06 de fevereiro de 2017 – Segunda-feira, 5ª semana

 

Leitura: Gn 1,1-19

Na Bíblia Hebraica (como também nos documentos dos Concílios e dos papas), cada livro tem o nome das primeiras letras que aparece neles. Assim, o primeiro chama-se “be-reshit”, que significa “No princípio” (Gn 1,1). Nós costumamos chamá-lo pelo nome grego que indica o conteúdo: “Gênesis”, que significa “origem”. Pelo gênero literário, a primeira parte de Gn apresenta “narrativas de origens” (mitos) do mundo, da vida e do ser humano (Gn 1-11, leituras da 5ª e 6ª semana do ano ímpar); a segunda parte narra a origem do povo eleito (patriarcas e matriarcas) em forma de “novela” de família (Gn 12-50, leituras da 12ª e 13ª semana do ano ímpar).

Obviamente, não são anotações feitas no momento que estas coisas acontecem. Embora o Gn aparece no início da Bíblia, suas narrativas foram elaboradas muito tempo depois. Tudo indica que o processo que começou com histórias pequenas e particulares de tribos em Israel que foram agrupadas e reeditas, tanto em tradições orais como escritas, alcançou sua forma final só quando parte do povo de Judá foi levado ao exílio da Babilônia (598-530 a.C), e quando seus descendentes voltaram a reconstruir Jerusalém e o Templo (até 400 a.C.). Testemunhas deste processo são as duplicações e, às vezes, contradições que se encontram em Gn, p. ex. duas narrativas de criação (1,1-2,4a e 2,4b-24) e duas narrativas e do dilúvio combinadas (6,5-9,17), etc., e o uso diferente de nomes de Deus.

Estas observações em Gn, como em todo Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia, chamado em hebraico Torá, “Lei” de Moisés), levaram Julius Wellhausen (séc. 19) e outros estudiosos da Bíblia a discernir quatro tradições (fontes de redação): javista (escrita durante o reinado de Salomão, cerca de 950 a.C., usando o nome de Yhwh, “Javé”), eloísta (usando o termo Elohim para Deus), sacerdotal (escrita no séc. VI, no exílio da Babilônio e no pós-exílio, interessada em temas litúrgicos e genealogias) e deuteronomista (séc. VII, vinda do reino do Norte para o Sul; cf. Dt). Estas tradições se fundiram e depois do exílio foram compiladas, talvez pelo sacerdote e escriba Esdras (cerca de 500 a.C.). Hoje se questiona esta Teoria das Fontes (ou Hipótese Documental) a respeito do javista e do eloísta, porque estas não apresentam um perfil muito próprio; ao que parece, o processo foi mais complexo ainda.

Em Gn 1-2 temos duas narrativas da criação, de épocas e contextos diferentes, provindos de duas tradições: uma “javista” (2,4b-25) que usa o nome de Javé, e outra, chamada “sacerdotal” (1,1-2,4ª) que não usa o nome de Javé, apenas de Elohim (Deus); é provavelmente a mais nova, que é lida hoje e amanhã. O fato de que o estilo e a sequência das coisas criadas divergem de um relato para outro mostra que a Bíblia não tem pretensão científica (se tivesse apresentaria uma versão única), mas fala num outro nível de verdade. A nova Bíblia Pastoral (p. 22) comenta as duas narrativas: Nelas, a “verdade” não está nos detalhes, mas na função que exercem sobre a vida dos povos que as narram.

No princípio Deus criou o céu e a terra (v. 1).

Esta frase inicial é o título sobre todo este capítulo. “O céu e a terra” quer dizer: todo o universo. No Novo Testamento (NT), o quarto evangelho começa com as mesmas palavras (Jo 1,1: “No princípio”), aludindo a todo cap. de Gn 1 em que Deus cria através da sua palavra.

Todos os povos responderam às perguntas sobre as origens do mundo com diversos “mitos” (narrativas simbólicas sobre as origens) na sua própria cultura, língua e nível de compreensão. Para ser entendida há 2000 ou 3000 anos atrás, a Palavra de Deus não podia falar nem na língua dos anjos do céu nem nos conceitos científicos de hoje, mas precisava-se adaptar às limitações da época (inculturação/encarnação da Palavra).

Portanto, hoje precisamos traduzir esta Palavra para nossa língua e também para nossos conceitos atuais e científicos, p. ex.: Segundo as evidências, Deus criou o universo através do Big Bang, “grande explosão” primordial há 14 bilhões de anos, e criou a vida através da “evolução das espécies” (Ch. Darwin). Aliás, a teoria do Big-Bang (chamado “átomo primitivo”) foi primeiramente apresentado por um padre católico, Georges Lemaitre em 1927.

Para evitar interpretações fundamentalistas (“criacionismo” que nega a ciência e lê a Bíblia ao pé da letra; cf. Verbum Domini, n.º 44), é importante descobrir qual era a intenção do autor bíblico, e a partir dali entender seu significado para hoje. Não se entende um texto sem o contexto.

A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam a face do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas (v. 2).

Não havia o conceito metafísico da criação a partir do nada, mas a partir do caos, aqui na expressão “deserta e vazia, as trevas cobriam a face do abismo”.

Na teologia cristã, se fala da creatio ex níhilo (criação a partir do nada), portanto deve existir um Deus, porque: de nada, nada se faz. De um caos, não se faz ordem sem um espírito: “e o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (v. 2) “Espírito” e “vento” é a mesma palavra (feminina em hebraico: ruah; neutra em grego: pneuma). Antes de falar (e criar), Deus respira. No batismo de Jesus, o Espírito aparece sobre as águas (Mc 1,10s: como pomba, cf. Gn 8,8-12); cf. Sl 29,3: “a voz do Senhor sobre as águas”.

Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz se fez. Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. E à luz Deus chamou “dia” e às trevas, “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia (vv. 3-5).

Quando se constrói uma casa, se faz à luz do dia, por isso, a primeira coisa que Deus cria, é a luz. Diferente do relato mais velho (Gn 2), aqui Deus cria apenas através da sua Palavra. Fala e assim se faz. A Palavra de Deus não é uma palavra à toa, mas eficaz (Hb 4,12; Is 55,10-11; Jo 1,1).

“Houve uma tarde e uma manhã”; na contagem judaica, o dia começa já na véspera (com o brilho da primeira estrela) e dura até o final da tarde (o pôr do sol; cf. Mc 1,21.32; 16,1s).

Deus disse: “Faça-se um firmamento entre as águas, separando umas das outras”. E Deus fez o firmamento, e separou as águas que estavam embaixo, das que estavam em cima do firmamento. E assim se fez. Ao firmamento Deus chamou “céu”.  Houve uma tarde e uma manhã segundo dia (vv. 6-8).

Gn 1 é muito mais um “poema” em sete estrofes (sete dias) do que uma teoria científica. Foi escrito no exílio da Babilônia (hoje Iraque), usando o conceito comum da época sobre a estrutura do mundo: pensava-se que a terra estaria no centro do universo, rodeada pelas estrelas, sol e lua (4ª dia) e que existiam águas “em cima” (no céu de onde vem a chuva) e águas “embaixo” (mar, rios, fontes), separadas uma da outra por uma chapa firme, o “firmamento” (2ª dia) com compartimentos para chuva, vento, raios.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 23) comenta: A base dessa narrativa provém da Assíria ou da Babilônia, regiões que cresceram controlando as enchentes periódicas e que apresentavam a criação como resultado de uma luta entre a divindades da luz e da vida contra as divindades da escuridão e do caos.

Deus Disse: “Juntem-se as águas que estão debaixo do céu num só lugar e apareça o solo enxuto!” E assim se fez. Ao solo enxuto Deus chamou “terra” e ao ajuntamento das águas, “mar”. E Deus viu que era bom. Deus disse: “A terra faça brotar vegetação e plantas que deem semente, e árvores frutíferas que deem fruto segundo a sua espécie, que tenham nele sua semente sobre a terra”. E assim se fez. E a terra produziu vegetação e plantas que trazem semente segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto tendo nele a semente da sua espécie. E Deus viu que era bom. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia (vv. 9-13).

Nesta narrativa em Gn 1, correspondem-se os dias: 1º e 4º (a luz, e os “luzeiros” do céu), 2º e 5º (o mar e o ar, e os seres que os povoam), 3º e 6º (a terra seca e as plantas, e os animais da terra e o ser humano). No segundo relato de Gn 2, a obra da criação começa em terra seca (2,5).

Os povos antigos tinham pavor das tempestades do mar e das enchentes (cf. a narrativa do dilúvio, Gn 6-8). Os escravos hebreus se salvaram passando pelo Mar Vermelho de pé enxuto, enquanto os egípcios se afogaram (Ex 14). Na luta contra a opressão no exílio babilônico, Israel apresenta a criação a partir de dez palavras de Deus: “Deus disse” (cf. o decálogo, os dez mandamentos em Ex 20; Dt 5). São sete dias, mas dez palavras de Deus.

“Deus viu que era bom”, esta avaliação da criação se repete nos vv. 10.12.18.21.25 e em v. 31 conclui “que era muito bom”.

Deus disse: “Façam-se luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite. Que sirvam de sinais para marcar as épocas os dias e os anos, e que resplandeçam no firmamento do céu e iluminem a terra”. E assim se fez. Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para presidir ao dia, e o luzeiro menor para presidir à noite, e as estrelas. Deus colocou-os no firmamento do céu para alumiar a terra, para presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. E houve uma tarde e uma manhã: quarto dia (vv. 14-19). 

É impressionante, como Israel desmistifica os astros e o sol, que eram adorados como deuses nas culturas antigas (cf. 2Rs 17,16; 21,3.5; 23,5; 2Cr 33,3; Sf 1,5; Sb 13,2), e nesta narrativa são chamadas apenas de “luzeiros” (lâmpadas) para iluminar a terra e o homem fazer o calendário (cf. Sl 8,4; 19,2; 147,4; 148,3-6).

Nos mitos dos povos vizinhos (assírios, babilônios, egípcios), o sol, a lua, as estrelas, também o mar (cf. Yemanjá no Candomblé), são todos divindades (cf. Sb 13-1-9). Segundo a mitologia na Mesopotâmia (Assíria, Babilônia), o mundo surgiu da luta dos deuses, e o homem veio do sangue de um demônio. Estas ideias foram rejeitadas pelo autor bíblico. Sua intenção é deixar claro que um único Deus criou tudo isso, com livre vontade e com soberania e poder da Palavra. Na mesma época do autor sacerdotal de Gn 1, outro autor no exílio, o Segundo Isaías (Deutero-Isaías) afirma o monoteísmo exclusivo (Is 43,10-13; 44,6-8; 45,5s etc.): existe o único Criador e Deus verdadeiro e os deuses pagãos não são nada, apenas ídolos (imagens feitas por homens).

As forças da natureza e as criaturas não são mais deuses, dos quais se precisa ter medo, mas devem ser submetidas pelo homem (assim pode ter progresso técnico e científico; este, porém, desligando-se de Deus na modernidade leva a destruição, querendo ser igual a Deus e não respeitando os limites, cf. Gn 3-4). Como o autor bíblico aceitou certos conceitos da época, rejeitando outros, assim podemos aceitar hoje certas ideias (p. ex. observações corretas e suas teorias cientificas), mas rejeitar outras (p. ex. ateísmo, esoterismo, experiências letais com embriões; criando clones humanos ou seres híbridos através da genética …, cf. 1Ts 5,21s).

O pesquisador físico Walter Thirring afirmou em 2011: As leis que a física nos ensina são afinadas tal maravilhosamente que nós achamos de vez em quando que elas sejam a borda de uma veste e que haja uma inteligência todo-poderosa por trás.

Evangelho: Mc 6,53-56

Depois da multiplicação dos pães e o caminhar sobre as águas (vv. 35-52, cf. comentários no Tempo de Natal, terça e quarta-feira da semana da Epifania), Mc apresenta um novo sumário das curas operadas por Jesus (cf. 3,7-12 e o comentário da 5ª feira da 2ª semana do Tempo comum).

Tendo Jesus e seus discípulos acabado de atravessar o mar da Galileia, chegaram a Genesaré e amarraram a barca (v. 53).

“Genesaré” é uma planície fértil ao sudoeste de Cafarnaum que deu nome ao “mar da Galileia” que é o “lago de Genesaré” (em Jo 6,1; 21,1, é chamado o “mar de Tiberíades”, segundo outra cidade na beira do lago). Em v. 45 os discípulos queriam desembarcar em Betsaida, pode ser que o vento contrário (v. 48) os tenha desviado, mas a geografia neste evangelho nem sempre é exata.

Logo que desceram da barca, as pessoas imediatamente reconheceram Jesus. Percorrendo toda aquela região, levavam os doentes deitados em suas camas para o lugar onde ouviam falar que Jesus estava. E, nos povoados, cidades e campos onde chegavam, colocavam os doentes nas praças e pediam-lhe para tocar, ao menos, a barra de sua veste. E todos quantos o tocavam ficavam curados (vv. 54-56).

Há dois detalhes novos neste sumário: as pessoas da região trouxeram os doentes “deitados em suas camas” (v. 55; cf. 1,32; 2,3s) e pediam-lhe para tocar (cf. 3,10; 5,28), ao menos, “a barra de sua veste” (ou: “a orla do manto, franjas da sua veste”). Estes detalhes da veste caracterizam Jesus como fiel observante da lei (cf. Nm 15,38-39; Dt 22,12). O manto de um profeta pode ser sinal da sua profissão (cf. 2Rs 1,8; 2,13; Mc 1,6). “E todos quantos o tocavam ficavam curados” (v. 56); pelos relatos de outras curas, subentende-se que todos estes tinham certa fé (cf. 2,5; 5,36; 6,5s; 9,23; 10,52).

É doutrina católica que os milagres de Jesus continuam nos sacramentos nos quais não só ouvimos o mestre, mas tocamos nele.

O site da CNBB comenta: O cristão de verdade não pode ficar parado. Ele nunca pode dizer que cumpriu a sua missão, pois ele deve estar sempre a caminho, sempre se lançando rumo aos novos trabalhos, prestando atenção aos apelos que a realidade faz, buscando superar novos desafios e obstáculos, sempre olhando com misericórdia os irmãos e irmãs, procurando conhecer os seus problemas e necessidades e sendo para todos a manifestação do amor de Deus que responde ao clamor dos seus filhos e filhas. Por isso, quando terminamos uma etapa da caminhada, devemos iniciar outra imediatamente, pois a proposta do Reino exige isso.

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