06 de Julho de 2017 – Quinta-Feira, 13º Semana

Leitura: Gn 22,1-19

Ouvimos hoje o cume da narrativa sobre a fé de Abraão a quem Deus prometeu dar descendência apesar da idade do homem e da esterilidade da sua esposa. Deus cumpriu sua promessa, e o filho de Abraão e Sara, Isaac, nasceu finalmente (21,1-3). Com a rivalidade que poderia surgir entre o Ismael, filho da escrava Agar com Abraão, e Isaac, filho de sua esposa Sara (conforme a promessa de Deus em 17,15-21), Agar e Ismael tinham que tomar outro rumo, indo ao deserto (21,9-21; leitura de ontem; cf. o paralelo capítulo 16). Na leitura de hoje, toda promessa é colocada em cheque com o sacrifício de Isaac.

A intervenção de Deus no princípio e no final é o marco que envolve e ilumina a narração. A ignorância do protagonista é parte da prova; a não-ignorância do leitor a respeito de Abraão ou deste a respeito do filho, é fonte de ironia dramática: Abraão obedece, mas o diálogo está carregado de duplo sentido.

Deus pôs Abraão à prova. Chamando-o, disse: “Abraão!” E ele respondeu: “Aqui estou”. E Deus disse: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que eu te indicar” (vv. 1-2);

O autor define o relato como uma “prova” (cf. Dt 8,3-6; 13,3-4). Pela prova se comprova. A prova de Abraão não é simplesmente o sacrifício de um filho, mas deste filho “único” depois da partida de Ismael (o grego traduz único por “querido, amado”, termo que reencontramos no Novo Testamento; cf. Mc 1,11p; 12,6p).

Isaac é dom particular de Deus, “prova” de seu amor onipotente; é a promessa cumprida, a palavra feita carne e osso. O velho patriarca devia sacrificar um filho que “tanto ama” e uma promessa cumprida que reconhece; e tem de continuar crendo e esperando. Deus já exigiu que Abraão deixasse a sua terra e sua família prometendo-lhe terra e descendência (12,2-3.7, etc.). Abraão obedeceu e saiu; mas agora parece ser uma exigência mais absurda, sem sentido. “Creio por que é absurdo” disse Tertuliano. “Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos… oráculo do Senhor” (Is 55,8).

O sacrifício será no estilo do “holocausto”: mata-se a vítima que se deixa consumir inteiramente no fogo (Lv 18,21). Praticava-se entre os semitas do oeste (cananeus etc.) o sacrifício dos primogênitos, ex. em casos de certa aflição: o homem oferece o que tem de mais caro (cf. 2Rs 3,27; até em Israel: 2Rs 16,3; 23,10; Mq 6,7; Jr 7,30s). Abraão, porém, veio dos semitas do leste (Ur dos caldeus, cf. 11,31; 15,7), onde tais sacrifícios não eram praticados. Deus quer que Abraão assuma os costumes da região, ou quer se mostrar igual exigente do que os deuses dos cananeus?

A Nova Bíblia Pastoral (41s) comenta: O culto dos reis ao deus Moloc ou a outras divindades pode ter incluído sacrifícios humanos em Israel (1Rs 16,34), Judá (Lv 18,21+; 20,2-5; 2Rs 16,3; 21,6; 23,10) e seus vizinhos (2Rs 3,27; 17,31). A base de Gn 22,1-19 é a rejeição desta prática pelos pastores (por temor a Deus/Elohim, v. 12) e camponeses (“na montanha Javé providenciará”, v. 14). Tal compreensão libertadora de Deus ressoa nos profetas (Is 57,5; Jr 7,31; 19,5; Ez 16,20-21; 23,37.39) e em Jesus (Jo 8,37-44; 10,10; 16,2-3). Apesar de aqui ser usada para reforçar os méritos de Abraão e as promessas em favor dos seus descendentes (22,15-18), a força sagrada desta narrativa está na divindade que quer a vida e não a morte (Jo 10,10).

Uns comentários de rabinos (entre 70 e 700 a.C.) questionaram a palavra grega “holocausto” e supõem um mal-entendido: Deus teria mandado apenas de “levar Isaac para elevação” (cf. Jr 35,2); em hebraico, o substantivo olah (sacrifício de fogo, holocausto) e o verbo alah (subir, elevar para cima) são da mesma raiz de palavras. Deus só queria expressar amor e proximidade (Isaac estaria mais perto de Deus no monte).

Em 2Cr 3,1 identifica-se “Moriá” com a colina de Sião em que Salomão construiu o templo de Jerusalém, lugar dos sacrifícios para os judeus durante mil anos. Hoje um santuário muçulmano (o santuário da rocha com a cúpula dourada) se ergue no lugar. Uma tradição cristã posterior identificou Moriá com o calvário. Mas o texto fala de “monte” só em v. 14, aqui fala de uma “terra (país)” de Moriá, nome que não apareceu em nenhum outro lugar; o lugar do sacrifício ficou desconhecido.

Abraão levantou-se bem cedo, selou o jumento, tomou consigo dois dos seus servos e seu filho Isaac. Depois de ter rachado lenha para o holocausto, pôs-se a caminho, para o lugar que Deus lhe havia ordenado (v. 3).

Uns comentários de rabinos falam também da dor da mãe, Sara. Abraão teria dito para ela apenas que Deus queria consagrar o filho no monte, e “levantou-se bem cedo” para ela não suspeitar de nada ou mudar de ideia. Satanás não conseguiu convencer Abraão nem Isaac fazerem desistir da vontade divina, mas conseguiu iludir Sara: aparecendo como se fosse Isaac contou a ela o que tinha acontecido sobre o monte. Ouvindo isso, ela morreu antes de ouvir o final feliz. De fato, a Bíblia conta a morte e sepultura de Sara logo em seguida (cap. 23). Nesta perspectiva é ela a vítima por seu amor de mãe e torna-se ancestral de muitas outras mulheres judias que sofreram pelos seus maridos, filhos, pais e irmãos.

Os rabinos e os artistas que retrataram a cena variam sobra a idade de Isaac neste sacrifício. Era criança ou já homem? Sara o concebeu com 90 anos; mas na morte dela com 127 anos (23,1-2), Isaac já tinha 37 anos.

No terceiro dia, Abraão, levantando os olhos, viu de longe o lugar. Disse, então, aos seus servos: “Esperai aqui com o jumento, enquanto eu e o menino vamos até lá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós” (vv. 4-5).

Abraão diz “voltaremos” aos servos para não despertar suspeitas. O leitor, porém, sabe que voltarão mesmo os dois.

Abraão tomou a lenha para o holocausto e a pôs às costas do seu filho Isaac, enquanto ele levava o fogo e a faca. E os dois continuaram caminhando juntos (v. 6).

Lenha, carga do filho, terrível para o pai consciente; fogo e faca, carga do pai, junto ao filho inconsciente. Cristo carregará conscientemente a madeira da cruz ao Calvário (Jo 19,17; Mc 15,21-22p).

Isaac disse a Abraão: “Meu pai”. – “Que queres, meu filho?”, respondeu ele. E o menino disse: “Temos o fogo e a lenha, mas onde está a vítima para o holocausto?” Abraão respondeu: “Deus providenciará a vítima para o holocausto, meu filho”. E os dois continuaram caminhando juntos (vv. 7-8).

O diálogo é conciso, e na brevidade contém a força. “Meu pai”- “Que queres, meu filho” – “… onde está a vítima para o holocausto?” (v. 7) De novo Abraão prediz sem sabê-lo; o leitor já sabe que “Deus providenciará” (v. 8). Sem mencionar os sentimentos, deixando espaço para o leitor imaginar, o autor repete como um refrão: “E os dois continuaram caminhando juntos” (vv. 6b.8b). O relato é modelo de contenção e parcimônia, sugere mais do que diz; o ritmo se retarda ou acelera eficazmente; os silêncios dos personagens pesam mais que as palavras.

Chegados ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu um altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha em cima do altar. Depois, estendeu a mão, empunhando a faca para sacrificar o filho (vv. 9-10).

Abraão já tinha construído vários altares (cf. 12,7.8; 13,18), mas agora sacrificar seu filho, será que Deus quer isso mesmo? Por causa deste verbo “amarrar”, os judeus chamam o episódio de “atadura de Isaac”. Além da fé de Abraão, os comentários dos rabinos destacam a disposição de Isaac para sacrifício.

O narrador deixa implícito que o menino não opõe resistência. O “amarramento” de Isaac desempenha um grande papel na piedade e rito judaico. Os Padres verão no sacrifício de Isaac uma prefiguração do sacrifício de Cristo, o filho “único, querido” (Mt 3,17; Mc 12,6; cf. Hb 11,17-19). O Alcorão (livro sagrado do islã) alude a esta cena sem dizer o nome do filho que Abraão (Ibrahim em árabe) deve imolar; para tradição muçulmana, é Ismael que Deus pede a Abraão em sacrifício (Ismael é o ancestral dos árabes; cf. cap. 16).

E eis que o anjo do Senhor gritou do céu, dizendo: “Abraão! Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!”. E o anjo lhe disse: “Não estendas a mão contra teu filho e não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu filho único”. Abraão, erguendo os olhos, viu um carneiro preso num espinheiro pelos chifres; foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto no lugar do seu filho (vv. 11-13).

Na Bíblia, é a segunda intervenção do “anjo do Senhor” que representa Yhwh (Javé – Senhor). Na primeira, Deus salvou a vida de Agar e seu filho (16,7-12; cf. 21,15-19: anjo de Deus). Aqui, Javé providencia outra vítima: Abraão oferece um carneiro em holocausto “no lugar do filho”, como no resgate de primogênitos (Ex 12,13-15).

Lido a luz da história das religiões, este capítulo registra a descoberta de que Deus já não quer sacrifícios humanos. A origem de toda esta narrativa dramática pode ser um relato de fundação de santuário israelita no qual, diferentemente dos santuários cananeus, não se ofereciam vítimas humanas. A narrativa atual justifica a prescrição ritual do resgate dos primogênitos de Israel: estes, como todas as primícias, pertencem a Deus, todavia não devem ser sacrificados, mas resgatados, oferecendo um animal “em lugar do filho” (Ex 13,13; 34,19-20; Nm 3,13). A narrativa implica, pois, a condenação, tantas vezes pronunciadas pelos profetas, dos sacrifícios de crianças (Lv 18,21; Dt 12,31; 18,10; 2Rs 3,27; 16,3; 17,31; 21,6; Jr 7,31; 19,5s; 32,35; Ez 16,20s; 20,25; Sl 107,38; Sb 14,23).

E acrescenta-se uma lição espiritual mais elevada: o exemplo da fé de Abraão, que aqui atinge seu ponto culminante. O patriarca se torna na tradição bíblica o modelo do justo que obedece pela fé (Eclo 44,20; Sb 10,5; Hb 11,17; Tg 2,21). Como Jó, ele aceita que Deus pode tirar o que deu (Jó 1,20). Em Hb 11,17, Abraão diz: “Deus é capaz também de ressuscitar os mortos.”

Abraão passou a chamar aquele lugar: “O Senhor providenciará”. Donde até hoje se diz: “O monte onde o Senhor providenciará” (v. 14).

Alusão ao nome do lugar Moriá (v. 2), hebr. Moriyá: Javé (Yhwh) aparece, se faz ver. O texto massorético (hebraico com vocalização) joga com as duas formas do mesmo verbo ver (o texto litúrgico traduziu a versão grega): “O Senhor providencia (proverá, saberá ver)” (v. 14a) e “o monte, onde o Senhor providenciará” (v. 14b; o texto hebraico traz: “sobre o monte Deus se faz ver / foi visto”, cf. Ex 24,11).

O anjo do Senhor chamou Abraão, pela segunda vez, do céu, e lhe disse: “Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor -, uma vez que agiste deste modo e não me recusaste teu filho único, eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque me obedeceste” (vv. 15-18).

O anjo do Senhor, que representa o próprio Javé, renova as promessas divinas dos caps. anteriores (12,2s.7; 13,15s; 15,5.18; 17,4-8.15-21; 18,10.14), acrescentando “como as areias do mar” e o tom militar no v. 17: “Teus descendentes conquistarão as cidades dos inimigos” (lit. a porta dos inimigos; cf. 24,60; possível alusão a ocupação da Palestina em Js ou a conquista de Jerusalém por Davi, 2Sm 5). ”Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor” (v. 16) é citado por Hb 6,13: “Não havendo um maior por quem jurasse, jurou por si mesmo”.

Abraão tornou para junto dos seus servos, e, juntos, puseram-se a caminho de Bersabeia, onde Abraão passou a morar (v. 19).

Bersabeia fica 75 km ao sul de Jerusalém, perto do deserto do Negueb. Os textos bíblicos conservaram tradições de um santuário pré-israelita, onde Deus El foi adorado de várias formas. Os patriarcas nômades passaram por lá e tiveram experiências importantes de Deus (Abraham em 21,33; Isaac em 26,23–25 e Jacó em 46,1-5). Mas a advertência de Am 5,5 mostra que o culto cananeu continuava lá até o séc. VIII.

Abraão e Isaac eram venerados como ancestrais do sul (Negueb: 12,9; 20,1; 24,62; Mambré-Hebron: 13,18; 14,13; 18,1; 23,2.19; 35,27; Bersabeia: 21,14.33; 22,19; 26,23.33), enquanto Jacó-Israel (Betel: 28,19; 35,1; Siquém: 33,18; 34,2) e José (Efraim e Manassés: Gn 48; Nm 26,28; Js 14,1; 2Sm 19,20; 1Rs 11,28; Am 5,6; Ez 37,19) eram venerados como ancestrais do norte. As bênçãos e promessas foram utilizados pelos redatores para interligar estas tradições e criar a unidade do povo através da unidade da narrativa. Como os redatores eram do reino de Judá, as tradições de Isaac e Jacó-Israel eram subordinadas ás tradições de Abraão, apresentado como patriarca de todo o povo.

Para os judeus, a “atadura de Isaac” continua nas diversas perseguições dos judeus ao longo da história (ex. durante as cruzadas ou no “holocausto” nos campos de concentração pelos nazistas). A narrativa de Gn 22 é modelo para lidar com um sofrimento incompreensível e pode dar sentido e dignidade a um martírio, incluindo as vítimas de todos tempos do povo de Deus. É como se Abraão, Sara e Isaac ainda andassem pela nossa terra.

Os cristãos veem no sacrifício de Isaac um modelo para o Cristo atado na madeira da cruz. Chegou o dia em que Deus aceitou o sacrifício humano, mas não de um filho alheio, mas do seu próprio, Jesus, como expressão de seu amor ao ser humano e para salvá-lo. Em penhor de amor, o Pai não reservou a si seu Filho único, mas o entregou para salvação do mundo (Jo 3,16; Rm 8,32). A tradição unânime da Igreja viu em Isaac um tipo de Cristo que se sacrificou “uma vez por todas” (Hb 7,27; 9,12.26.28; 10,10.12.14; Rm 6,10; 1Pd 3,18). Ele é o verdadeiro Cordeiro imolado (Jo 1,29.36; Ap 5,6) para o resgate de muitos (Mc 10,45; Mt 26,28; Is 53). Assim vemos uma evolução histórica: os sacrifícios pagãos de seres humanos foram substituídos pelos sacrifícios de animais no culto judaico no templo de Jerusalém e estes pelo corpo de Cristo oferecido na cruz, uma vez por todas, e de maneira sacramental (sem matança) atualizado nos altares da Igreja.

Evangelho: Mt 9,1-8

Mt copiou a história da cura do paralítico de Mc 2,1-12 (cf. comentário da 1ª semana do tempo comum, 2ª feira). Para Mt é importante sobretudo que Jesus encontrou aqui pela primeira vez a hostilidade dos mestres da Lei (cf. 12,28; 15,1 etc.).

Entrando em um barco, Jesus atravessou para a outra margem do lago e foi para a sua cidade (v. 1).

Voltando da Decápolis (região das dez cidades gregas), onde curou dois possessos pagãos (cujos demônios foram para manada de porcos; cf. 8, 28-42), “Jesus atravessou para outra margem do lago e foi para sua cidade”. Esta cidade não é Nazaré, mas Cafarnaum que escolheu para morar (4,13) e onde pagava o imposto (17,24-26).

Apresentaram-lhe, então, um paralítico deitado numa cama. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: “Coragem, filho, os teus pecados estão perdoados!” (v. 2).

Mt omite detalhes pitorescos como quatro pessoas que trouxeram o paralítico destelharam a casa para ele poder se encontrar com Jesus (Mc 2,2-4). Enquanto Mc descreveu como num filme de ação, Mt dá uma aula, para ele o mais importante é Jesus e suas palavras: “Coragem, filho, os teus pecados estão perdoados” (v. 2, e pode se acrescentar: ”agora”).

Em Mt, só Jesus fala a palavra “coragem” (v. 22; Mt omite a palavra em 9,28; 20,32, porque não é Jesus que a fala; cf. Mc 10,49). Os leitores de Mt percebem a salvação contida nestas palavras, porque para os judeus, o pecado separa o homem de Deus e é causa da doença (Lv 26,14-16; Dt 28,12s; 2Cr 21,5;18s; Sl 32; 38; 41; Ecl. 38,9-10; Jo 5,14; 9,2; 1Cor 11,30).

Então alguns mestres da Lei pensaram: “Esse homem está blasfemando!” (v. 3).

Em que Jesus estava blasfemando segundo a opinião dos mestres da lei? Mt não conta; em Mc 2,7 pensavam: “Ninguém pode perdoar pecados, a não ser Deus”. A blasfêmia de Jesus seria arrogar-se um privilégio exclusivo de Deus (Sl 130,4; Is 43,25). Os mediadores do AT não perdoam pecados, só intercedem pedindo perdão para os outros (cf. Ex 32; Nm 14; 2Sm 12 etc.). A pena da blasfêmia é lapidação (cf. At 7,58; Lv 24,14-16). Mas os leitores judeu-cristãos de Mt talvez saibam que só se faz culpado de blasfêmia quem pronunciar o nome de Deus nitidamente, o que não é o caso aqui.

Mas Jesus, conhecendo os pensamentos deles, disse: “Por que tendes esses maus pensamentos em vossos corações? O que é mais fácil, dizer: “Os teus pecados estão perdoados”, ou dizer: “Levanta-te e anda”? (vv. 4-5).

Jesus, porém, conhece os pensamentos dos homens da lei (penetrar pensamentos é próprio de Deus; cf. Pr 15,11) e os qualifica como “maus” (v. 4). É mais fácil “dizer” que os pecados estão perdoados, do que “dizer” que o paralítico se levante e ande, porque este último deve ser provar pela ação (cf. v.5). Jesus cura o paralítico da sua deficiência física, como prova que ele tem o poder de perdoar pecados. Deus não iria atender um blasfemo (cf. Jo 9,15-16.31-33).

Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem na terra poder para perdoar pecados, – disse, então, ao paralítico – “Levanta-te, pega a tua cama e vai para a tua casa” (v. 6).

O v. 6 é o ápice em que Jesus fala de si como “Filho do Homem” (cf. evangelho de segunda-feira passada), que é o futuro juiz do mundo que virá nas nuvens (cf. Dn 7,13-14) e já perdoa “aqui na terra”. Para isso ele tem pleno “poder”, toda “autoridade” (cf. 28,18, em grego a mesma palavra expressa poder e autoridade); não substitui o juízo final, mas o pecado perdoado aqui já na terra está desligado lá, ou seja, absolvido (cf. 16,19; 18,18). Em nenhum momento, a tradição judaica relacionou o perdão dos pecados ao “Filho do homem”, mas o atribuiu o juízo final (no escrito apócrifo Henoc; cf. Mt 25,31-46). A comunidade cristã sabia que o perdão dos seus pecados se deve à morte de Jesus (cf. Mc 10,45p; Mt 26,28; Is 53).

O paralítico então se levantou, e foi para a sua casa. Vendo isso, a multidão ficou com medo e glorificou a Deus, por ter dado tal poder aos homens (vv. 7-8).

Somente a palavra de Jesus bastou para a cura acontecer. Em vez do louvor da multidão, “nunca vimos uma coisa assim” (Mc 2,12), Mt fala do “medo” (típico dos discípulos, mas Jesus a tira; cf. 10,26-28; 14,27.30-31; 17,6-7) e do louvor (“glorificou”) ao mesmo tempo (cf. 28,8). A multidão fica impressionada pelo milagre e louva a Deus não propriamente pelo milagre da cura, mas pelo poder de perdoar que Deus deu “aos homens”. Chama atenção que o poder (a autoridade) de perdoar pecados agora é “dado aos homens” e não só ao Filho do homem do v. 6. Aqui Mt já antecipa a autoridade dada a Pedro e à comunidade de “ligar ou desligar”, ou seja, de perdoar em nome de Deus (cf. 16,19; 18,15-20)

Perdoar pecados é um tema importante para Mt. Ele já introduziu o menino “Jesus” especificando o significado do nome dele: “salvará o povo dos seus pecados” (1,21). Mt destaca o pedido de perdão na oração do Pai-Nosso (6,12-14), discursa sobre a autoridade e experiência do perdão na comunidade (18,15-35; 16,19) e na última ceia acrescenta mais palavras sobre o cálice da eucaristia, “para remissão dos pecados” (26,28; cf. Is 53,12),

A paralisia expressa a situação do pecador. O pecado escraviza, tira a liberdade de se movimentar (cf. Gl 5,1.13; Rm 7,14ss; 8,14-15). No séc. 16, o primeiro protestante, Martin Lutero, tirou a confissão e as indulgências por terem sidas abusadas pela ganância do clero daquela época. Depois o Concílio de Trento corrigiu estes abusos e insistiu no poder de perdoar pecados que não é privilégio exclusivo de Deus ou de seu Filho, porque Jesus passou esta autoridade para Pedro e os apóstolos (cf. Mt 16,19; 18,18; Jo 20,23); e estes passaram a autoridade para seus sucessores, os bispos católicos, que a passam também aos padres. Assim o pecador arrependido não precisa duvidar mais, se Deus já o tenha perdoado ou não. Com a absolvição dos pecados, pronunciada por um ministro autorizado (ordenado), ele pode ter a certeza de ser livre: ”Filho, teus pecados estão perdoados.”

O site da CNBB comenta: Onde é mais fácil que vejamos a ação de Deus na nossa vida, quando Deus realiza uma cura ou nos concede alguma graça pela qual suplicamos ou fizemos promessas ou quando ele perdoa os nossos pecados? É claro que ao lermos este texto, afirmamos que é quando ele perdoa nossos pecados, mas a gente não vê as pessoas celebrarem ações de graças quando são perdoadas e sempre vemos celebrações em ação de graças por curas, conquistas e coisas do gênero. Isto tudo nos mostra que intelectualmente sabemos as coisas certas, mas existencialmente vivemos subordinados aos valores do mundo, de modo que somos pessoas divididas entre o que falamos e o que de fato acreditamos. O Evangelho de hoje é para todos nós um convite: precisamos de fato enxergar mais além para valorizarmos mais os verdadeiros dons que Deus nos concede.

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