05 de outubro de 2017 – Quinta-feira, 26ª semana

Leitura: Ne 8,1-4a.5-6.7b-12

Os livros de Esdras e Neemias fazem parte da história Cronista (1-2Cr) e continuam a história de Israel, relatando os acontecimentos entre 538 e 400 a.C. O tema central é a organização da comunidade, que se formou a partir da volta dos judeus exilados na Babilônia. Em conjunto, os vinte e três capítulos não se encontram na ordem cronológica e literária original. Para entender nossa leitura de hoje, precisa saber a sequência histórica:

No ano 445, Neemias, funcionário judeu na corte do rei persa Artaxerxes, vai a Jerusalém para construção da muralha (Ne 1-2, leitura de ontem) e é nomeado governador (Ne 5,14). Em 433, Neemias volta para Susa na Pérsia (Ne 13) e o profeta Malaquias atua em Jerusalém. Em 430, Neemias e Esdras estão em Jerusalém para a leitura da lei e o início das reformas (Ne 8-10; 13). Em 429, Artaxerxes autoriza Esdras a promulgar a Lei (Esd 7-8).

Logica e cronologicamente, Ne 8 é a continuação de Esd 8,36: Esdras viera da Babilônia para promulgar a lei (Esd 7,25s). O cronista utiliza aqui o relatório de Esdras.

Todo o povo se reuniu como um só homem na praça que fica defronte da porta das Águas, e pediu ao escriba Esdras que trouxesse o livro da Lei de Moisés, que o Senhor havia prescrito a Israel. O sacerdote Esdras apresentou a Lei diante da assembleia de homens, de mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. Era o primeiro dia do sétimo mês (vv. 1-2).

Esdras que era ao mesmo tempo escriba e sacerdote (v. 9) aparece aqui pela primeira vez no livro de Ne. Dá impressão que a cerimônia é celebrada por iniciativa popular e em lugares profanos, ao passo que as cerimônias litúrgicas são convocadas pelos sacerdotes. Atua Esdras, não o sumo sacerdote (Elisiab ou Joiad): talvez porque este não era partidário ou entusiasta da reforma. Dt 31,12 menciona “homens, mulheres, crianças e migrantes”. Um acréscimo do cap. 13 inclui também as crianças antes do uso da razão. O lugar da praça é a sudeste do Templo, num território não sagrado.

O livro lido pode ser o Deuteronômio de Josias (cf. 2Rs 22), talvez ampliado (Dt 4,44-28,68), ou um Pentateuco relativamente completo, ou seja, narração, lei e parênese, que oferecia leitura para vários dias. Esta primeira parte da Bíblia (cinco livros: penta-teuco) talvez já constituísse a Torá (Lei), cuja autoridade aumentará cada vez mais no judaísmo (cf. Esd 7,14).

O “primeiro dia do sétimo mês” ” corresponde a meados de setembro. A leitura da Lei deverá ser repetida a cada sete anos na festa das Tendas (v. 14) que inicia no décimo quinto dia do sétimo mês (sukkot, a festa dos tabernáculos ou cabanas em outubro; cf. Dt 31,9-13; Lv 23,33-43; Nm 29,12-38). Antes do exílio, esta festa alegre do sétimo mês (setembro-outubro) inaugurava o “ano novo” (Ex 23,16; 34,22; Lv 23,24s; Nm 29,1). Salomão realizou a trasladação da Arca da Aliança e a inauguração do templo durante esta festa (1Rs 8,2). A arca da Aliança que continha as tábuas da lei, porém, foi perdida na destruição de Jerusalém em 586 a.C. pelos babilônios e nunca mais encontrada (cf. Jr 3,16; a Igreja Copta da Etiópia afirma que guarda esta aliança em segredo).

Assim, na praça que fica defronte da porta das Águas, Esdras fez a leitura do livro, desde o amanhecer até ao meio-dia, na presença dos homens, das mulheres e de todos os que eram capazes de compreender. E todo o povo escutava com atenção a leitura do livro da Lei (v. 3).

Nos seus últimos dias (cf. Dt 31,9-13), Moisés deu a ordem da leitura ritual da lei; em Ex 24,3-8 a leitura no Sinai foi acompanhada por um rito de sangue da aliança.

Impressionante a capacidade do povo de prestar atenção à leitura “desde o amanhecer até ao meio-dia”.

Esdras, o escriba, estava de pé sobre um estrado de madeira, erguido para esse fim (v. 4a).

Com Esdras, aparecem quatorze pessoas na tribuna (v. 4b), leigos importantes cujos nomes foram omitidos na leitura de hoje (como também os dos levitas em v. 7).

Estando num lugar mais alto, ele abriu o livro à vista de todo o povo. E, quando o abriu, todo o povo ficou de pé. Esdras bendisse o Senhor, o grande Deus, e todo o povo respondeu, levantando as mãos: ”Amém! Amém!” Depois inclinaram-se e prostraram-se diante do Senhor, com o rosto em terra (vv. 5-6).

O rito indica que o povo escuta a leitura como lei ou instrução do Senhor; encontramos todos os elementos da liturgia da palavra na sinagoga e na Igreja, diferente do culto celebrado no templo onde os sacrifícios eram o elemento central. Quando o templo estava em ruínas, durante o exílio, valorizou-se a palavra e surgiu a “sinagoga” (uma reunião de pelo menos dez homens para rezar e ouvir a Palavra de Deus). Os elementos são a leitura proferida num ambão (mesa da palavra, púlpito), a explicação (exortação, homilia) e a benção, o povo se levanta e responde por aclamações (a palavra hebraica Amén significa “creio firmemente, confio que é verdade”, etc.) e gestos de devoção, oração (erguer as mãos) e adoração (prostração).

Os levitas explicavam a Lei ao povo, e cada um ficou em seu lugar. E leram clara e distintamente o livro da Lei de Deus e explicaram seu sentido, de maneira que se pudesse compreender a leitura (vv. 7b-8).

O redator cronista acrescentou este v. 7 querendo dar aos levitas a importante função que eles exercem no culto mais recente (na versão grega, só Esdras leu em v. 8). Os levitas, cujos nomes (v. 7a) nossa liturgia de hoje omite, “explicavam” a leitura.

A Bíblia do Peregrino (p. 849) comenta: É duvidoso e discutido o sentido da palavra hebraica mprsh. Se lhe damos o sentido de “traduzir”, indicaria que o povo já não entendia o hebraico e já precisava de uma tradução aramaica. Se traduzimos “por partes”, indicaria que do púlpito Esdras lia uma seção, e os levitas a repetiam em grupos a seu alcance e a comentavam.

O governador Neemias e Esdras, sacerdote e escriba, e os levitas que instruíam o povo, disseram a todos: “Este é um dia consagrado ao Senhor, vosso Deus! Não fiqueis tristes nem choreis”, pois todo o povo chorava ao ouvir as palavras da Lei (v. 9).

Junto a Esdras está governador Neemias (v. 9), em bom acordo do poder civil com um representante do religioso; como na época da reconstrução do templo (cf. Ag 1,1 em 520 a.C.) Zorobabel (sucessor de Davi) estava junto com Josué (sumo sacerdote). Alguns, porém, pensam que a presença de Neemias no v. 9 se deve a um acréscimo, porque o livro apócrifo 3 Esd omite “Neemias”; o texto grego omite “governador” (lit. “sua excelência”); essas menções vem do redator.

“Todo o povo chorava”; este choro podia ser devido às ameaças e repreensões que escutavam (como em Jz). Era um gesto de pesar antecipado, reservado para a liturgia penitencial. Pode ser uma alusão ao Yom Kippur, o dia das Expiações (Lv 16). Entre o primeiro dia do sétimo mês e o dia 15, quando começa a festa alegre das cabanas, celebra-se o dia das Expiações no dia 10. Este grande dia de penitência que devia constar entre a leitura da Lei por Esdras e a festa das cabanas é ignorado em nossa narrativa, que antecipa o tempo de alegria.

E Neemias disse-lhes: “Ide para vossas casas e comei carnes gordas, tomai bebidas doces
e reparti com aqueles que nada prepararam, pois este dia é santo para o nosso Senhor. Não fiqueis tristes, porque a alegria do Senhor será a vossa força”
(v. 10). 

Pode se traduzir: “a alegria (a festa) do Senhor será vossa força”. A alegria deve ser partilhada entre todos, como ensina Dt 26,11 e 16,11. Em Ex 24,1-11, diante do povo reunido no pé do monte Sinai, Moisés leu as palavras de Deus (10 mandamento e talvez o código da aliança), o povo proclamou seu acordo, Moisés realizou o rito da aliança e depois celebrou-se uma refeição mística com os representantes do povo.

E os levitas acalmavam todo o povo, dizendo: “Ficai tranquilos; hoje é um dia santo. Não vos aflijais!” E todo o povo se retirou para comer e beber. Distribuíram também aos outros e expandiram-se em grande alegria, pois haviam entendido as palavras que lhes tinham sido explicadas (vv. 11-12).

Toda esta assembleia relatada em Ne 8 pode se considerar como fundação do judaísmo: o povo que sobreviveu o exílio quer viver agora segundo a Lei (Torá), bem entendida como orientação e felicidade, ou seja, “graça” como diria Paulo (cf. Rm 9,4s). A religião do judaísmo (como também do cristianismo e do islamismo) é uma religião do livro com o qual sobreviveu até hoje mesmo sem templo. A explicação da Palavra (por ex. catequese, homilia) traz alegria (cf. o documento “A Alegria do Evangelho” do Papa Francisco).

 

Evangelho: Lc 10,1-9

Jesus enviou os doze apóstolos (“apóstolo” quer dizer “enviado”, cf. 6,13) para anunciarem o reino de Deus e curar os doentes (cf. v. 9) nos povoados da Galileia. Este envio foi transmitido duas vezes por escrito, pelo evangelista Marcos (Mc 6,6-13) e por uma fonte perdida chamada Q (uma coleção de palavras de Jesus que Mt e Lc usaram além de copiarem de Mc). Enquanto Mt combinou estas duas versões num discurso único (Mt 10,7-16), Lc as manteve distintas em dois discursos: um dirigido aos doze apóstolos (9,1-6) – doze é o número das tribos de Israel (cf. Ex 1,1-5; 24,4; Ap 7,4-8) – e outro dirigido aos 72 (ou 70) discípulos, número tradicional das nações pagas (cf. Gn 10). Para Lc é importante a participação de outros discípulos e discípulas além dos Doze (cf. 8,1-3; 24,9-10.13-35; At 1,14.21-22; 2,1.41 etc.).

O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir (v. 1).

Jesus os enviou “dois a dois” (Mc 6,6), “na sua frente” não para preparar hospedagem e comida como em 9,52 (cf. 21,29-30; 22,8), mas como precursores espirituais (cf. Lc 24,29-32; Ap 3,20). Aqui Lc pensa já na futura missão nos países pagãos (cf. At 1,8).

E dizia-lhes: A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita. Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos (vv. 2-3).

Estes vv. 2-3 sobre a falta dos trabalhadores na grande messe (missão) e dos cordeiros no meio dos lobos são da fonte Q (faltam em Mc 6, mas estão em Mt 9,37-38; 10,16).  À imagem da pesca (5,1-10; Mt 4,19p) se acrescentam a do ceifador (Sl 126) e a clássica do pastor (Jr 23; Ez 34; Sl 23; 80) e que continuam a ser usadas para se descrever o apostolado na Igreja. Jesus assume o ofício de fazendeiro e bom pastor e deixará a seus discípulos a tarefa de colher (cf. Jo 4,37-38; 10).

Estranha, porém, a conduta do bom pastor (cf. Sl 23; Jo 10) de enviar cordeiros no meio de lobos! Mas ele precisa prepará-los para a realidade inevitável de hostilidades futuras (cf. o segundo volume de Lc, os Atos dos Apóstolos, e Paulo em 1Cor 15,31; 2Cor 4,10s). Como cordeiro no meio de lobos, assim os judeus descreviam sua situação no meio das nações, e assim as testemunhas de Jesus vão enfrentar situações semelhantes ao anunciarem o evangelho em Israel e no mundo (cf. At 1,8). Importante que, como cordeiros, não devam usar de violência ao divulgar sua religião (cf. 6,27-36p; 22,35-38; At 7,60 etc.), recomendação nem sempre seguida na história da Igreja. “Eu vos envio” indica a presença eficaz do Senhor.

Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho! Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós. Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa (vv. 4-7).

As recomendações de não levar quase nada pelo caminho estavam em Mc 6,8-9 (lá pelo menos sandálias e um cajado são permitidos) e em Q (Mt 10,9-10), mas Q afirmou ainda que ”o trabalhador merece o seu salário” (v. 7b; Mt 10,10), ou seja, o missionário pode contar com seu sustento pela comunidade (cf. 1Tm 5,17-18 que estabelece dois salários para presbíteros). Em 1Cor 9,14, Paulo confirma estas palavras de Jesus (mas não se vale deste direito nos vv. 15-18).

Também a ordem de “desejar a paz” que voltará se não for um amigo da paz (vv. 5-6) foi transmitida pela fonte Q (Mt 10,11-13). “Shalom” (Paz em hebraico) é a saudação comum em Israel até hoje e significa não só o silêncio das armas, mas a plenitude dos bens (saúde, educação, trabalho, prosperidade,…). As religiões devem transmitir a paz (em árabe, a palavra paz é salem, daí deriva islam e muçulmano).

Além da introdução com os novos enviados, nosso evangelista Lc acrescentou mais dois detalhes. O primeiro: “Não cumprimenteis ninguém pelo caminho” (v. 4b). Certamente Lc não quer que o missionário seja mal educado, mas a urgência da Boa Nova (em grego evangelho) não permite que se perca no caminho em conversas fúteis (cf. a radicalidade no episódio anterior em 9,57-62).

O segundo detalhe, “permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem” (v. 7a), quer evitar missionários vagabundos e pede humildade e adaptação. Hoje chamamos isso de inculturação. A Boa Nova deve-se adaptar à língua e aos bons costumes do povo que a recebe. Isso significa certo desprendimento do missionário, mas os valores de cada povo também enriquecem a ele como a toda a Igreja católica.

Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de Deus está próximo de vós” (v. 9).

“O reino de Deus está próximo de vós” (v. 9) é a mensagem central de Jesus (cf. Mc 1,15 e o comentário da segunda-feira da primeira semana). O anúncio dos discípulos deve corresponder a esta boa nova. Os missionários devem seguir o exemplo de Cristo, levar uma vida simples junto com o povo sofrido, confiando em Deus e não nas coisas materiais nem na violência, ao final devem anunciar o reino de Deus e não o estilo de vida consumista.

Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: “Até a poeira de vossa cidade, que se apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós”. No entanto, sabei que o Reino de Deus está próximo! Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada com menos rigor do que essa cidade (vv. 10-12).

Os discípulos levam a paz do messias que os amantes da paz saberão reconhecer (cf. vv. 5-6; Sl 120; 122). Mas a rejeição será fatal (Lc 19,42-44), acarretará um castigo pior que o das cidades Sodoma e Gomorra que violaram a hospitalidade (Gn 18-19; Sb 19,13-17).

A hospitalidade é um valor grande na antiguidade, também para judeus e cristãos (cf. 10,38-42; At 16,15; Rm 12,13; Hb 13,2; Gn 18-19; Tb 5,4s; Jz 6,11-24; 19 etc.). Sacudir a poeira dos pés é uma ação simbólica que toma o pó como sinal (2Rs 5,17): nado do território ignorante e culpado se apegue aos discípulos (At 13,51). A “palavra” da boa notícia se torna juízo e condenação para quem a rejeita. O evangelho, porém, não se deixa deter; Lc insiste na proximidade do reino, na vitória do bem sobre o mal; será libertação para uns, catástrofe para outros (cf. 2,34; 21,28).

O site da CNBB comenta: Jesus escolheu outros setenta e dois discípulos, que não eram os Apóstolos e os enviou à sua frente aos lugares onde ele deveria ir, nos mostrando, assim, que a obra evangelizadora da Igreja não é uma atividade exclusiva dos que pertencem à sua hierarquia, mas é compromisso de todos os que lhe pertencem, que são Igreja, porque todos são, pela graça do batismo, operários da messe do Senhor. E os leigos e leigas, de um modo especial, estão sujeitos às ameaças do mundo por isso são enviados como cordeiros no meio de lobos, uma vez que irão testemunhar, no meio do mundo, os valores que não são do mundo, despertando para si o ódio do mundo, que rejeita o Reino de Deus que é anunciado.

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