06 de janeiro de 2018 – Terça-feira, 5ª semana

Leitura: 1Rs 8,22-23.27-30

Ouvimos hoje outro trecho sobre a dedicação do templo por Salomão em Jerusalém por volta de 953 a.C.. Depois da convocação dos grupos representativos do povo e a cerimônia do depósito da arca da aliança no lugar santíssimo do templo (vv. 1-13; leitura de ontem), ouvimos hoje um trecho da longa oração de dedicação (cf. 2Cr 6,3-42) que se divide nas partes seguintes: benção da assembleia, ação de graças e súplica (vv. 14-27); súplica em sete ocasiões (vv. 28-53: pedir justiça, perdão no exílio, fim da seca e das calamidades, pelo estrangeiro, e proteção na guerra), benção e exortação (vv. 54-61), cerimônias e despedida (vv. 62-66). Até o v. 29 é uma confirmação da casa davídica (cf. 2Sm 7). O conteúdo aponta para o período do pós-exílio, quando o templo era considerado o único espaço de oração e sacrifícios.

A Bíblia do Peregrino (p. 625) comenta: A parte falada supera significativamente a descrição das cerimônias, porque nas palavras postas na boca de Salomão o autor do livro apresenta uma reflexão teológica sobre o templo em relação à vida e à história de Israel. Salomão, não o sumo sacerdote, é o protagonista da cerimônia é. O rei é idealizador e realizador do empreendimento. Ele próprio oficia como sacerdote. Salomão é assim a figura do rei sacerdote, como Melquisedec [Gn 14,18-20] e como canta o Sl 110.

Salomão pôs-se de pé diante do altar do Senhor, na presença de toda a assembleia de Israel, estendeu as mãos para o céu e disse: (v. 22).

Nesta segunda introdução da oração (cf. v. 14), Salomão reza de pé “diante do altar” com as mãos erguidas. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 513) observa: Antes do exílio (587 a.C.), os reis não eram apenas os chefes militares e políticos, mas podiam eventualmente oficiar como sacerdotes, como aqui o indica, com precisão, a menção ao altar. Eram intermediários reais de Deus junto ao povo e do povo diante de Deus. Mais tarde, a separação entre a realeza e o altar se tornará mais definida (Ez 45-46; Zc 4).

As palavras de Salomão nos vv. 15-27 se dividem em duas partes: ação de graças (vv. 15-21) e pedido (vv. 23-27).

Ó Senhor, Deus de Israel, não há Deus igual a ti nem no mais alto dos céus, nem aqui embaixo na terra; tu és fiel à tua misericordiosa aliança com teus servos, que andam na tua presença de todo o seu coração (vv. 22-23).

Invocando Javé (traduzido: Senhor) como Deus de Israel, Salomão faz uma profissão de fé (Dt 4,34-39; 7,9) destacando sua singularidade. A rigor ainda não é uma expressão ainda do monoteísmo exclusivo que nega a existência de outros deuses (cf. Is 43,10-12; 44,6-8; 45,5-7 etc.). Estes podem existir para outros povos, mas não para Israel. O que torna Javé incomparável (cf. Dt 3,24; 4,7.35-39) é a sua relação concreta (aliança) com seu povo, generosa, leal e exigente. A benevolência (palavra muitas vezes traduzida por fidelidade, solidariedade ou, como aqui, misericórdia: “misericordiosa aliança”) de Deus em sua aliança é um dos artigos fundamentais da fé do povo de Israel (cf. Dt 7,9.12; Dn 9,4; Ne 1,5; 9,32).

Nesta oração pessoal de Salomão, o autor desenvolve, num estilo deuteronomista (Dt 3,24; 4,7s), as ideias do discurso dos vv. 15-21. Primeiro o princípio de fidelidade recíproca (cf. Dt 7,9s): a benevolência divina deriva da aliança no monte Horeb (Sinai), mas tem como condição a lealdade do povo, dos “teus servos que andam na tua presença de todo o seu coração”; esta é a teologia da aliança, doutrina central do AT (Antigo Testamento).

Depois seguem duas aplicações (omitidas pela leitura de hoje): Javé Deus cumpriu sua promessa com referência ao templo (v. 24); que ele cumpra igualmente sua promessa de garantir a perpetuidade da dinastia (v. 25). As repetições da expressão “construir o templo (casa)” recordam o jogo de palavras da promessa dinástica: construir a casa/templo, construir a casa/dinastia (vv. 17-20.24-26; cf. 2Sm 7).

Mas será que Deus pode realmente morar sobre a terra? Se os mais altos céus não te podem conter, muito menos esta casa que eu construí! (v. 27).

Salomão se admira com a benevolência do Senhor que, em sua graça, se limita geograficamente para permanecer no meio do povo, para “morar sobre a terra com os homens” (texto grego, tradução aramaica e 2Cr 6,18; cf. Jo 1,14: “A Palavra se fez carne e habitou entre nós”; 2Cor 8,9: “por causa de vós se fez pobre embora fosse rico”; cf. Mt 8,20p).

A Bíblia do Peregrino (p. 627) comenta: Sublinhe-se o sentido espiritual do templo. O templo imita o céu na terra por ser morada de Deus; como o céu ultrapassa o recinto do templo, assim Deus ultrapassa a imensidade do céu. O caráter cósmico do templo não deve estreitar o Senhor, mas deve revelar dialeticamente sua imensidão. Esse templo foi Salomão, um homem, que o construiu, ao passo que o céu é construção de Deus. O templo não deve ser um ídolo, “obra de mãos humanas”, deve ser o espaço onde o homem se abre a transcendência de Deus.

Mas atende, Senhor meu Deus, à oração e à súplica do teu servo, e ouve o clamor e a prece que ele faz hoje em tua presença. Teus olhos estejam abertos noite e dia sobre esta casa, sobre o lugar do qual disseste: “Aqui estará o meu nome!” Ouve a oração que o teu servo te faz neste lugar (vv. 28-29).

Estes três versículos 28-30 introduzem a ampla e articulada oração do rei em seguida (vv. 31-53), cf. Jr 32,19: “Teus olhos estão abertos sobre todos os caminhos dos homens para retribuir a cada um segundo a sua conduta” (cf. vv. 39.52). O rei Josias (640-609 a.C.) concentrou o culto em Jerusalém, cf. Dt 12,5.11: “Buscá-lo-eis somente no lugar que Javé, vosso Deus houver escolhido para aí fazer habitar seu nome” (cf. v. 48).

Ouve as súplicas de teu servo e de teu povo Israel, quando aqui orarem. Escuta-os do alto da tua morada, no céu, escuta-os e perdoa! (v. 30).

Salomão, e os autores deste texto (no tempo de Josias e do pós-exílio) sabem muito bem que a presença de Deus não se restringe ao templo (cf. Is 66,1; At 7,48s; 17,24; Hb 9,11.24): “Escuta-os do alto da tua morada, no céu” (cf. Sl 123); Ne 9,27s: “Clamavam a ti, e tu, do céu, os ouvia…” Salomão admira a presença do Altíssimo neste templo e, por isso, pede que as súplicas dele e também as do povo sejam atendidas. Estas intenções de oração (em seguida, omitidas pela leitura de hoje) são: julgamentos justos (vv. 31s), recuperar a terra depois de perdê-la ao inimigo (vv. 33s.44-51), seca (vv. 35s), peste e outras calamidades (vv. 37-39). Mesmo o estrangeiro será atendido, se orar neste templo (vv. 41-43; cf. Ex 12,48s; At 8,27; Is 2,2-5; Mq 4,1-3; Jr 19,16-21), um convite a todos os povos, cf. no NT, Jesus citando Is 56,7: “Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (Mc 11,17p) e o eunuco da rainha da Etiópia que veio adorar neste templo em At 8,27)

Evangelho: Mc 7,1-13

Este é um dos capítulos centrais do presente evangelho. A longa discussão com os fariseus sobre as tradições e sobre o que é puro e impuro (vv. 1-23) contrasta com o sucesso de Jesus Cristo junto à multidão (cf. 6,53-56, evangelho de ontem; o mesmo contraste em 2,1-3,6; 3,20-35) e intercala-se, antes da partida de Jesus para terras pagãs (v. 24). Enquanto Mt copiou esta discussão, Lc a omitiu (ou porque mudou seu itinerário das viagens de Jesus, ou porque queria apresentar a cultura judaica com mais simpatia aos seus leitores gregos, cf. Lc 1-2; 11,38)

Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre (vv. 1-4).

Mc também escreve para leitores greco-romanos, como se pode deduzir através desta longa explicação de costumes judaicos (vv. 3-4), dirigida obviamente a não-judeus. Os que se reúnem são “fariseus e alguns mestre da lei”, ou seja, doutores intérpretes oficiais da lei que “vieram de Jerusalém” com a auréola e autoridade que a capital acrescenta (cf. 3,22; Jo 1,19.24).

Os doutores preservam a doutrina, os fariseus promovem a pratica, não só da lei de Moises, mas especialmente da muralha de interpretações e observâncias que concretizam esta lei e a defendem (no século II, os “rabinos”, mestres da lei, escrevem uma coleção destas prescrições chamada “mishna”, considerada uma cerca ao redor da lei). Com o propósito de formar um povo observante à lei e santo e consagrado ao Senhor (Lv 20,7; 19,1), os mestres da lei e fariseus tinham acumulado prescrições vinculantes, mas com isso impunham ao povo uma carga insuportável na vida cotidiana, apelando ilegitimamente para a vontade de Deus, em alguns casos anulando o sentido da lei. O exercício da religião tornou-se ritualista e externa e favorecia o orgulho dos observantes que desprezavam os demais (cf. Mt 23; Jo 7,49).

Entre as muitas observâncias, algumas se referem a lavatórios e abluções cotidianas (cf. Jt 12,7-9), baseiam-se em leis do culto para sacerdotes, mas os fariseus as levaram ao extremo tentando impô-las ao povo todo (Ex 30,18-21; 40,12.31-32; Lv 15; Nm 19; Dt 21,6; Eclo 34,25; Hb 9,10). Não se trata de higiene, mas de pureza ritual, diferente de uma purificação do coração (conversão; cf. Is 1,16; 4,4; Ez 36,25; Mc 1,4; Hb 6,2; 1Pd 3,21).

Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens.” E dizia-lhes: “Vós sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus, a fim de guardar as vossas tradições (vv. 5-9).

Os fariseus questionam Jesus a respeito da conduta dos seus discípulos (cf. 2,18.24). Não apelam à lei de Moises, mas à “tradição dos antigos”. Jesus responde com a profecia de Is 29,13 que denuncia duas coisas: o desacordo entre o interior e o exterior (“coração” e “lábios”) e a preferência de “preceitos humanos… vossas tradições” aos mandamentos divinos.

Com efeito, Moisés ordenou: “Honra teu pai e tua mãe”. E ainda: “Quem amaldiçoa o pai ou a mãe, deve morrer”. Mas vós ensinais que é lícito alguém dizer a seu pai e à sua mãe: “O sustento que vós poderíeis receber de mim é Corban, isto é, Consagrado a Deus”. E essa pessoa fica dispensada de ajudar seu pai ou sua mãe. Assim vós esvaziais a Palavra de Deus com a tradição que vós transmitis. E vós fazeis muitas outras coisas como estas” (vv. 10-13).

Jesus escolheu um exemplo que serve bem para os que vieram de Jerusalém, onde se encontra o Templo; refere-se ao quarto mandamento (Ex 20,12; 21,17; Dt 5,16; Lv 20,9; Pr 20,20; Eclo 3,1-16): “Honra (ou: sustenta) teu pai e tua mãe”. Mas os fariseus ensinam a prática do “corban”, o voto pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis (“consagrado a Deus”) e reservados ao tesouro do templo (cf. Mt 15,6; 27,6). Aparentemente, Deus era louvado, mas na realidade, os pais idosos ficam privados de sustento necessário, enquanto o templo e os sacerdotes ficavam mais ricos. Esta prática já era criticada no próprio judaísmo antes de Cristo, tal vivo era o sentimento de solidariedade familiar. Os rabinos, embora reconhecendo o caráter imoral, consideravam válidos tais votos.

A crítica de Jesus, “assim vós esvaziais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis” (v. 13), não se dirige somente aos fariseus de então, mas também a nós. A Igreja Católica considera como revelação divina não só a “Bíblia”, mas também a “Tradição” (os dogmas, a lei canônica, as liturgias, os documentos dos papas e dos concílios, etc.). Em 1517, Martin Lutero criticou a “tradição” das indulgências e desencadeou a reforma protestante, aceitando “só a Bíblia, não a tradição (da Igreja)”. Sabe-se hoje, justamente pelas pesquisas começadas pelos luteranas e depois seguidos pelos católicos, que a Bíblia é também parte da tradição: é a parte escrita da tradição, aceita pela Igreja como inspirada do Espírito Santo. Então, não é tal fácil separar a tradição da Igreja da própria palavra de Jesus. Por isso é sempre preciso um estudo da Bíblia no contexto histórico para não cair num fundamentalismo (interpretação ao pé da letra) que desconhece e distorce a intenção do autor bíblico e pode levar ao fanatismo. Mas a advertência de Jesus permanece sempre atual: não esvaziar a palavra de Deus por tradições humanas, por ex. as normas eclesiais e devoções populares não devem esvaziar, mas corresponder às palavras profundas da Bíblia, atualizando e concretizando.

O site da CNBB resume: Jesus, citando o profeta Isaías, diz: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Precisamos saber se somos cristãos de palavras ou de coração. O cristão de palavras é aquele que vive uma religiosidade de cumprimento de preceitos, normas e rituais, que em nada difere dos rituais de alquimia e bruxaria que existem por aí; o que muda é que no lugar de abracadabra, fala frases bonitas com efeitos especiais. O cristão de coração é aquele que ama a Deus, ama os seus irmãos que são templos dele e procura servir a Deus no serviço aos irmãos e irmãs, na valorização da pessoa humana e promoção da sua dignidade. O cristão de coração fala pouco e nem sempre sabe falar bonito, mas ama muito, é solidário, generoso e fraterno.

 

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