06 de março de 2018 – Terça-feira, Quaresma 3ª semana

Leitura: Dn 3,25.34-43

A liturgia nos apresenta mais uma oração penitencial como leitura. Pertence a um gênero bem conhecido e bastante estável em seus componentes (cf. Sl 50-51; Esd 9; Ne 9; Dn 9; Br 1,15-3,8). Como no livro de Ester encontramos orações em grego (aqui também em siríaco), inseridas no texto aramaico de Dn. Estes acréscimos fazem parte da Bíblia católica (versículos com número maior), não da hebraica (nem da protestante que só tem a hebraica/aramaica como AT).

Azarias, parou e, de pé, começou a rezar; abrindo a boca no meio do fogo, disse: (v. 25)

O texto aramaico de Daniel contou que o rei da Babilônia, Nabuconodosor, havia construído uma estátua de 30 metros de altura e ameaçado de jogar na fornalha quem não se prostrasse para adorar a estátua (vv. 1-7). Isso colocou os judeus no exílio em perigo porque um judeu fiel só adora o único Deus, não prática idolatria (cf. Ex 20,3-6). Daniel vivia no exílio e tinha três amigos judeus (cf. 1,6), Ananias (Sidrac), Misael (Misac) e Azarias (Abdênago) que foram denunciados e jogados na fornalha com temperatura máxima (vv. 8-23).

Mas o Senhor os salvará, um anjo descerá e expulsará as chamas para não tocarem neles (vv. 49-50. 91/24-94/27). Impressionado por esta prova de fogo, Nabucodonosor confessará “não existe outro deus como esse capaz de salvar” (v. 96/26). Mas antes e depois da salvação milagrosa, o autor grego inseriu duas orações: antes, a oração de Azarias (vv. 25-45, daí nossa leitura) e depois, o cântico das criaturas (vv. 52-90). São provavelmente textos litúrgicos mais antigos, adaptados e colocados segundo as circunstâncias.

“Oh! não nos desampares nunca, nós te pedimos, por teu nome, não desfaças tua aliança nem retires de nós tua benevolência, por Abraão, teu amigo, por Isaac, teu servo, e por Israel, teu Santo, aos quais prometeste multiplicar a descendência como estrelas do céu e como areia que está na beira do mar (vv. 34-36).

Como em textos semelhantes, Azarias fala em nome da comunidade. Os três amigos tinham caído amarrados no forno (cf. v. 23), mas ele se levantou e “de pé, começou a rezar, abrindo a boca no meio do fogo” (v. 25). A leitura de hoje omite a primeira parte (vv. 26-33), a confissão da culpa. O Senhor cumpriu lealmente os compromissos da aliança com seu povo, mas o povo não cumpriu os seus. Quando o homem confessa sua culpa e aceita humildemente o castigo, reconhece que o Senhor tinha razão e por isso glorifica seu Deus.

Na segunda parte (nossa leitura), Azarias apela a misericórdia enumerando vários motivos clássicos: a honra de Deus, sua promessa, a situação do povo seguida pelo propósito de emenda. O povo abandonou Deus, que Deus não abandone o povo no exílio: “Não nos desampares nunca” (v. 34a). O povo faltou a seus compromissos, que Deus não falte a suas promessas: “Por teu nome, não desfaças tua aliança” (v. 34b). O “nome” do Senhor, sua reputação está em jogo, se seu povo continuar na miséria (cf. Ex 32,11-13). Pelo perdão e pela libertação (v. 43), Deus pode glorificar e santificar seu nome (cf. Ez 20,44; 36,22; Sl 79,9).

Azarias lembra a misericórdia (“benevolência”) por Abraão e sua descendência (cf. Lc 1,53s). “Abraão, teu amigo” (v. 35; cf. Is 41,8; 2Cr 20,7; Tg 2,23), este belo título de Abraão se conservou ainda hoje nas tradições árabe e muçulmana (El Khalil – o amigo). Deus prometeu-lhe “descendência como estrelas do céu e como areia que está à beira do mar” (v. 36; Gn 15,5; 22,17).

Senhor, estamos hoje reduzidos ao menor de todos os povos, somos hoje o mais humilde em toda a terra, por causa de nossos pecados; neste tempo estamos sem chefes, sem profetas, sem guia, não há holocausto nem sacrifício, não há oblação nem incenso, não há um lugar para oferecermos em tua presença as primícias, e encontrarmos benevolência; mas, de alma contrita e em espírito de humildade, sejamos acolhidos, e como nos holocaustos de carneiros e touros e como nos sacrifícios de milhares de cordeiros gordos, assim se efetue hoje nosso sacrifício em tua presença, e tu faças que nós te sigamos até ao fim; não se sentirá frustrado quem põe em ti sua confiança (vv. 37-40).

Esta promessa a Abraão está ameaçada seriamente durante o exílio babilônico de Dn e seus amigos (séc. VI. a.C.), como também na situação da comunidade do autor, a opressão violenta do rei grego Antíoco IV Epífanes que queria acabar com os costumes judaicos (167-164 a.C.). “Senhor, estamos hoje reduzidos ao menor de todos os povos, … neste tempo estamos sem chefes, sem profetas, sem guia, não há holocausto nem sacrifícios…” (vv. 37-38; cf. Sl 74,2-9; 1Mc 4,38.44-46). Israel era o menor povo no momento da escolha e da libertação (Dt 7,7) e voltará a ser pequeno se não for fiel a aliança (Dt 28,61). Não havia templo disponível para sacrifícios no exílio, mas “de alma contrita e em espírito de humildade, sejamos acolhidos, e como nos holocaustos … assim se efetua hoje nosso sacrifício em tua presença “(vv. 37-40; cf. Sl 51,19; Os 6,6; Mq 6,7-8).

“Holocausto” significa um sacrifício “queimado por inteiro”, sem reter partes da carne sacrificada para o sacerdote ou outrem (Lv 1). Em Gn 22, Deus interrompeu o sacrifício de Abraão que tinha amarrado seu filho Isaac para ser sacrificado; o sacrifício humano foi substituiu por sacrifícios de animais (pela tradição, era o mesmo lugar, onde depois foi erguido o templo de Jerusalém). Agora Azarias oferece sua alma e seu espírito em holocausto, e sua oração será atendida. Os sacrifícios no templo duraram até a destruição do templo pelos romanos na guerra judaica em 70 d.C. Quando se fala em “holocausto” hoje, se refere ao genocídio dos nazistas que mataram seis milhões de judeus e queimaram inúmeros cadáveres em fornos industriais nos campos de concentração (Auschwitz etc.).

Azarias pede que seu sacrifício faça “que nós te sigamos até o fim; não se sentirá frustrado que põe em ti sua confiança” (v. 40; cf. Is 49,23; Sl 22,6; 25,3).

De agora em diante, queremos, de todo o coração, seguir-te, temer-te, buscar tua face; não nos deixes confundidos, mas trata-nos segundo a tua clemência e segundo a tua imensa misericórdia; liberta-nos com o poder de tuas maravilhas e torna teu nome glorificado, Senhor” (vv. 41-43).

“De agora em diante” a comunidade quer seguir, temer e buscar a face de Deus (v. 41; Sl 24,6; 27,8). O pedido por libertação se junta ao apelo a “tua imensa misericórdia; liberta-nos com o poder das tuas maravilhas.” Mesmo na fornalha abrasador da Babilônia e nas câmaras de gás de Auschwitz, na cruz e na forca, nas prisões e nas guerras, a oração não cessa, porque há uma força maior, Deus que nos protege com o poder das suas maravilhas.

Evangelho: Mt 18,21-35

Mateus organizou seu evangelho a partir de cinco grandes discursos de Jesus (cada um é seguido por uma narrativa): o sermão da montanha (caps. 5-7); sobre a missão dos discípulos (cap. 10); parábolas (cap. 13); a vida na comunidade (cap. 18) e os fins dos tempos (caps. 24-25). Com o número cinco, Mt quer aludir ao Pentateuco (grego: os primeiros “cinco livros” da Bíblia; em hebraico chamados de Torá, a “Lei” de Moisés), porque Mt escreve para judeu-cristãos.

Na primeira parte do discurso sobre a vida na comunidade, vários assuntos de convivência fraterna são tratados: Quem é o maior? Quem se torna pequenino como criança (vv. 1-4). Os escândalos (vv. 5-10), a ovelha desgarrada (vv. 12-14), a correção fraterna (vv. 15-18) e a oração em comum (vv. 19-20: “onde dois ou três estão reunidos em meu nome”).

Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete (vv. 21-22).

A segunda parte do discurso fala sobre o perdão. Pedro a quem Jesus entregou as chaves do reino para ligar ou desligar, perdoar ou condenar (16,9; cf. 18,18; Jo 20,23) pergunta: “Quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21).

Já é uma boa sugestão, mas Jesus responde: “Setenta vezes sete”, quer dizer, não há limite para o perdão! Enquanto a sugestão de Pedro ainda calcula (agora já é a sexta vez, só mais uma), a resposta de Jesus quer dizer perdoar sempre, sem contar. “Sete” é o número da plenitude (cf. Gn 1). O mesmo jogo de números encontra-se, no sentido inverso, na descendência de Caim: “Lamec disse as suas mulheres: ‘… É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes’” (Gn 4,23-24). Esta vingança sem medida (77x) será limitada depois pela Lei do Talião: “(um) olho por (um) olho, (um) dente por (um) dente” (Ex 21,24; Dt 19,21; já aparece no Código de Hamurabi, 1772 a.C.). Esta lei é dura aos nossos olhos, mas na época era um progresso evitando a vingança sem limites. Mas a Lei do Talião ainda não traz a paz (alguém disse: “Então, ao final, todos estaremos cegos e sem dentes”). Para ter paz, seja no Oriente Médio, seja nas nossas famílias e comunidades, é preciso de perdão, não de violência, mas de perdão ilimitado como Jesus sugere (cf. 5,21-26.38.48).

Porque o Reino dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados. Quando começou o acerto, trouxeram-lhe um que lhe devia uma enorme fortuna. Como o empregado não tivesse com que pagar, o patrão mandou que fosse vendido como escravo, junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía, para que pagasse a dívida. O empregado, porém, caiu aos pés do patrão, e, prostrado, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei tudo”. Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida (vv. 23-27).

Para explicar esse perdão sem limite (77×7), Jesus conta uma parábola que joga também com valores. Um empregado do rei “lhe devia uma enorme fortuna” (lit. “10.000 talentos”, equivale a 20 toneladas de ouro ou 2.500.000 salários!). Esta soma imensa faz pensar que este servo se encontra num beco sem saída, sua salvação só dependerá da “compaixão” do rei. Tal é a situação do homem diante de Deus, representado em muitas parábolas como patrão ou rei. “O empregado, porém, caiu aos pés do patrão e, prostrado, suplicava: ‘Dá-me um prazo! Eu te pagarei tudo’. Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida” (vv. 26-27). Quem não podia pagar a dívida na época, era jogado na prisão ou vendido como escravo.

Ao sair dali, aquele empregado encontrou um dos seus companheiros que lhe devia apenas cem moedas. Ele o agarrou e começou a sufocá-lo, dizendo: “Paga o que me deves”. O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei”. Mas o empregado não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo na prisão, até que pagasse o que devia (vv. 28-30).

Aquele empregado, porém, não demonstrou compaixão alguma, quando “encontrou um dos seus companheiros que lhe devia apenas 100 moedas” (v. 28; “100 moedas de prata” são 100 diárias, ou seja, 32 gramas de ouro). O companheiro pede com o mesmo gesto “caindo aos pés” e suplica com as mesmas palavras: “Dá-me um prazo! E eu te pagarei” (v. 29; cf. v. 26). Mas o credor “não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo na prisão, até que pagasse o que devia.” (v. 30). O texto não questiona como ele conseguiria dinheiro dentro da prisão.

Vendo o que havia acontecido, os outros empregados ficaram muito tristes, procuraram o patrão e lhe contaram tudo. Então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse: “Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida, porque tu me suplicaste. Não devias tu também, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” O patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida. É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão” (vv. 31-35).

Esta atitude sem misericórdia entristeceu os outros empregados, então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse: “Empregado perverso, não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti”? (v. 33). O patrão indignado revogou o perdão antes concedido e entregou-o “aos torturadores, até que pagasse toda sua dívida” (v. 34) Novamente não se questiona como um homem torturado na prisão conseguiria recurso financeiro? A não ser através de trabalho escravo ou ajuda de familiares. Na idade média, St.º Antônio conseguiu uma mudança na lei da cidade de Pádua para não mais punir devedores com a prisão.

A parábola toda é uma ilustração exemplar do pedido no Pai-Nosso: “Perdoai-nos as nossas dividas (ofensas), como nos perdoamos quem nos tem ofendido (nossos devedores)” (cf. 6,12; cf. comentário de 3ª feira da semana passada). Diante do Pai que está nos céus, todo o ser humano é devedor, porque Deus lhe deu a vida e muito mais. A generosidade de Deus para comigo deve me levar a ser misericordioso aos todos os irmãos necessitados.

O site da CNBB comenta: O Evangelho nos surpreende muitas vezes ao usar determinados termos que, à primeira vista, nos parecem totalmente descabidos em relação a Deus. O texto de hoje nos mostra Deus indignado por causa da falta de perdão. Como pode Deus indignar-se, o Altíssimo ter a sua dignidade ferida? Este texto nos mostra uma realidade muito profunda: se o pecado fere a dignidade humana, a ausência do perdão fere a dignidade divina. Por que? Porque Deus é amor, é misericórdia, e negar o amor e a misericórdia é negar o próprio Deus na sua essência. Negar o perdão é negar que Deus é amor e misericórdia e impedir que ele aja com amor e misericórdia em relação a nós mesmos, e impedir a ação misericordiosa de Deus é causar-lhe indignação.

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