05 de maio de 2017 – Segunda-feira, 9ª semana

Leitura: Tb 1,3; 2,1a-8

Iniciamos hoje a leitura do livro de Tobias (Tb) que pertence aos sete livros deuterocanônicos, ou seja, os que não foram logo acolhidos no cânone (lista dos livros reconhecidos) da Bíblia. Estes sete livros não se encontram na Bíblia dos protestantes que só aceitam como Antigo Testamento (AT) os livros da Bíblia hebraica. Mas o original hebraico (ou aramaico) de Tb se perdeu, só temos uns fragmentos descobertos em Qumran e manuscritos antigos em grego e latim. Na Bíblia católica faz parte dos “livros históricos”, mas apesar das aparências, não conta uma história real, pois os acontecimentos descritos dificilmente se enquadram na história desse período. O livro pertence ao gênero sapiencial e é uma espécie de romance ou novela, cuja finalidade não é entretenimento, mas transmitir um ensinamento.

O autor anônimo escreveu pelo ano 200 a.C. Nesse tempo o império grego dominava todo o Oriente Médio, inclusive a Palestina. Além do domínio político e da exploração econômica, os povos dominados sofrem também a influência da cultura, religião e costumes gregos, ficando ameaçados na própria identidade. É precisamente com a identidade do povo judeu que o autor está preocupado, principalmente dos que vivem na diáspora (dispersos fora da Palestina). Por isso o livro procura estimular e fortalecer a fidelidade e a confiança, levando-os a redescobrir e revalorizar a fé, as tradições e os valores de Israel. Assim destaca, entre outras coisas, a descoberta da providência divina na vida cotidiana (na pessoa do arcanjo Rafael), a fidelidade à vontade de Deus (Lei), a prática da esmola, o amor aos pais, a oração e o jejum, a integridade do matrimônio e o respeito pelos mortos. O autor mostra, sobretudo, que o homem justo não vive sozinho: está sempre acompanhado e protegido por Deus.

Eu, Tobit, andei nos caminhos da verdade e da justiça, todos os dias da minha vida. Dei muitas vezes esmolas aos meus irmãos e compatriotas, que comigo foram deportados para Nínive, no país dos assírios (1,3).

O livro apresenta o exemplo de um judeu justo e fiel a Deus, “nos caminhos da verdade e da justiça”. O autor transfere sua novela para o passado, mas com muita liberdade: apresenta Tobit como vivendo ainda a divisão do reino depois de Salomão (em 931 a.C.; cf. 1,4) e depois sendo deportado com a tribo de Neftali para Nínive, capital da Assíria (em 734; cf. 1,3.5.10), e seu filho Tobias morrerá depois da destruição de Nínive pelos babilônios (em 612, cf. 14,15).

Depois do título (1,1s), o texto começa na primeira pessoa (“eu”), à maneira de autobiografia, que chega só até 3,6, ao entrar em cena Sara. O gênero tem antecedentes nas memórias de Neemias (Ne 1-7). Tobit começa com uma confissão pública de suas virtudes. Soa-nos um pouco como a oração do fariseu que dava graças a Deus, porque era uma pessoa muito boa e “não como os demais” (Lc 18,9-14). Abrangendo a vida na pátria (1,4-9) e depois no desterro, sua confissão permite uma comparação útil das práticas judaicas: na pátria, a peregrinação ao santuário central (1,6); no desterro, os alimentos puros (1,10s). Na pátria, os dízimos legais (1,7s); no desterro, a esmola (1,3.16s; 2,3; 4,7-11).

No dia da nossa festa de Pentecostes, que é a festa das Sete Semanas, prepararam-me um excelente almoço, e reclinei-me para comer. Quando puseram a mesa com numerosas iguarias, disse ao meu filho Tobias: “Vai, filho, vai procurar, entre nossos irmãos deportados em Nínive, algum que, de todo o seu coração, se lembre do Senhor, e traze-o aqui para comer comigo. Assim, meu filho, ficarei esperando até que voltes” (vv. 2,1a-2).

O termo grego “Pentecostes” quer dizer “50º dia” (após a páscoa), era a “festa da messe” ou “festa das (sete) semanas” (7×7=49), celebrada com peregrinação a Jerusalém (Ex 23,14-17; 34,22s; Lv 23,15-21; Dt 16,9-12). Os judeus comemoram a primeira colheita do trigo e a entrega da Lei, a antiga aliança no Sinai (Ex 19-24). No desterro, sem poder peregrinar a Jerusalém, comemora-se com uma refeição festiva (“excelente almoço”), talvez acompanhada de leituras e preces bíblicas. Como na ceia pascal se junta com o vizinho mais próximo (Ex 12,4), Tobit quer partilhar e convidar um “pobre” (2,3), “que se lembra do Senhor” (2,2); ato de caridade que nos parece bastante seletivo. Talvez pensasse que só um israelita observante dos preceitos de pureza legal podia participar de um banquete com caráter religioso. Em Dt 16,9-12; 26,11 se deve convidar para a festa de Pentecostes também os imigrantes, órfãos e viúvas. Com o convidado se abre o círculo familiar e se experimenta a solidariedade do povo desterrado.

Tobias saiu, pois, à procura de um pobre entre nossos irmãos. E voltou dizendo: “Pai!” Respondi: “Que há, meu filho?” Continuou Tobias: “Um homem do nosso povo foi morto e lançado à praça pública. E ainda se encontra lá, estrangulado”. Levantei-me de um salto, deixando o almoço, sem prová-lo. Tirei o cadáver do meio da praça e depositei-o numa das dependências da casa, esperando o pôr-do-sol para enterrá-lo. Ao voltar, lavei-me e, entristecido, tomei minha refeição (2,3-5).

Tobias, seu filho, saiu à procura de um pobre e encontrou o cadáver de um judeu que tinha acabado de ser estrangulado. Os verbos na voz passiva sugerem o anonimato e impunidade do assassinato. Podemos pensar em xenofobia (medo dos estranhos que se transforma em ódio e violência contraestrangeiros) que imigrantes e refugiados enfrentam. Tobit levantou-se rápido “de um salto”, deixou o almoço sem provar e encontrando o cadáver no centro da praça, trouxe-o para as dependências da sua casa e providenciou o sepultamento a ser realizado depois do pôr do sol (quando o feriado já passou, v. 7). O não-sepultamento acarretava maldição para o falecido, mas o contato com o cadáver contaminava (Nm 19,14-16), portanto, “ao voltar, lavei-me” (v. 5), só depois se sentou à mesa para almoçar.

Lembrei-me das palavras do profeta Amós, ditas contra Betel: “Vossas festas se transformarão em luto e todos os vossos cantos em lamentação”. E chorei. Depois que o sol se escondeu, fui cavar uma sepultura e enterrei o cadáver. Meus vizinhos zombavam, dizendo: “Ele ainda não tem medo. Já foi procurado para ser morto por este motivo, e teve que fugir. No entanto, está de novo sepultando os mortos!” (vv. 6-8).

Na refeição, Tobit ficou entristecido e se lembra da profecia de Am 8,10: “Vossas festas se transformarão em luto, e vossos cantos em lamentação”. Interpreta um fato presente como cumprimento de uma profecia: a ameaça de Amós contra o culto cismático de Betel (instituído para que o povo de Israel não fizesse sacrifícios em Jerusalém, cf. 1Rs 12,26-33). O assassinato de um desterrado, se não é castigo pessoal, é consequência do pecado coletivo de Israel no passado, e nesse espírito deve ser aceito. A Tobit, embora inocente, cabe chorar. Citar a Escritura é procedimento frequente em 1Mc e tem um antecedente em Jr 26,18.

“Depois que o sol se escondeu”, isto é, quando terminou o dia da festa que não deve ser profanada (cf. Lv 23,21), “fui cavar uma sepultura e enterrei o cadáver” (v. 7b). As palavras de zombaria dos vizinhos salientam a grandeza do gesto de Tobit: “Ele ainda não tem medo. Já foi procurado para ser morto por este motivo e teve que fugir. No entanto, está de novo sepultando os mortos” (v. 8). Tobit já tinha enterrado muitos conterrâneos que o rei de Nínive matava e foi perseguido por isso (cf. 1,16-20).

Tobit é um exemplo ideal de solidariedade do povo desterrado que não se deixa intimidar pelo poder ou pelos costumes pagãos, mas cumpre a lei de Deus sem hesitar. Prefere agradar a Deus e desagradar o rei e os homens.

Evangelho: Mc 12,1-12

Uma pergunta do evangelho do sábado da 8ª semana (cf. 11,27-33) ficou ainda em aberto: de onde vem a autoridade de Jesus e a dos seus adversários?

Jesus começou a falar aos sumos sacerdotes, mestres da Lei e anciãos, usando parábolas: (v. 1).

Jesus responde aos mesmos representantes do sinédrio (o texto litúrgico os repete, cf. 11,27) da controvérsia anterior, mas agora “usando parábolas” (v. 1: cf. 4,11); esta parábola de julgamento, porém, podemos chamar melhor de “alegoria”, porque cada pormenor tem o seu significado.

“Um homem plantou uma vinha, cercou-a, fez um lagar e construiu uma torre de guarda. Depois arrendou a vinha a alguns agricultores, e viajou para longe. Na época da colheita, ele mandou um empregado aos agricultores para receber a sua parte dos frutos da vinha. Mas os agricultores pegaram no empregado, bateram nele, e o mandaram de volta sem nada. Então o dono da vinha mandou de novo mais um empregado. Os agricultores bateram na cabeça dele e o insultaram. Então o dono mandou ainda mais outro, e eles o mataram. Trataram da mesma maneira muitos outros, batendo em uns e matando outros. Restava-lhe ainda alguém: seu filho querido. Por último, ele mandou o filho até aos agricultores, pensando: ‘Eles respeitarão meu filho’. Mas aqueles agricultores disseram uns aos outros: ‘Esse é o herdeiro. Vamos matá-lo, e a herança será nossa’. Então agarraram o filho, o mataram, e o jogaram fora da vinha (vv. 2-8).

No Antigo Testamento (AT), a “vinha” é símbolo de Israel, do povo de Deus (cf. Is 5,1-7; Sl 80). Também o “proprietário” é símbolo, significa o próprio Deus. Na interpretação posterior ampliou-se o sentido alegórico, p. ex. a torre seria o símbolo do templo, e a cerca (cf. Nm 22,24; Pr 24,31) o símbolo da Lei.

De Is 5,1-7, Jesus toma o começo (o cuidado com o qual o dono tratou da vinha) e o final (“a vinha é a casa de Israel … em vez de frutos de justiça, assassinato”, Is 5,7). Ele, porém, dirige esta parábola não ao povo, mas aos dirigentes, “aos sumos sacerdotes, mestres da lei e anciãos” (cf. 11,27) que representam os três grupos do supremo conselho/tribunal dos judeus (sinédrio) que condenará Jesus à morte. Eles são os “agricultores” a quem Deus confiou o seu povo.

Em vez de entregar a parte do dono, os frutos (da justiça), os agricultores maltrataram os “empregados” que Deus enviou três vezes (vv. 2-5), são os profetas. Já no AT, os profetas chamam-se servos (cf. Jr 7,25; 25,4; Am 3,7; Zc 1,6: Is 53) e foram maltratados, p. ex. Elias foi perseguido (1Rs 19), Amós expulso (Am 7), Jeremias julgado e atirado à cisterna para morrer, foi conduzido ao Egito a força (Jr 26; 38), Zacarias lapidado ao átrio do templo (23,35; 2Cor 24,20-21). Sobre o envio do “filho” recorda-se a história de José, enviado por seu pai Jacó e quase morto por seus irmãos (Gn 37). Depois de muitos profetas que pregavam a justiça, Deus envia o próprio Filho que representa seu Reino.

O filho tem mais poderes do que os empregados, é o “herdeiro” (v. 7), o messias a quem Deus entrega o seu povo. O povo é a herança do Senhor (cf. 1Rs 8,51; Jr 12,8; Sl 2,8; Hb 1,1s). Mas seus rivais pretendem matá-lo e tomar posse da sua herança. “Então, agarraram o filho, o mataram e o jogaram fora da vinha” (v. 8). Em Mt e Lc, o mataram já fora da vinha em alusão à crucificação que acontece fora dos muros da cidade (cf. Hb 13,12). Esta alegoria é um anúncio da paixão, no qual Jesus se apresenta claramente como “filho querido” (v. 6; 1,10; 9,7), não como servo-empregado (cf. Rm 8,15-17; Gl 4,7.21-30; Hb 1,1-8), ao final ele é mais do que os profetas, é o messias (cf. 8,27-29).

Que fará o dono da vinha? Ele virá, destruirá os agricultores, e entregará a vinha a outros. Por acaso, não lestes na Escritura: ‘A pedra que os construtores deixaram de lado, tornou-se a pedra mais importante; isso foi feito pelo Senhor e é admirável aos nossos olhos’?” (vv. 9-11).

“Que fará o dono da vinha?” À pergunta retórica (em Mt 21,41, os adversários respondem pronunciando sua própria sentença), Jesus mesmo responde: “Ele virá, destruirá os agricultores, e entregará a vinha a outros” (v. 9). Matando o filho, os dirigentes de Israel não conseguem seu objetivo, porque o proprietário não morreu. Deus não deixa de ser o Senhor da história. Mc pode pensar na destruição de Jerusalém e do templo pelos romanos que aconteceu em 70 d.C. (o evangelista escreve na mesma época desta guerra judaica, cf. Mc 13). A história continua com “outros” vinhateiros, ou seja, com a igreja, outras lideranças para um povo de Deus aberto aos pagãos e que se fundamenta na morte e ressurreição do seu Filho.

O filho volta a viver para receber a herança, como menciona a citação de Sl 118,22-23 (cf. At 4,11; 1Pd 2,4-8): “A pedra que os construtores deixaram de lado, tornou-se a pedra mais importante…” (v. 10). Os rabinos aplicavam esta frase a Abraão ou Davi, mas não ao messias (porque não imaginaram a condenação e morte do messias na cruz, cf. 1Cor 22-24). A pedra relacionada ao filho do homem e o reino de Deus encontra-se em Dn 2,34; 7,14.

Então os chefes dos judeus procuraram prender Jesus, pois compreenderam que havia contado a parábola para eles. Porém, ficaram com medo da multidão e, por isso, deixaram Jesus e foram-se embora (v. 12).

Os “chefes dos judeus” entenderam a acusação grave que Jesus fez com esta “parábola para eles”. Procuravam matá-lo (8,31; 11,18; cf. 3,6), “porém, ficaram com medo da multidão” (v. 12; 32; cf. 11,32; 14,2; Lc 20,19). Para eles a pedra angular tornou-se uma “pedra de tropeço, uma rocha que faz cair. Eles tropeçaram porque não creem na Palavra …” (1Pd 2,8).

Jesus é a pedra fundamental, angular e principal na obra de Deus, mas ainda hoje está sendo rejeitado (cf. o canto: “Entre nós está, mas não o reconhecemos”), porque está vivo e anda mais entre os pobres do que entre os privilegiados. É preciso escolher entre querer tudo para si, apossar-se da maior quantidade de coisas possível para satisfazer os desejos pessoais, ou outra atitude (cf. a de Tobit na 1ª leitura): cuidar das pessoas mais necessitadas, dar tudo pelo bem dos outros, difundir o amor e o bem.

O site da CNBB comenta: O que aconteceu com os vinhateiros apresentadas na parábola do evangelho de hoje pode acontecer a todos nós principalmente quando nos deixamos levar pelo desejo de ter poder e de ter riquezas, que nos leva à tentação de nos apossarmos de tudo, inclusive das coisas de Deus e até mesmo do próprio Deus e a queremos usar de tudo isso em nosso próprio benefício. Quando fazemos isso, estamos na verdade rejeitando a presença do próprio Cristo em nossas vidas, que se dá também por meio dos pobres e necessitados que procuram a misericórdia do nosso coração e não o nosso autoritarismo e a nossa prepotência em relação a eles.

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