 9,35; 10,7) em várias parábolas. Este discurso, Mt já encontrou em Mc 4 e o ampliou com outras fontes (de Q, cf. Lc 13,20s.23s; talvez de outra edição de Mc, e fontes próprias). Já explicamos a parábola de Mc 4,1-9 (Tempo Comum, 3ª semana 4ª feira).

Naquele dia, Jesus saiu de casa e foi sentar-se às margens do mar da Galileia (v. 1).

Mt mudou a introdução: Jesus “saiu de casa”. A casa não foi mencionada explicitamente no final do cap. 12, quando seus familiares “ficaram fora” (12,46-50p). A cena no lago de Genesaré (“mar da Galileia”) lembra o chamado dos discípulos (4,18p) e as exigências do seguimento (8,24-27). Jesus “se senta” para ensinar (cf. vv. 1-2; 5,1; 15,29; 23,2; 24,3). Na antiguidade, o mestre ficava sentado ao ensinar.

Uma grande multidão reuniu-se em volta dele. Por isso Jesus entrou numa barca e sentou-se, enquanto a multidão ficava de pé, na praia. E disse-lhes muitas coisas em parábolas: (vv. 2-3).

Desde 12,23 as multidões estavam ausentes. Agora se reúnem de novo ao ar livre em volta dele. Jesus começa se distanciar do povo como antes de seus familiares e entra num barco (junto com os discípulos? cf. v. 10; 8,23-27). Mt evita o verbo “ensinar” (Mc 4,2), porque lembra seus leitores judeu-cristãos do ensino da lei nas sinagogas. Jesus, porém, “disse-lhes” muitas coisas em parábolas.

Nossa “Palavra” em português vem do grego Parábola. O que significa “parábola”?  Em grego: comparação, equação; em hebraico (mashal): metáfora, sentença, fábula, provérbio, enigma. Mt ainda não usou este termo e o usará só quando Jesus fala em público ao povo todo (cf. vv. 10-13.34).

As parábolas ou comparações são meio de instrução sapiencial (Sl 49,5;78,2; Eclo 39,2-3). Em Mc, a primeira parábola é quase uma metalinguagem: a palavra acerca da palavra (4,14; cf. Is 55,10-11). Mt explica que se trata da “palavra do Reino” (v. 19; cf. 4,23; 9.35; 24,14).

“O semeador saiu para semear. Enquanto semeava, algumas sementes caíram à beira do caminho, e os pássaros vieram e as comeram. Outras sementes caíram em terreno pedregoso, onde não havia muita terra. As sementes logo brotaram, porque a terra não era profunda. Mas, quando o sol apareceu, as plantas ficaram queimadas e secaram, porque não tinham raiz. Outras sementes caíram no meio dos espinhos. Os espinhos cresceram e sufocaram as plantas. Outras sementes, porém, caíram em terra boa, e produziram à base de cem, de sessenta e de trinta frutos por semente (vv. 3b-8).

Protagonista é a semente, essa pequenez prodigiosa que se deixa tomar e espalhar e imediatamente inicia sua atividade. O desenvolvimento da parábola se parece a de alguns provérbios do tipo: três mais um quarto (cf. Pr 30,15-33); são três fracassos e um êxito destacado.

Opõem-se as causas externas de fracasso vindas de fora e a extraordinária fecundidade da semente quando cai em terra boa. A parábola exprime a confiança de Jesus. Ele semeia a palavra e apesar de perdas, indiferenças e resistências, garanta-se uma boa colheita, um bom fim (cf. Jo 12,24). Por outro lado, é também um apelo aos ouvintes para acolherem bem a palavra no coração (“na terra boa”, v. 8) e a procurarem “entender” (vv. 19.23).

Para Mt, é importante refletir sobre a situação da comunidade e do indivíduo, perguntar sobre seus frutos. Existem na comunidade pessoas que nem foram atingidas pela palavra ou não a praticam (cf. 22,11-14; 24,37-25,46)? A parábola com sua explicação (vv. 18-23) quer incentivar a reflexão e a autocrítica.

Quem tem ouvidos, ouça!” (v. 9).

A frase final é um apelo necessário para perceber o alcance de um e ensinamento figurado (cf. Mc 4,9.23; 7,16; Dt 29,3; Sl 115,6). A parábola deve levar o ouvinte a refletir e, naquele momento, está a realizar-se nele.

Em Mt e Lc, esta parábola de Mc é interpretada mais em vista do crescimento da Igreja: Mt destaca a formação dos discípulos em v. 23 (quem ouve a palavra “e a entende”; seguem-se as parábolas do joio, tesouro e perola) e Lc a mensagem da misericórdia e “perseverança” (Lc 8,15: quem ouve “com coração nobre e generoso”; no contexto, depois da acolhida da pecadora e da lista das discípulas, cf. Lc 7,36-8,3).

O site da CNBB comenta: Jesus começa a ensinar por meio de parábolas. Então perguntamos: o que de fato é necessário para que possamos entender as parábolas de Jesus? Para respondermos a esta pergunta, precisamos fazer outra: Por que Jesus ensina em parábolas? Respondendo a esta pergunta entendemos o significado da ação de Jesus em ensinar em parábolas. A parábola parte de uma situação da vida para mostrar os valores do Evangelho e isso nos mostra que os valores evangélicos são para serem vividos e não simplesmente entendidos. Portanto, não é quem teoriza a fé que entende as parábolas, mas quem vive a fé. O que é necessário para entender as parábolas de Jesus? A resposta é: unir a fé à vida.

Seguindo sua fonte Mc 4, também Mt insere entre a exposição e o comentário da primeira parábola (vv. 4-9.18-23) uma reflexão sobre a função das parábolas (vv. 10-17).

Os discípulos aproximaram-se e disseram a Jesus: “Por que tu falas ao povo em parábolas?” (v. 10).

Depois da primeira parábola (do semeador), “os discípulos aproximaram-se” (estavam juntos no mesmo barco? cf. 8,23-27). Em seguida Jesus responderá sua pergunta e contará outras parábolas, mas só aos discípulos? No v. 34, “Jesus falou tudo isso às multidões em parábolas.”

Jesus respondeu: “Porque a vós foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não é dado (v. 11).

Aos discípulos caberá explicar as parábolas do mestre, entretanto seu segredo não é conquista humana, mas dom celeste (como a intuição de Pedro ao confessar Jesus como messias em 16,17; cf. os “mistérios” em 1Cor 4,1; Ef 3,3s). O tema das parábolas (e do ensinamento de Jesus, cf. 4,17.23; 5,3.10.19s; 6,10.33; 7,21; 9,35; 10,7; 12,28) é “o mistério do Reino de Deus” (Mc 4,11; cf. Sb 2,22; 6,22; Rm 16,25-27; Ef 1,9; 3,9; 6,19; Cl 1,26-27; 2,2; 4,3). Mt e Lc colocam o plural “mistérios”, Mt prefere “reino do céus” (3,2; 4,17) por causa dos seus leitores judeu-cristãos que não pronunciam o nome de Deus.

“Foi dado”; o tempo de verbo grego insinua que o dom não se tornou coisa possuída, mas exprime uma relação que o une ao doador. A expressão “mistério do Reino” era familiar à corrente apocalíptica do tempo de Jesus, em que designava os desígnios ocultos de Deus relativamente ao fim dos tempos. Nos evangelhos, ela só aparece aqui e refere-se quer ao próprio Reino (aos discípulos é dado o conhecimento do Reino), quer ao mistério ou segredo de Jesus como instaurador do Reino (em Mc, o segredo do messias e suas ordens de mantê-lo em segredo), quer, enfim, conforme o contexto imediato, aos segredos que se referem ao caráter inicialmente secreto e contestado do Reino, de acordo com as parábolas deste capítulo.

Pois à pessoa que tem, será dado ainda mais, e terá em abundância; mas à pessoa que não tem, será tirado até o pouco que tem (v. 12). 

Esta frase é repetida quase literalmente em 25,29, onde ela condiz mais com o contexto (parábola dos talentos). Trata-se de uma fórmula paradoxal que admite aplicações diversas, contanto que se mantenha o paradoxo. Trata-se de dinamismo e colaboração, numa espécie de processo dialético que implica as duas partes. Aqui “aquele que tem” possui, na fé em Jesus, o conhecimento do Reino: ser-lhe-á concedido um conhecimento ainda mais completo. Em 25,29, “aquele que tem” é o servo fiel que pode entregar a seu patrão o resultado do seu trabalho.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1863) interpreta: Aqueles que têm o espírito aberto à verdade receberão, além dos tesouros da aliança antiga, a perfeição da nova (cf. 5,17.20 e o final positivo do discurso em 13,52); aos que têm má vontade, tirar-se-á até o que eles têm, isto é, a Lei judaica que, abandonada a si mesma, se tornará caduca.

É por isso que eu lhes falo em parábolas: porque olhando, eles não veem, e ouvindo, eles não escutam, nem compreendem (v. 13).

Mateus muda o “para que / de modo que” de Marcos em “porque”: a atitude condicionou a compreensão, parecendo abrandar a formulação de Mc e fazer a responsabilidade da cegueira nos homens e não em Deus. Mas a citação em seguida de Is 6,9-10 por Mt mostra que o seu texto tem o mesmo sentido fundamental que o de Mc: não discernir em Jesus o segredo do Reino aumenta ainda mais a cegueira para este Reino; o acesso ao Reino ou exclusão do mesmo são determinados pelo acolhimento ou rejeição da pessoa e do ensino parabólico de Jesus: não há neutralidade possível.

Um endurecimento voluntário e culposo determina e explica a retratação da graça. Todas as narrativas precedentes prepararam o discurso parabólico, ilustrando esse endurecimento (11,16-19.20-24; 12,7.14.24-32.34.39.45). A essas mentes obscurecidas, que falta a luz plena a respeito do caráter humilde e oculto do verdadeiro messianismo (11,25-27), só poderá dar senão uma luz amortecida por símbolo: meia luz que será ainda uma graça, um apelo para pedir melhor e receber mais.

Deste modo se cumpre neles a profecia de Isaías: ‘Havereis de ouvir, sem nada entender. Havereis de olhar, sem nada ver. Porque o coração deste povo se tornou insensível. Eles ouviram com má vontade e fecharam seus olhos, para não ver com os olhos, nem ouvir com os ouvidos, nem compreender com o coração, de modo que se convertam e eu os cure’ (vv. 14-15).

Como Mt gosta de sublinhar os cumprimentos proféticos na vida de Jesus, aqui ele reforçou a citação de Is 6,9s (cf. Is 42,18). Este texto da visão de Isaías no templo, onde recebe uma missão paradoxal, é citado várias vezes no NT: Mt 13,13-15p; Jo 12,40; At 28,26-27. Apesar das diferenças de tradução que possam aparecer entre Mt 13,14-15 e At 28,26-27, é mister ter presente que ambos citam exatamente o texto grego de Is.

Este texto de Isaías prediz o fracasso do profeta por culpa dos ouvintes. Dada a dureza dos ouvintes, a pregação profética os irrita e endurece, e lhes agrava a culpa (Isaías fala de sua experiência em 30,9-11). Mesmo prevendo o resultado negativo, o profeta não pode calar-se, pois é Deus que o envia, e a denúncia tem intenção salvadora.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1368) comenta: A pregação do profeta embaterá na incompreensão de seus ouvintes. Deus não quer essa incompreensão, ele a prevê, e ela serve aos seus desígnios. Ela descobre o pecado do coração e precipita o julgamento.

A Bíblia do Peregrino (p. 1699) comenta a “missão impossível” do profeta: O seu destino é o fracasso, o seu êxito será piorar a situação. Pregando a conversão, provocará o endurecimento e tornará inevitável o castigo, pois o povo não poderá alegar ignorância. Quando a desgraça acontecer, a palavra, aparentemente ineficaz, será recordada; e à sua luz a tribulação será compreendida e aceita como castigo. Em última instância, essa palavra conduzirá à conversão.

No tempo de Jesus, a frase alude à resistência das autoridades, no tempo da Igreja, aporta para a rejeição e para ruptura consumada. O fato de que a maioria dos judeus não se converteu ao evangelho está no plano misterioso de Deus (cf. Rm 11,7-16.29-32).

Felizes sois vós, porque vossos olhos veem e vossos ouvidos ouvem. Em verdade vos digo, muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram, desejaram ouvir o que ouvis, e não ouviram (vv. 16-17).

Da outra fonte comum com Lucas, Q (uma coleção de palavras de Jesus que se perdeu na história, mas preservou-se em Mt e Lc), Mt tirou esta bem-aventurança (Lc 10,23s) e a inseriu aqui no discurso. Lit. “Mas vós sois felizes por verdes com vossos olhos e ouvirdes com vossos ouvidos”.

Depois de citar Is 6,9s para explicar a rejeição de Israel a respeito de Jesus, Mt muda o tom e pronuncia esta bem-aventurança (cf. 5,3-12). Em vez da cegueira e surdez de Israel (Is 6,9s), elogiam-se agora os olhos e os ouvidos dos discípulos. O que estes veem? Lembrando a pergunta de João Batista e a resposta de Jesus em 11,2-6, eles veem as curas milagrosas e ouvem o evangelho anunciado aos pobres.

Ver o Messias e ouvir sua mensagem era a ânsia oculta dos antigos; “muitos profetas e justos”, os da aliança antiga (23,29; cf. 10,41, “desejaram ver o que vedes, e não viram…”). Mt substituiu os “reis” da sua fonte Q (Lc 10,24) por “justos”, porque os judeu-cristãos da comunidade de Mt não são reis, sim profetas e justos (10,41; 23,34; cf. 23,37). Compara-se Is 42,20 – “Muito olhavas e nada entendias” – com 52,8 “Veem face a face o Senhor voltando a Sião” e 62,11 “Vê o teu Salvador chegando”.

Os homens e mulheres piedosos do Antigo Testamento correspondem à comunidade que tem o privilégio de participar do tempo da salvação através dos discípulos. Os discípulos são testemunhas privilegiadas dessa revelação de Jesus (através do seu ensino), que se estenderá a todos os cristãos (cf. Eclo 48,11 referindo-se à volta de Elias: “Feliz quem te vir antes de morrer”; e o velho Simeão, “justo e piedoso”, em Lc 2,25.29-30: “Meus olhos viram tua salvação”).

Da parábola se passa à pessoa de Jesus presente na história, porque nele já se realiza o reinado de Deus. Esse é o grande “mistério do reinado de Deus” que se dá a conhecer aos que acolhem Jesus como o Messias desejado e esperado. S. Paulo insistiu sobre o longo silêncio em que foi envolvido o “mistério” (Rm 16,25; Ef 3,4-5; Cl 1,26; cf. 1Pd 1,11-12) e cuja revelação aos pagãos é teor da pregação do apóstolo das nações.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1202) comenta: Para compreender os mistérios do Reino dos céus, não basta ouvir o que Jesus tem a dizer; é necessário comprometer-se com a justiça de Deus que ele proclama. Só assim haverá mais clareza a respeito daquilo que dificulta a concretização do Reino na história humana.

O site da CNBB comenta: Quem procura ter os olhos, os ouvidos e o coração abertos para a mensagem de Jesus entende o que ele quer dizer com as parábolas, mas quem vive preocupado com interesses mesquinhos, busca de satisfação pessoal, fundamentando a sua vida no egoísmo, não entende as parábolas de Jesus. Somente aquelas pessoas que procuram fazer a vontade de Deus, buscando uma abertura para ele e para os irmãos e irmãs no sentido de viver cada vez mais e melhor o amor pode entender as parábolas de Jesus, pois essas pessoas procuram abrir espaço para que a graça de Deus atue, condição fundamental para que haja de fato entendimento da palavra de Jesus.

Ouvi a parábola do semeador: (v. 18)

Depois da bem-aventurança dos discípulos (vv. 16-17), o texto volta ao chão da realidade retomando a parábola do semeador. Mc 4,13 era uma bronca aos discípulos incompreensíveis: “Se não compreendeis esta parábola, como podereis entender todas a parábolas?”. Mt e Lc atenuaram independentemente ou, talvez já antes deles, um redator de Mc (Deutero-Marcos como modelo para Mt e Lc) tenha tirado tantas incompreensões dos discípulos do evangelho de Mc.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1883) comenta: Antes que proporcionar uma aplicação moral (Mc, Lc), Mt reitera, sob forma de interpretação, a proclamação do acontecido que a parábola anuncia em linguagem simbólica e que os discípulos estão vivendo (13,16-17): releitura teológica e ética do texto.

Todo aquele que ouve a palavra do Reino e não a compreende, vem o Maligno e rouba o que foi semeado em seu coração. Este é o que foi semeado à beira do caminho (v. 19).

Para Mc, semente era apenas a Palavra, Mt e Lc especificam: “a palavra do Reino” (v. 19; cf. 4,23; 9,35; 24,14), palavra de Deus (Lc 8,11). Ambos também acrescentam o “coração” (Mt: semeado em seu coração; Lc: arrebata-lhes a palavra do coração). É possível, que Deuteromarcos já tenha feito estas mudanças. Só Mt, porém, acrescenta “e não a compreende” (cf. v. 23). Para Mt, os discípulos não devem apenas ouvir superficialmente como as multidões (cf. v. 13s), mas aprender pelo ensino de Jesus e serem capazes de entender (cf. vv. 36-52; 15,10.12-20; 16,5-17,13). Para isso, Jesus explica as metáforas desta parábola, como era costume entre os rabinos (cf. Ne 8,6) e no gênero apocalíptico (explicar visões).

A metáfora “semear a palavra” já era comum entre os gregos e em parte entre os judeus (cf. Os 10,12; cf. Is 55,11 na 1ª leitura de hoje). Em Mc (e Lc) não há clareza, porque “a semente é a palavra” (Mc 4,14; Lc 8,11), e depois identifica a planta com as pessoas que ouviram a palavra (Mc 4,16). Mt evita a identificação em v. 19. Para ele, a semente são as pessoas, como em v. 38, aludindo a outra metáfora judaica: Deus semeia/planta seu povo no mundo (cf. Jr 31,27s).

O “Maligno” (cf. 6,13; 13,38; diferente em 5,39) é o diabo (frequente em 1Jo; cf. Ef 6,16), apresentado como pássaro que se aproxima a recém-convertidos (1Tm 3,6; cf. 1Pd 5,8).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1883) comenta: Este versículo não descreve duas atividades sucessivas, mas explica a primeira (ouvir e não compreender) pela segunda (a do Maligno).

A semente que caiu em terreno pedregoso é aquele que ouve a palavra e logo a recebe com alegria; mas ele não tem raiz em si mesmo, é de momento: quando chega o sofrimento ou a perseguição, por causa da palavra, ele desiste logo (vv. 20-21).

Também a segunda metáfora é conhecida. Na literatura sapiencial, o sábio é como árvore plantada na beira do riacho tendo raízes firmes, mas o ímpio é como árvore sem raízes que logo seca (positivo: Jr 17,8; Ez 31,2-5; Sl 1,3; cf. Jó 14,8s; negativo: Eclo 40,15; Sb 4,3s; cf. Is 40,24; Eclo 23,25).

Uns recém-convertidos acolhem a palavra “com alegria” (cf. 1Ts 1,6), mas vivem ainda com os valores terrenos (2Cor 4,18; Cl 3,2s). Mt mencionará novamente o “sofrimento” (lit. tribulação) no discurso escatológico (24,9.21.29) incluindo a inimizade dos pagãos. A “perseguição” é uma experiência constante da comunidade de Mt, principalmente por parte dos judeus (5,10-12; 10,23; 23,34). A desistência dos homens terrenos é sinal dos últimos tempos (24,10); “ele desiste logo”, lit. fica escandalizado (cai).

A semente que caiu no meio dos espinhos é aquele que ouve a palavra, mas as preocupações do mundo e a ilusão da riqueza sufocam a palavra, e ele não dá fruto (v. 22).

A imagem dos espinhos e cardos é associada ao mal (cf. Gn 3,18; Jr 12,13). Os leitores de Mt se lembram do trecho no sermão da montanha, onde Jesus falava da riqueza e logo em seguida das preocupações (6,19-34); para Mt é uma advertência central (cf. 10,9s; 19,16-30). As preocupações do (ou pelo) mundo são o aspecto subjetivo. A “ilusão” (sedução; Vulgata: falácia) representa o aspecto objetivo do perigo que a riqueza representa; pode significar também prazer, como traduz Lc 8,14. Também não dá frutos.

A semente que caiu em boa terra é aquele que ouve a palavra e a compreende. Esse produz fruto. Um dá cem, outro sessenta e outro trinta” (v. 23).

Depois dos exemplos negativos, finalmente o final positivo. Há também seres humanos em que a semente cai em terra boa. “É aquele que ouve a palavra e a compreende”. Os discípulos chegam a compreensão apenas por Jesus (15,10; 16,12; 17,13). Primeiramente compreender é coisa de cabeça, mas não só: ouvir, compreender e fazer (praticar) pertencem juntos, para Mt como para o judaísmo (cf. 7,24,26; fazer e produzir frutos: 3,8.10; 7,17-19; 13,26; 21,43).

Apenas este último tipo de pessoas “compreende” (cf. v. 19). Os leitores devem compreender que o significado desta parábola são eles mesmos (cf. 2Sm 12,7). Os frutos podem ter tamanhos diferentes (100, 60, 30; Mt inverte a sequência de Mc), como na parábola dos talentos (25,20.22).

A parábola é um espelho para a comunidade cristã, não se trata apenas dos problemas dos recém-convertidos, mas cada um se deve perguntar sobre seus próprios frutos. Mt vê na comunidade pessoas que não se tocam com a palavra do reino e outros em que a palavra é sufocada e não produz. Não se deve aplicar os três tipos falidos apenas aos outros (aos judeus, crentes protestantes ou católicos não praticantes), mas avaliar sem autossuficiência e praticar uma autocrítica (cf. a parábola do joio, vv. 36-43, e a do convidado sem traje de festa, 22,11-14; cf. a perspectiva de 24,37-25,46).

O site da CNBB comenta: Todos nós falamos muito em felicidade e todas as pessoas desejam ser felizes. Em nome da felicidade as pessoas fazem as maiores proezas e correm os maiores riscos. A felicidade está sempre naquilo que nós mais valorizamos na nossa vida. É justamente aqui que nós encontramos o elemento de análise principal para encontrarmos a causa de tanto sofrimento e tanta dor que estão presentes no mundo de hoje. Deus é o valor absoluto e somente a partir dele pode haver felicidade verdadeira. Qualquer felicidade que encontre o seu fundamento fora de Deus, coloca o seu fundamento em um falso valor, de modo que é na verdade uma falsa felicidade, que só pode trazer dor e sofrimento.

 

 

 

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