06 de agosto de 2017 – Domingo – Transfiguração do Senhor (Ano A)

 

1ª Leitura: Dn 7,9-10.13-14 (pode ser substituída pela 2ª leitura)

A leitura da festa de hoje nos apresenta o “filho do homem” na visão apocalíptica de Daniel. Nos livros proféticos antigos encontramos pregações de profetas enviados por Deus em missão, mas o autor de Dn se esconde atrás de um pseudônimo usando o nome de “Daniel”, um sábio antigo (Ez 14,4-20; 28,3). Os acontecimentos relatados em Dn 11, porém, indicam a verdadeira data desta obra: durante a perseguição do rei selêucida (grego-sírio) Antíoco IV Epífanes entre 167 e 164 a.C.

O livro de Daniel encontra-se na Bíblia grega e latina (e portuguesa) entre os livros proféticos, mas na Bíblia hebraica faz parte dos “outros escritos”, ou seja, sapienciais. De fato, é de outro gênero literário do que as pregações dos profetas antigos: Os caps. 1-6 são narrativos; os caps. 7-12 apresentam visões apocalípticas (revelações sobre o fim do mundo). Partes do livro foram escritos em aramaico, o que indica uma data mais recente, porque o hebraico estava saindo do uso. As narrativas dos caps. 13-14 e o cântico dos três jovens na fornalha em 3,24-90 foram escritos em grego, portanto faltam na Bíblia hebraica (também na protestante).

Os caps. 1-6 são histórias edificantes de um jovem sábio na corte do rei (como outros escritos de sabedoria, cf. Est e Tb; um exemplo antigo é a novela de José no Egito em Gn 37-50). O cap. 6 apresenta Daniel na cova dos leões. O cap. 7 é o nexo entre as duas partes do livro e é comentado na visão do cap. 8, mas tem um paralelo no cap. 2 (no sonho do rei Nabucodonosor, quatro reinos são destruídos por um quinto, uma pedra que representa “o reino de Deus”).

Diferente dos profetas antigos que anunciavam um dia de Javé para fazer justiça aos fiéis de Israel (Am 5,18s), o gênero apocalíptico é mais universal e escatológico: O reino de Deus se estenderá sobre todos os povos e será sem fim. Dn 12,2 fala sobre a ressurreição dos mortos para a vida ou o opróbrio eterno. A expectativa do fim do mundo está presente no livro todo (Dn 2,44; 3,33; 4,31; 7,14).

O objetivo do livro de Dn (e do gênero apocalíptico, cf. o Ap de João no NT) é sustentar a fé e a esperança dos fiéis perseguidos usando uma linguagem secreta e simbólica que o inimigo não consegue entender de imediato e pode confundir, por ex. com uma fábula de animais em cap. 7, pois começa falar de animais ou “bestas-feras” que na verdade significam os reinos pagãos (os babilônios no v. 4; os medas no v. 5; os persas no v. 6 e os gregos nos vv. 7-8; os dez chifres são os dez reis selêucidas, o último é o rei arrogante Antíoco IV, perseguidor na época do autor (cf. a interpretação nos vv. 15-28; cf. também as bestas feras no Ap 13). Numa interpretação protestante, a última besta-fera seria a Igreja Católica de Roma e o Papa a besta-fera; esta polêmica remonta já a M. Lutero no séc. XVI. O papa daquela época chamou Lutero de Anticristo. Hoje, graças a Deus, as Igrejas Católicas e a Luterana se entendem bem, se respeitam e trabalham juntos no ecumenismo.

Eu continuava olhando até que foram colocados uns tronos, e um Ancião de muitos dias aí tomou lugar. Sua veste era branca como neve e os cabelos da cabeça, como lã pura; seu trono eram chamas de fogo, e as rodas do trono, como fogo em brasa. Derramava-se aí um rio de fogo que nascia diante dele; serviam-no milhares de milhares, e milhões de milhões assistiam-no ao trono; foi instalado o tribunal e os livros foram abertos (vv. 9-10).

Uma besta-fera (reino pagão) sempre destruiu a outra. O último chifre (rei Antíoco IV) proferia ainda “palavras arrogantes” (v. 9), mas a intervenção definitiva de Deus já está se preparando. Acontecerá o juízo de um “ancião” (Deus), cujo “trono” com “rodas como fogo”, ardente e deslumbrante, recorda o carro divino na visão de Ez 1. O fogo é elemento divino (cf. Gn 15,17s; Ex 13,22; 19,18; 1Rs 18,38s) e serve na separação de metais (separar o ouro de outros elementos menos preciosos, cf. 1Pd 1,7; Ml 3,2s), assim é elemento da justiça divina que separa os bons dos maus (cf. Mt 13,41s.49s). “Branco” é a cor da pureza (vestes) e da sabedoria (cabelos). Como um rei do antigo oriente, Deus é servido por “milhares e milhões” (de anjos).

Haverá mais tronos: os santos são convocados a julgar com Ele (cf. Mt 19,28; Lk 22,30; Ap 3,2; 20,4). Nos “livros” do “tribunal” estão registrados todos os atos humanos, bons e maus (cf. Jr 17,1; Ml 3,16; Sl 40,8; 56,9; Lc 10,20; Ap 20,12).

Continuei insistindo na visão noturna, e eis que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem, aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os povos, nações e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se dissolverá (vv. 13-14).

Depois da destituição e destruição das bestas-feras, aparece nas nuvens outra figura, não mais uma fera animal, mas um ser humano, um “filho de homem”, que receberá o “poder” de um reino “eterno” sobre “todos os povos” que jamais passará (cf. Lc 1,32s).

Em seguida, em vv. 17-18 mesmo explica-se: “os que receberão o reino são os santos do Altíssimo”, ou seja, os que não desistem da sua fé (interpretação coletiva: o povo santo, (cf. Ex 19,6; Nm 16,3; Sl 34,10; Is 4,3; 1Pd 2,9), mas depois pode designar também o representante deste povo fiel, o rei-messias (esta interpretação individual já se encontra no Apocalipse de Henoc, um livro apócrifo do judaísmo: o juízo sobre mundo será entregue a um “filho do homem”; cf. Mt 25,31ss).

Jesus usa muito desse termo para falar de si (Mt 8,20; Mc 2,27p; 13,24p, … ), porque “filho do homem” pode significar simplesmente “ser humano” (lit. “filho de Adão”, cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.) como designar também o messias, juiz e salvador não só de Israel, mas do mundo inteiro. Este, porém, não fará guerra nacionalista como Davi ou como os macabeus (contemporâneos do autor de Dn), ou como os zelotes (contemporâneos de Jesus, cf. Barrabás e At 5,36-37). Nos anúncios da sua paixão, Jesus associa este Filho do homem de origem celeste (vindo nas nuvens, cf. Mc 13,26; 14,62) ao sofrimento do Servo de Deus de Is 53 (cf. Mc 8,31p etc.).

No contexto da visão toda de Dn, pode-se afirmar que o Reino de Deus não é tirania nem capitalismo selvagem, não tem feições predadoras como animais bestas-feras, mas tem um rosto humano, onde não valem os poderes dos mais fortes, mas os direitos humanos. De maneira semelhante, L. Boff fala de Jesus: “Tal humano, só Deus pode ser”. Assim cantamos de Jesus, “rosto divino do homem e rosto humano de Deus”.

Na Vida Pastoral (2017) Aíla L. Pinheiro de Andrade comenta: O Filho do Homem é verdadeiramente humano, mas sua origem é divina, pois ele vem sobre as nuvens do céu. E vem para inaugurar um reino diferente que conduz a história da humanidade à sua plenitude, fazendo com que o bem, a justiça e o amor sejam as cores que pintam o novo mundo belo e agradável a Deus, um mundo transfigurado.

2ª leitura: 2Pd 1,16-19 (opcional)

Pelos biblistas, esta carta é considerada a mais nova de todo Novo Testamento (NT). Ela quer ser o “testamento” do grande apóstolo Pedro que aparece próximo da morte (1,14). O autor escreve em nome de Pedro, mas suas recomendações se referem ao início do século II, quando efetivamente esta carta foi escrita.

Escrevendo em tom de despedida, o autor reforça sua identificação com Pedro, recordando momentos da sua vida com Jesus, de modo especial a transfiguração (cf. evangelho de hoje).

Não foi seguindo fábulas habilmente inventadas que vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, mas sim, por termos sido testemunhas oculares da sua majestade (v. 16).

Nossa fé cristã não se baseia em “fábulas habilmente inventadas” (lit. “mitos sofisticados”; cf. 1Tm 1,4; 4,7; Tt 1,14; a mitologia greco-romana e o poeta Homero), mas na convivência dos apóstolos com Jesus histórico.

Os falsos mestres (2,1) gnósticos arquitetavam especulações gratuitas em apoio dos seus erros sobre a volta de Cristo no fim dos tempos (3,4-5; cf. 1Tm 1,4; 6,20; etc.). Os apóstolos são “testemunhas oculares” (cf. Lc 1,2; At 1,21s; 2,32; 3,15; 5,32; 10,40s; 1Jo 1,1-4) da “majestade” (no NT, é título ou equivalente de divindade; cf. Lc 9,43; At 19,27). O termo “testemunhas oculares” evoca aqui a iniciação nos mistérios que alcança o supremo grau pela visão.

Os apóstolos testemunharam o “poder” dos milagres e da ressurreição, mas não a sua “vinda” (parusia), ou seja, a sua volta gloriosa de Jesus no fim dos tempos, a não ser que se refere à sua primeira vinda na terra (cf. Jo 1,14) ou sua vinda após a ressurreição nas primeiras aparições aos apóstolos, incluindo Pedro (cf. 1Cor 15,5-8; Lc 24,34; Jo 20,19.24.26; 21). Mas na antiguidade, o termo parusia significa a chegada, a entrada solene de um soberano. Assim se esperava no fim do mundo a vinda de Cristo como “rei dos reis e Senhor dos senhores” (1Tm 6,15; Ap 17,14; 19,16) para tomar posse da criação toda e levá-la a plenitude perfeita.

Mas a demora desta vinda (parusia) de Cristo desanimou os cristãos da época do autor que quer dar uma resposta. No cap. 3 explica esta demora com o calendário divino diferente do humano (3,8: “para o Senhor, mil anos são como um dia”; cf. Sl 90,4) e com a paciência de Deus (3,9: “não quer alguém se perca, mas que todos se arrependam”).

Efetivamente, ele recebeu honra e glória da parte de Deus Pai, quando do seio da esplêndida glória se fez ouvir aquela voz que dizia: “Este é o meu Filho bem-amado, no qual ponho o meu bem-querer”. Esta voz, nós a ouvimos, vinda do céu, quando estávamos com ele no monte santo (vv. 17-18).

Para o autor, a transfiguração parece uma antecipação da vinda (parusia) do Senhor, porque antecipa a “honra e glória” que o ressuscitado recebe sentado à direita do Pai (cf. Mc 14,62p; At 7,55s; Fl 2,9-11). “Do seio da esplêndida glória” se refere a origem divina da luz na transfiguração que os três apóstolos mais íntimos (Pedro, Tiago e João) viram “no monte santo”; esta expressão pode evocar o monte Sião em Jerusalém (Sl 2,6; Is 11,9 etc.) ou, mais provavelmente, aludir ao monte Sinai/Horeb como tipo de montanha da revelação (já no relato dos evangelistas). No monte Sinai, a glória do Senhor apareceu na forma de uma nuvem luminosa (também no monte Sião, no templo, cf. 1Rs 8,10-12). Moisés e Elias subiram ao Sinai/Horeb para ouvir a voz de Deus (Ex 24,16-18 etc.; 1Rs 19,8s). Esta voz, os três apóstolos (“nós”) também ouviram quando, “vinda do céu”, declarou Jesus “o meu Filho bem-amado, no qual ponho o meu bem-querer” (cf. Mc 9,1-5p).

E assim se nos tornou ainda mais firme a palavra da profecia, que fazeis bem em ter diante dos olhos, como lâmpada que brilha em lugar escuro, até clarear o dia e levantar-se a estrela da manhã em vossos corações (v. 19).

O autor fala da palavra da profecia. Em Ap 22,7, a voz do céu também se entende como “palavras proféticas”. Além da voz do Pai, a transfiguração testemunha através das figuras de Moisés e Elias a solidez e o cumprimento das profecias do Antigo Testamento (AT) que anunciavam a vinda do messias (cf. Dt 18,15; Is 9,5; 11,1s; 42,1 etc.). A transfiguração mostrou que Jesus é realmente o messias; “assim se nos tornou ainda mais firme a palavra da profecia”. A vinda de Cristo glorioso ainda não se tornou realidade, mas devemos crer nesta profecia apesar da demora.

Assim confirmadas, as profecias e toda Escritura são lâmpada que ilumina nossa noite, até que amanheça o sol (chamado aqui de “estrela da manhã”, título do messias, cf. Nm 24,17; Ml 3,20; Ap 22,16), ou seja, até a vinda da sua glória (cf. Sl 57; Is 60 e o anúncio pascal: “ao raiar do primeiro dia da semana…”; cf. Ap 2,28; 22,16; Lc 1,78s). Esta luz que é Cristo vai iluminar o mundo na sua parusia, mas desde já em nossos corações.

Antes de passar à discussão a respeito dos falsos mestres e da demora da parusia, o autor insiste na força da tradição, na luz que a profecia projeta para os dias atuais. As profecias, porém, não devem ser interpretadas de maneira subjetiva, conforme o interesse de cada um, mas é preciso ver neles Deus que inspirou a voz dos profetas (vv. 20s).

 

Evangelho: Mt 17,1-9 (Ano A)

Este evangelho sempre é lido no segundo domingo da Quaresma e repetido na festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto) na versão do evangelista do ano A, B ou C.

Depois da profissão de Pedro (Mt 16,16: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”) e anunciar sua paixão, morte e ressurreição (v. 22p), a transfiguração ilumina a subida do Filho do Homem a Jerusalém (onde talvez estivesse situada pela tradição pré-sinótica, antes de Mc). Aos discípulos, que não podem compreender o caminho que seu mestre quer seguir, Deus faz vislumbrar a glória misteriosa do seu Filho e exige deles que escutem seu ensinamento. O relato de Mt é uma cópia de Mc 9,2-10 (com algumas mudanças) seguindo esquema primitivo de uma revelação apocalíptica (cf. Dn 10,1-6). A interpretação não é fácil, porque não se sabe bem a origem desta história que alude a muitos motivos do Antigo Testamento (AT).

Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol
e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus
(vv. 1-3).

Nossa liturgia cortou a introdução “Seis dias depois”, o que lembra a festa das tendas que começa seis dias depois do dia da reconciliação (Lv 23,27.43). Pedro queria construir tendas em v. 4.

Pedro, João e Tiago são os discípulos mais íntimos que estarão com Jesus também na oração no monte das oliveiras (26,37; cf. 4,18.21; 20,20-23). A “montanha” deve ser simbólica (sobretudo em Mt, cf. 4,8-10; 5,1s; 28,16). Na tradição é o monte Tabor (593m) perto de Nazaré. Outros pensam numa montanha mais alta, o monte Hermon (“brancura”, 2840m) com sua neve no Líbano, onde nasce o Rio Jordão; fica perto de Cesareia Filipe, onde Pedro professou sua fé (vv. 13-23).  Mas junto com Moisés e Elias lembra o monte Horeb/Sinai, onde Deus se manifestou em raios e nuvens e falou ao seu povo (Ex 19,16; 20,18-21) e a Elias (1Rs 19,8-18). Em Ex 24,1.9.15s, Moisés subiu ao monte Sinai também com três homens escolhidos, o monte estava coberta de uma nuvem; no sétimo dia, Deus o chama de dentro da nuvem. Quando Moisés desceu da montanha, seu rosto estava brilhando (Ex 34,29-35).

Mc e Mt usam o verbo “transfigurar” que, em outras passagens, designa uma transformação espiritual (Rm 12,2; 2Cor 3,18). Os três sinóticos (Mc, Mt e Lc) assinalam a transformação perceptível da roupa; Mt e Lc mencionam que ela afeta também o rosto. Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrantes (cf. Dn 7,9 na leitura de hoje) são um dos sinais da “glória” celeste que é concedida aos eleitos tornando-os semelhantes aos anjos (cf. 2,9; 10,18; 11,36; 17,24; 24,4; Mt 28,3; At 9.3; 12,7; 22,6; 26,13; Ap 3,4; 4,4). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente uma antecipação. Em Mt, a roupa de Jesus se assemelha a do “anjo do Senhor” que abre o túmulo vazio no domingo da ressurreição (28,2s).

Em Mc, apenas as roupas de Jesus ficaram brancas “como nenhuma lavandeira na terra as poderia alvejar” (Mc 9,3). Mt e Lc 9,29 (ou talvez, antes deles, um redator de Mc, Deuteromarcos) substituíram a comparação com a “lavandeira” pela notícia sobre a mudança no rosto de Jesus: “como o sol” (típico do gênero apocalíptico, cf. os justos em Dn 12,2s e Mt 13,43; a descrição do anjo em Dn 10,5s), em Mt, em paralelo com as roupas “como a luz”.

“Moisés e Elias” representam o mundo celestial e o AT, “a Lei e os Profetas” (um representando a Lei e o outro, os Profetas, cf. Mt 5,17; 7,12; 11,13; 22,40; Lc 16,16.29.31; 24,27.44; no culto da sinagoga há uma leitura da Lei, outra dos Profetas, cf. At 13,15). Eles aparecem aqui como precursores ou testemunhas da Aliança.

A lei judaica exige sempre o testemunho de duas pessoas para que as palavras e as ações de alguém tenham crédito (Dt 19,15), temos aqui Moisés e Elias, os principais representantes da fé israelita, quer dizer, a Lei e os profetas, assinalando que o caminho de Jesus – rejeitado pelos líderes religiosos de Israel como perigoso para a identidade e esperança do povo – cumpre tudo que a Escritura afirmava do Messias (testemunho valioso para a Mt que sempre cita o AT para mostrar o cumprimento das Escrituras em Jesus; cf. 5,17-19).

“Conversando” com eles, Jesus se demonstra mais do que um simples carpinteiro, médico ou pregador. No pé da igualdade com estas autoridades ilustres do passado parece pertencer a este mundo da eternidade divina.

Abre-se uma janela no céu, antecipa-se a ressurreição. Elias devia ser precursor do Messias (Ml 3,23; cf. Sr 48,10), papel com que se identificou João Batista (Mt 11,14; 17,10-13p; cf. Lc 1,17) morto por ordem de Herodes (Mt 14,1-12p). Ao mesmo tempo aparece Moisés (cf. Ap 11,3-6), cujo rosto se tornava luminoso no monte Sinai (Ex 34,29s) e cuja assunção o judaísmo admite, tanto quanto a de Elias (2Rs 2,11) e de Henoc (Gn 5,24).

Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias.” Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (vv. 4-5).

A sugestão de construir tendas deve-se a Mc que pode ter aludido, com sua indicação “após seis dias” (Mc 9,2), ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular dos judeus (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13). Ela começa “seis dias depois” do grande dia das expiações e dura sete dias (Lv 23,34.36). Ou Pedro pensa em hospitalidade para três figuras celestiais (como Abraão em Gn 18; cf. as moradas em Jo 14,2). Ou alude à morada dos celestiais no monte (Is 2,2; 25,6s.10s), como a habitação divina no templo, na cidade santa (cf. Ez 37,27; Zc 2,14; Ap 21,3). Ou quer evitar o sofrimento de Jesus como em 16,22, porque no monte estaria seguro e ninguém saberia onde estava.

Na Vida Pastoral (2017), Aíla L. Pinheiro de Andrade comenta: A transfiguração é apenas uma prefiguração, não uma experiência pascal completa, porque Jesus ainda não havia passado pela cruz. Para que a transfiguração fosse completa, os discípulos foram convidados a tomar o caminho da entrega da vida, que culminaria na autêntica Páscoa. Por isso não lhes foi permitido fazer as três tendas; eles necessitavam descer o monte e doar a vida. O desejo dos discípulos de ficar ali para sempre, numa glorificação antecipada, sem cruz, não pôde se cumprir enquanto tantas pessoas ainda sofriam na terra.

Não basta só o testemunho de Moisés e Elias, agora o próprio Deus se manifesta sobre Jesus. Na tradição bíblica, a nuvem é sinal de teofania (cf. 2Mc 2,8), a “nuvem luminosa” simboliza a “glória” de Javé, sua presença acompanhava o êxodo (saída; Ex 13,21s; 14,24) e a caminhada pelo deserto no monte Sinai (Ex 19,16; 24,15s; cf. 16,10), presente na tenda da reunião (Ex 33,9s; 40,34s), como depois no templo de Jerusalém (1Rs 8,10-12); cf. a alusão em Lc 1,35. Segundo uma tradição judaica, uma nuvem estava também no monte Moria, onde Abraão sacrificou Isaac, seu “amado filho” (Gn 22,2.12.16).

No batismo de Jesus (3,17), a mesma voz do céu designou Jesus como o “meu Filho amado” (cf. Sl 2,7), lembrando o Servo de Javé (Is 42,1). Na entronização (unção) do rei em Israel, uma voz (do sumo sacerdote) declarava “o decreto de Javé: ‘Tu és meu filho, eu hoje te gerei’” (Sl 2,7; cf. Rm 1,3s que associa a entronização do Cristo à sua ressurreição).

Na transfiguração, a voz da nuvem designa Jesus antes como o “profeta” que todos do povo “devem escutar” (At 3,22 cita Dt 18,15 que anuncia um novo Moisés). Os leitores de Mt já sabem que é o “Filho de Deus” (1,18-25; 2,15; 3,17) que resistiu às tentações do satanás (4,1-11) e que recebe do Pai todo poder e sabedoria (11,27; 28,16.18s).

Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra. Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos, e não tenhais medo” (vv. 6-7).

Mt acrescentou estes vv. 6-7 que descrevem o medo dos discípulos num lugar mais apropriado (depois da voz do céu, não antes como em Mc 9,6) e no estilo apocalíptico (cf. Dn 8,16s; 10,9-12.16-19: depois da “visão” e da audição da voz, Daniel fica assustado e “cai com o rosto em terra”, mas o anjo “tocou nele”, acordou-o e diz: “Não tenha medo”).

Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos” (vv. 8-9).

No evangelho mais velho (Mc escrito em 70 d.C.), Jesus não quer ser reconhecido como messias antes da sua morte e ressurreição e ordena com frequência que as pessoas se calassem a seu respeito (para evitar mal-entendidos sobre um messias nacionalista durante a Guerra Judaica contra os romanos em 66-70 d.C.). Mas a recomendação de guardar segredo que Jesus tem prazo, “até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos” (Mc 9,9).

Em Mt (escrito em 80 d.C., depois da guerra), o segredo messiânico de Mc já não tem mais a mesma importância, mas Mt é fiel transmissor da tradição (cf. 16,20). De fato, só a partir da ressurreição (e a transfiguração é sua antecipação), ele pode ser entendido. Ressurreição supõe antes a morte, a paixão. Só através da cruz chegamos à luz.

A transfiguração é antecipação da ressurreição de Cristo e, ao mesmo tempo, inclui a participação dos cristãos na ressurreição que é a transformação mais radical (cf. 1Cor 15,51s; Dn 12,2s). Mt, porém, caracteriza esta lenda como “visão” revelando o lado divino de Jesus que caminha para a morte em Jerusalém (v. 12). Os três discípulos encontrar-se-ão sozinhos com Jesus outra vez no monte das Oliveiras, no horto Getsêmani (26,36s), não num ponto alto, mas baixo da história de Jesus: na angustia no início da paixão.

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