05 de outubro de 2016 – Quarta-feira, 27ª semana

Leitura: Gl 2,1-2.7-14

Na leitura de hoje, Paulo continua o tom duro de denúncia aos “falsos irmãos se infiltraram para espiar a liberdade que temos em Cristo Jesus, a fim de nos reduzir à escravidão” (v. 4), ou seja, queriam obrigar os cristãos da Galácia (região central da atual Turquia) a praticar a circuncisão e a Lei de Moisés (cf. At 15,1). Ouvimos ainda de um conflito pastoral entre Pedro e Paulo em Antioquia.

Quatorze anos mais tarde, subi, de novo, a Jerusalém, com Barnabé, levando também Tito comigo. Fui lá, por causa de uma revelação. Expus-lhes o evangelho que tenho pregado entre os pagãos, o que fiz em particular aos líderes da Igreja, para não acontecer estivesse eu correndo em vão ou tivesse corrido em vão (vv. 1-2).

Surge a pergunta de qual seja o ponto de partida desses “quatorze anos”. Seria a conversão de Paulo ou sua primeira viagem a Jerusalém? Parece, em todo caso, que a viagem de que se trata aqui seja a de que Lc fala em At 15.

Paulo subiu a Jerusalém apenas “três anos” após sua conversão em Damasco que ele chamou de “revelação não segundo o homem” (vv. 11-12.16). O “evangelho” de Paulo, recebido por esta revelação imediata e pessoal, foi reconhecido pelas autoridades apostólicas de Jerusalém (1,18).

“Quatorze anos mais tarde,” Paulo se apresenta “de novo em Jerusalém, não porque o tenham convocado a prestar contas, mas “por causa de uma revelação”. Iluminado pelo Espírito, Paulo compreendeu a necessidade desta viagem: a sua pregação seria estéril se ele mesmo não estivesse em comunhão com a Igreja de Jerusalém. Isto não exclui a Igreja de Antioquia tenha, por seu lado, querido esta viagem (cf. At 15,2).

Paulo quer provocar as autoridades em Jerusalém a um reconhecimento oficial, não porque duvide, mas porque não duvida do seu evangelho. A “revelação” o fez compreender a conveniência da aceitação eclesial, como garantia para ele e também para seus convertidos. Busca-o por causa da situação criada pelos “falsos irmãos” com suas acusações e insinuações. Não pode aceitar que essas intrigas vão frustrar o realizado e o pendente. Era preciso evitar uma divisão da igreja nascente em judeus cristãos e pagãos cristãos.

Desta vez Paulo se apresenta com Barnabé e Tito (At 15,2), uma dupla paradigmática e até provocadora para os leitores da carta. Barnabé era de ascendência levítica (At 4,36s; 9,27; 11,22-30; 13,2-15,39; cf. Cl 4,10), Tito representava o convertido puro do paganismo grego (2Cor 2,13; 7,6-7.13–15; 8,6.23; 12,17a; 2Tm 4,10; Tt 1,5).

Para assegurar o valor de sua prática missionária, Paulo conta como selou um acordo com os apóstolos de Jerusalém, que ele chama de “notáveis” (aqui traduzido por “lideres”, v. 2) e “colunas” da igreja (v. 9). Nossa liturgia omitiu os vv. 3-6.

Pelo contrário, viram que a evangelização dos pagãos foi confiada a mim, como a Pedro foi confiada a evangelização dos judeus. De fato, aquele que preparou Pedro para o apostolado entre os judeus preparou-me também a mim para o apostolado entre os pagãos. Reconhecendo a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, considerados as colunas da Igreja, deram-nos a mão, a mim e a Barnabé, como sinal de nossa comunhão recíproca. Assim ficou confirmado que nós iríamos aos pagãos e eles iriam aos judeus (vv. 7-9).

Os apóstolos em Jerusalém reconheceram a evangelização de Paulo e seus companheiros, lit.: “nos deram uma mão de comunhão”. Esse aperto de mão foi sinal da unidade com a igreja mãe. Cefas é Pedro (1Cor 9,5; 15,5; Jo 1,42). João é o filho de Zebedeu (Mc 1,19p; At 3,1-4,19) e irmão daquele Tiago que foi morto por Herodes entre 41 e 44 d.C. (At 12,2), enquanto o Tiago aqui mencionado é o “irmão do Senhor” (Mc 6,3p; cf. Gl 1,19; 1Cor 15,7; Tg) que assume a direção da igreja em Jerusalém após a saída de Pedro (At 12,17; 15,13-21; 21,18).

Além deste “sinal de nossa comunhão” (v. 9), o acordo teve outro aspecto importante, para o reconhecimento da missão de Paulo e, consequentemente, para a universalidade (catolicidade). Dois campos de apostolado são definidos pelo acordo de Jerusalém: A tarefa de evangelizar os incircuncisos (pagãos, gentios), por parte de Paulo, foi reconhecida pelos “notáveis”, da mesma forma como a evangelização dos circuncisos (judeus), por parte de Pedro (v. 7). Esta distinção corresponde à eleição de Israel, cujo sinal era a circuncisão (At 7,8); a distinção devia desaparecer em consequência do anúncio do Evangelho; no Cristo crucificado, tanto os gregos (não-judeus, gentios, pagãos) como os judeus podem tornar-se filhos de Deus.

A divisão não é rígida: Pedro havia batizado o centurião Cornélio (At 10), Paulo pregava nas sinagogas judaicas (At 9,20;  13,5.14 etc.). A divisão era mais de ordem geográfica do que étnica: “a circuncisão” designa principalmente os judeus da Palestina, e Paulo sempre se dirige em primeiro lugar aos “judeus” da diáspora (dispersos fora de Israel) antes de pregar aos pagãos (cf. At 13,45s; 18,5s; 28,17-28). Mas fica sancionada a validade do apostolado entre os pagãos e se afirma a vocação universal cristã. Nesse momento, a “solidariedade”, expressa no gesto de apertar a mão, tem mais força que a autoridade. O episódio pessoal fica superado. Esses fatos refletem o que Lc narra sobre a assembléia conhecida como Concílio de Jerusalém, em At 15.

O que nos recomendaram foi somente que nos lembrassemos dos pobres. E isso procurei fazer sempre, com toda a solicitude (v. 10).

O gesto de união de Paulo e das autoridades de Jerusalém selava um acordo oriundo de uma situação provisória, mas exprimia o propósito de uma comunhão mais profunda; sinal visível dessa “comunhão” era o serviço e o cuidado com os pobres. A grande coleta responde a essa recomendação (At 11,29; 24,17; Rm 15,15-18; 1Cor 16,1; 2Cor 8-9).

Mas, quando Cefas chegou a Antioquia, opus-me a ele abertamente, pois ele merecia censura. Com efeito, antes que chegassem alguns da comunidade de Tiago, ele tomava refeição com os gentios. Mas, depois que eles chegaram, Cefas começou a esquivar-se e a afastar-se, por medo dos circuncidados. E os demais judeus acompanharam-no nessa dissimulação, a ponto de até Barnabé se deixar arrastar pela hipocrisia deles (vv. 11-13).

O episódio de Antioquia complementa e confirma a conclusão anterior. Antioquia no rio Orontes (no sul da atual Turquia) era capital da província romana da Síria e, depois de Roma e Alexandria, a cidade mais importante do mundo greco-romano. Nela havia uma comunidade significativa de judeus; um dos sete diáconos era prosélito de lá (At 6,5). Depois da perseguição de Estêvão, uns cristãos fugiram de Jerusalém a Antioquia e começaram anunciar o evangelho aos gregos pagãos. Barnabé foi enviado para lá e chamou Saulo (Paulo) para ajudar. A comunidade de Antioquia tornou-se uma comunidade mista e um centro de expansão do cristianismo e das viagens de Paulo (cf. At 11,19-26; 13,1-3; 14,16-15,3.22-35; 18,22s). Lá os discípulos recebem pela primeira vez o nome de “cristãos” (At 11,26). Aqui no texto, os “gentios” designam gentios convertidos ao evangelho, como também os “judeus” ou “circuncidados” aqui mencionados são convertidos, judeu-cristãos.

A polêmica com Pedro é exposta de maneira muito clara e revela o caráter sincero de Paulo. O problema é hipocrisia, ou seja, pregar uma coisa e fazer outra. Pedro comia com os cristãos provindos de outras etnias, conhecidos como gentios, também chamados “helenistas”, porque de cultura helênica ou grega, portanto não judeus. Mas, quando chegavam judeus, Pedro se afastava e já não comia com os gentios. Pela Lei antiga, um judeu não podia comer com um gentio, porque se tornava impuro. Porém, pela assembléia (concílio) de Jerusalém, a decisão era que os não judeus não precisavam observar a Lei mosaica (At 15,19-29).

A lei e as tradições separavam os judeus com uma barreira de prescrições de pureza legal, para que não “se contaminassem” (cf. Jo 18,28; At 10,9-16; 11,1-3). Pedro, esquecendo ou descuidando sua experiência fundamental com Cornélio (At 10-11), por medo de judaizantes ou intrusos (ou pelo bem da paz), evita comer com os pagãos convertidos (também a eucaristia?). Paulo denuncia publicamente semelhante conduta.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2190): Em si, a atitude de Pedro podia justificar-se; em outras circunstâncias, Paulo agirá da mesma forma (At 16,3; 21,26; 1Cor 8,13; Rm 14,21; 1Cor 9,20). Mas nestas, ela dava a entender que só os judeus convertidos praticantes da Lei eram verdadeiros cristãos, e levava assim a construir duas comunidades estranhas uma à outra, mesmo na celebração da ceia eucarística. Ela “dissimulava” (v. 13) os verdadeiros sentimentos de Pedro, justamente, quando precisava torná-los públicos.

Quando vi que não estavam procedendo direito, de acordo com a verdade do Evangelho, disse a Cefas, diante de todos: “Se tu, que és judeu, vives como pagão e não como judeu, como podes obrigar os pagãos a viverem como judeus?” (v. 14).

Paulo repreende Pedro em público, porque este, diante dos judeus cumpre a lei antiga, e diante dos não-judeus segue a lei nova do evangelho.

“De acordo com a verdade do Evangelho”; Paulo já falou da verdade do Evangelho (2,5) que é para ele o fundamento da unidade dos cristãos e a fonte da sua liberdade. A “verdade”, cuja revelação constitui o “Evangelho”, é que Jesus é o Senhor, o Salvador do mundo, não apenas de Israel. Não há mais nem judeu nem grego (3,28); não há mais do que um povo de Deus (cf. Ef 2,14-18), cuja unidade se expressa pela comunidade de vida e de mesa. Pedro parece esquecer a revelação que recebeu a este respeito com o batismo do centurião Cornélio em Cesaréia (At 10,28). Queria evitar o escândalo dos judeu-cristãos que ainda reduzem a Igreja aos limites de Israel? Mas o escândalo da cruz não deve ser evitado, e é ele que está em questão (Gl 5,11; cf. 1Cor 1,23s).

Evocando uma polêmica pública com Pedro, Paulo introduz uma síntese de seu pensamento sobre a salvação do homem pela fé e não pelas obras da Lei (vv. 15-21, omitido pela nossa liturgia). A Bíblia do Peregrino (p. 2794) comenta: Aquele que era pecador e culpado, sem méritos próprios é restabelecido numa situação de filiação divina e amizade com Deus. Não se justifica, porque o pecado não tem justificação; não se reivindica, porque não há uma inocência caluniada para reivindicar. Pelo perdão, graça ou anistia, deixa de seu culpado, fica reabilitado, cancela-se a dívida, anula-se a condenação. A única condição é a adesão ou fé no Messias, que com sua morte salva o homem. Empenhar-se por conseguir a salvação por méritos próprios é tornar inútil e inválida a morte de Cristo. Tudo isso acontecia na conduta hipócrita de Pedro e outros. Pela morte substitutiva de Cristo, o fiel morre com Cristo ao pecado e á lei, e começa a viver com a vida recebida de Cristo; por isso Cristo vive nele.

 

Evangelho: Lc 11,1-4

No evangelho de hoje, ouvimos a oração do Pai-Nosso na versão de Lc (sobre a versão de Mt 6,9-13 que rezamos na missa, cf. o comentário da 3ª feira da 1ª semana da Quaresma ou da 5ª feira da 11ª semana comum).

Um dia, Jesus estava rezando num certo lugar. Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: “Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1).

Lc apresenta Jesus orando em várias ocasiões (3,21; 5,16; 6,12; 9,18. 28s; 10,21; 11,1; 22,32.40-46; 23,34.46). Aqui a introdução em Lc retoma o fio narrativo: A oração a Deus e o amor ao próximo são práticas da fé (cf. 10.25-37). A oração responde à palavra escutada (por Maria no episódio anterior, em 10,39). E agora as duas coisas se fundem porque os discípulos que pedem “escutam” como se deve orar. Orar é a atividade integrante de toda a vida religiosa e pode ser mais importante que os sacrifícios: “Todos os povos chamarão minha casa ‘Casa de oração’” (Is 56,7). Para orar, o AT nos oferece textos abundantes e varados: O saltério inteiro (livro dos 150 salmos) e muitas orações dispersas em textos narrativos, proféticos e sapienciais. Em Lc, o próprio Jesus dá exemplo frequente de oração (3,21; 5,16; 6,12; 9,29); algo tem a ensinar, como João e outros mestres (cf. 5,33).

Jesus respondeu: “Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino (v. 2).

Jesus responde ao pedido, propondo uma oração muito breve, inclusive mais breve que a de Mateus, com cinco pedidos ao invés de sete (Mt 6,9-13). Faltam o pedido “seja feita a tua vontade” (Mt o encontrou na oração de Jesus no monte das oliveiras em 22,42p) e “livra-nos do mal”. Talvez a versão de Lc seja mais próxima do texto original que Jesus ensinou, porque é mais provável alguém (Mt) acrescentar palavras da oração de Jesus do que tirá-las (como se pode verificar no acréscimo antigo “pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre”, ou no costume católico de anexar a oração da Ave-Maria).

A invocação “pai” orienta o resto. Substitui as do Antigo Testamento, JHVH (Javé) = “Senhor”, ou “meu Deus”. No AT, o indivíduo não chamava a Deus de Pai, exceto o rei (Sl 89,27) e um par de textos tardios (Eclo 23,1; 51,10). Jesus nos faz participar da sua relação filial excepcional (cf. 10,21s) ensinando como primeira palavra “Abbá”, palavra em aramaico que significa “painho”, a palavra com que as crianças se dirigem ao próprio pai. Esta palavra ficou cara aos primeiros cristãos (cf. Mc 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6) de modo que entrasse na linguagem sem ser traduzida (como “Amém”, “Hosana”).

“Seja santificado”, ou seja, respeitada ou reconhecida a tua santidade, não seja profanado o teu nome (cf. o três vezes “santo” de Is 6,3 e Sl 99). Também com a conduta pode-se profanar o nome santo, especialmente diante dos pagãos (Ez 36,20-23).

“Venha o teu reinado”: responde em forma de pedido ao anuncio da boa nova (Mc 1,5p); que Deus seja efetivamente quem rege a história dos homens (cf. Sl 82,8; 98). Pede-se porque é um processo: o reino chegou em Jesus e está para chegar em nós.

Dá-nos a cada dia o pão de que precisamos (v. 3).

Depois dos pedidos referentes a Deus (“teu”), parte-se para a esfera humana (“nós”). O discípulo não deve buscar riquezas materiais como luxo, mas apenas o necessário (cf. 12,13-34p; 16,13.19-31; 18,18-30; 19,1-10; At 2,44s; 4,32.34-37 etc.). É duvidoso o significado do adjetivo do pão: se é “cotidiano”, “cada dia”, refere-se a nossa vida aqui (cf. Sl 136,25; Pr 30,7-9); como a vida, também o sustento é dom de Deus. Se é o “pão do amanhã”, refere-se ao escatológico, o que alimenta a vida eterna na casa do Pai. É possível que o autor quisesse abranger tudo. Há uma variação de leitura (que talvez se origine da liturgia batismal: “vosso Espírito Santo venha sobre nós e nos purifique”).

E perdoa-nos os nossos pecados, pois nós também perdoamos a todos os nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação” (v. 4).

Lc interpreta corretamente as “faltas, dívidas, ofensas, pecados” de Mt 6,12, conservando o aspecto jurídico de Mt na segunda parte do pedido (“nossos devedores”). Já no AT, recomenda-se o perdão: “Perdoa a ofensa a teu próximo, e te perdoarão os pecados quando pedires” (Eclo 28,2; cf. 1Sm 24; Lc 6,37). O perdão é dom excelso. No NT, o perdão substitui a vingança (cf. 4,15.23s; Ex 21,23-25; Mt 18,21-35; Lc 6,27-37; 17,3s; 23,24; At 7,60 etc.).

Sobre a tentação (prova, provação), cf. Eclo 2,1; 33,1; Sb 3,5). Lc não traz o segundo membro do pedido de Mt (“livra-nos do mal”, ou seja, do maligno), mas também ele atribui a tentação a Satanás (4,2.13; 8,12-13; cf. 22,31).

O site da CNBB comenta: Jesus ensinou seus discípulos a rezar, mas isso não quer dizer que Jesus os ensinou a decorar um monte de palavras e a imitarem papagaio, repetindo as palavras que aprenderam. A oração era uma prática constante da vida de Jesus, e muito mais importante do que as palavras que os discípulos deveriam dizer é imitar a atitude de encontro filial de Jesus com o Pai e uma série de valores que deveriam ser conhecidos e experimentados, de modo que a oração expresse uma forma de vida segundo valores do Reino, como a fraternidade, a partilha, o perdão e a própria presença de Deus no coração e na vida das pessoas, e expresse também a nossa atitude filial diante de nosso Deus, que também é nosso Pai.

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