06 de setembro de 2016 – 23ª semana 3ª feira

Leitura: 1Cor 6,1-11

Na leitura de hoje, Paulo censura os coríntios por exporem as suas discórdias diante dos pagãos, em vez de as resolverem pacificamente entre si. Com particular severidade, reprova o fato de os cristãos terem litígios entre si e, mais ainda, o fato de levarem tais contendas aos tribunais pagãos.

Às facções (cap. 1) se acrescenta a desgraça dos processos, com a agravante de que assuntos de família acabam expostos de submetidos aos de fora. A estes chama de “injustos” (v. 1) e “infiéis” (v. 6). Mas também os cristãos briguentos são chamados de injustos por desconhecerem os critérios da verdadeira justiça (v. 7).

Não se devem tomar por argumentos decisivos as expressões paulinas inspiradas, antes, por ironia sarcástica. O autêntico pensamento de Paulo sobre os magistrados pagãos encontra-se em Rm 13,1-7.

Quando um de vós tem uma questão com um outro, como se atreve a entrar na justiça perante os injustos, em vez de recorrer aos santos? Será que ignorais que os santos julgarão o mundo? Ora, se o mundo está sujeito ao vosso julgamento, seríeis acaso indignos de deliberar e julgar sobre questões tão insignificantes? Ignorais que julgaremos os anjos? Quanto mais, coisas desta vida! (vv. 1-3).

Mesmo sob o domínio persa, selêucida e romano, os judeus gozavam de relativa autonomia judicial (Jo 18,31); não menos os cristãos em assuntos internos (sobre tribunais internos, cf. Ex 18,13-27; Dt 17,8-13). A diferença é que os cristãos não viviam numa sociedade teocrática como os judeus. Em Coríntio, os tribunais eram formados por magistrados honorários, nomeados entre os notáveis da cidade pelo período de um ano. Como os cristãos da mesma cidade, de status social inferior (cf. 1,26), levariam suas causas diante dos poderosos? O fato é tão absurdo para Paulo, que ele repete várias vezes: “ignorais” (vv. 2.3.9).

Dada sua união com Cristo, os fiéis são constituídos juízes do mundo e dos anjos. Ora, como é possível que os próprios juízes divinos levem causas mesquinhas aos juízes humanos? A idéia de que no julgamento final os “santos” sentarão no tribunal para julgar o mundo e os “anjos” decaídos e rebeldes acorrentados à espera do julgamento é tomada do gênero apocalíptico (cf. Dn 7,9s.13s.18.22.26s; Mt 19,28p; cf. Sl 149,6-9). Antecedentes dessa ideia podem ser encontrados em Is 24,21s: exércitos do céu (astros, anjos) e reis da terra, depois de longa prisão, “comparecerão ao julgamento” (cf. 2Pd 2,4). Em Dn 7,9 se fala de “tronos” ou assentos (plural) no tribunal do ancião, e em 7,18 se diz que “os santos do altíssimo possuirão o reino”. Para Paulo, os “santos” são os membros da comunidade (cf. Rm 1,7; 15,25; 1Cor 1,2 etc.) que julgarão com Cristo, soberano juiz do mundo.

Os magistrados pagãos são assim chamados de “injustos” não porque em Coríntio fossem especialmente venais ou iníquos, mas porque não tinham a “justiça” conferida por Deus, não foram justificados pela fé em Jesus Cristo (cf. v. 11; Rm 1-8).  Daí o trocadilho de Paulo: como poderiam eles “fazer justiça” aos “justos” que são os santos, os membros da comunidade?

No entanto, se tendes dessas questões a resolver, recorreis a juízes que a igreja não pode recomendar (v. 4).

“Juízes que a igreja não pode recomendar” lit. “menospreza”. Essa expressão que Paulo se deixa arrastar por sua oratória, deve ser lida à luz de Rm 13,1-7 e em particular do v. 7, que enuncia que os magistrados devem ser honrados pelos cristãos. Pode-se também traduzir: “se tiverdes processos dessa ordem, estabelecei como juízes as pessoas de que a Igreja não faz nem um caso”, isto é, os mais humildes e menos considerados entre os cristãos (ironia!). Eles deveriam bastar para “julgar sobre questões tão insignificantes” (v. 3).

Os argumentos aduzidos só visam a essa finalidade e não devem ser erigidos em princípios absolutos: Paulo reconhece a validade e a origem divina das instituições civis (Rm 13,1-7).

Digo isso, para confusão vossa! Será, então, que aí entre vós não se encontra ninguém sensato e prudente que possa ser juiz entre irmãos? Ao invés disso, irmão contra irmão vai a juízo, e isso perante infiéis! Aliás, já é uma grande falta haver processos entre vós. Por que não suportais, antes, a injustiça? Por que não tolerais, antes, ser prejudicado? Pelo contrário, vós é que cometeis injustiças e fraudes, e isso contra irmãos! (vv. 5-7).

Paulo sugere uma solução prática, seria constituir um pequeno tribunal, entre os próprios irmãos, como em Mt 18,15-17, ou até mesmo sofrer alguma injustiça; mas nunca levar casos de irmãos ao julgamento externo.

Para o caso de processos entre cristãos, Paulo propõe um mandamento e um conselho: o mandamento é resolvê-los dentro, submetendo-os a árbitros qualificados, capazes de julgar com sentido cristão. “Sensato e prudente”, Paulo ironiza, aludindo à pretensão dos coríntios à sabedoria (cf. 1,17-3,22). O conselho é renunciar aos próprios direitos pelo bem da paz, que seria um triunfo da caridade sobre a justiça. Esse conselho atualiza o de Jesus no sermão da montanha (Mt 5,38-48).

Porventura ignorais que pessoas injustas não terão parte no reino de Deus? Não vos iludais: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem pederastas, nem ladrões, nem avarentos, nem beberrões, nem insolentes, nem salteadores terão parte no reino de Deus (vv. 9-10).

Esse fragmento combina melhor com o capítulo precedente que tratou o caso de um incesto. Acrescentam-se outras categorias à lista anterior de 5,11, até compor uma espécie de decálogo negativo, no qual delitos sexuais ou contra a propriedade ocupam sete lugares, e a idolatria não ocupa o primeiro lugar. Todos estes dez delitos são impedimentos para “ter parte (lit. herdar) no reino de Deus” (15,50; Gl 5,19-21; Ef 5,5; Ap 21,8; 22,15). Os termos traduzidos por “efeminados” e “pederastas” devem se referir a homossexuais e pedófilos. Em Rm 1,26s, Paulo partilha dos preconceitos do judaísmo que vê em relações homossexuais uma consequência da idolatria. Para julgar corretamente uma culpabilidade hoje, há de levar em conta as pesquisas psicológicas ou genéticas. Nos documentos recentes, a Igreja não condena sentimentos homo-afetivos, mas a prática dos atos; reconhece certos direitos de uniões civis entre homossexuais, mas é contra a tentativa de igualar-lhes a um casamento de heterossexuais. A Igreja, porém, é contra a discriminação de homossexuais que devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza” (CIC 2357-2359).

No mundo ocidental, o homossexualismo deixou de ser crime e, segundo a ONU, nem deve ser considerado doença. Mas a pedofilia é perseguida com mais rigor que antigamente porque valoriza-se mais a criança e suas feridas profundas na alma causadas por este crime. Devido a numerosos escândalos descobertos pela mídia, a Igreja mudou de atitude: em vez de proteger a imagem da Igreja e encobrir o escândalo apenas transferindo um padre pedófilo, o bispo deve envolver a justiça do estado para investigar se tiver suspeito.

E vós, isto é, alguns de vós, éreis isso! Mas fostes lavados, fostes santificados, fostes justificados pelo nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus (v. 11).

Como cidade de dois portos, Corinto tinha a fama de imoralidade. Se os coríntios pagãos antes comentaram esses vícios, o batismo lavou tudo e exige vida nova. Por causa do contexto, apresenta o batismo primeiro como purificação (“lavados”), seguem-se a consagração a Deus (“santificados”) e o estado de justiça (“justificados”). Ouve-se o eco ou a antecipação de uma fórmula trinitária na inovação batismal (Mt 28,19; cf. 2Cor 13,13).

Evangelho: Lc 6,12-19

No Evangelho de hoje, Lc apresenta a lista dos doze apóstolos, copiando a do evangelho mais antigo de Mc (cf. Mc 3,13-19p). No seu segundo volume (Atos dos Apóstolos), Lc reapresenta esta lista sem o traidor Judas, mas com Maria, a mãe de Jesus e as mulheres (At 1,13-15).

Naqueles dias, Jesus foi à montanha para rezar. E passou a noite toda em oração a Deus. (v. 12).

Já em Mc 3,13, “Jesus subiu ao monte e chamou os que desejava escolher”. Mas em Lc, Jesus sobe para “rezar” e “passou toda a noite em oração”. Lc menciona muitas vezes a oração de Jesus (3,21; 5,16; 6,12; 9,18.28-29; 10,21; 11,; 22,32.40-46; 23 34,46). No contexto de Lc, Jesus saiu da massa entusiasta e dos rivais hostis, “foi a montanha”, lugar do encontro com Deus (1Rs 19), e “passou a noite” (Sl 1,2; 42,4; 119,55) “em oração”. Sobre o conteúdo da oração de Jesus, os evangelhos sinóticos (Mc, Mt, Lc) são muito sóbrios: uma efusão do Espírito Santo (10,21-22p), a angustia em Getsêmani (22,39-46p) e um salmo no cruz (Sl 22,2; 31,6; cf. o pedido de perdão em Lc 23,34). O evangelho de João é mais explícito (Jo 11,41s; 12,27s; cap. 17). Aqui no contexto de Lc, a oração prepara a escolha dos doze e o grande discurso da planície (vv. 17-49).

Ao amanhecer, chamou seus discípulos e escolheu doze dentre eles, aos quais deu o nome de apóstolos (v. 13).

Jesus tem a iniciativa da escolha (no AT, Javé: 1Sm 10,24; Sl 78,68,70) de doze apóstolos, que formarão o núcleo da comunidade nova que ele veio criar. A palavra grega apóstolo significa aquele que Jesus envia para continuar a sua obra. São doze, como as tribos que formam o Israel clássico (cf. Gn 29,31-30,24; 35,21; Ex 1,2-5; etc. 1Rs 4,7). São doze, como corpo ou colégio. No tempo da Igreja, embora os doze tenham um lugar único, o título se estende e se aplica com maior facilidade em formas derivadas, como apostólico, apostolado etc.. Lc emprega o título apóstolo seis vezes em seu evangelho (além de 6,13 em 9,10; 11,49; 17,5 22,14; 14,10; Mt e Jo apenas uma vez; Mc: duas vezes). Ao contrario de Paulo (1Cor 12,20; Ef 2,20), Lc reserva este nome para os Doze chamado por Jesus ainda na Galileia (salvo At 14,4.14).

Simão, a quem impôs o nome de Pedro, e seu irmão André; Tiago e João; Filipe e Bartolomeu; Mateus e Tomé; Tiago, filho de Alfeu, e Simão, chamado Zelota; Judas, filho de Tiago, e Judas Iscariotes, aquele que se tornou traidor (vv. 14-16).

Para o pensamento bíblico, aquele que dá um nome novo a um homem assume o poder sobre ele (2Rs 23, 34; 24,17), como ele um destino novo pela eficácia do mesmo, sobretudo quando é o próprio Deus quem impõe o nome novo (Gn 17,5.15;32,29). A atribuição a Simão do nome de “Pedro” é relatada pelos evangelhos em momentos diferentes: Jo 1,42 a situa no primeiro encontro do discípulo com o mestre; Mc 3,16 e Lc 6,14 a vinculam à escolha dos Dozes; ambos sublinham esse dado mencionando até então Simão (Lc 4,38; 5,1-10, salvo 5,8), e em seguida Pedro (as exceções, Lc 22,31 e 24,34 usando o nome Simão, devem provir de fontes particulares).

Nesse texto com seu contexto já aparece uma estrutura da comunidade. Em círculos concêntricos situam-se o povo, os discípulos, os doze. Pedro figura sempre em primeiro lugar e Judas Iscariotes no último. O grupo é bastante heterogêneo: há dois de nomes gregos (André, Filipe), um ex-colaboracionista (identificando Mateus com Levi, cf. Mt 9,9p), um ex-simpatizante dos extremistas zelotes (Simão “cananeu é “zelota”: Lc traduz o termo aramaico de Mt 10,4; Mc 3,18), e até um traidor (sobre mais detalhes, cf. comentário de 6ª feira da 2ª semana ou 4ª feira da 14ª semana).

Jesus desceu da montanha com eles e parou num lugar plano. Ali estavam muitos dos seus discípulos e grande multidão de gente de toda a Judéia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia. Vieram para ouvir Jesus e serem curados de suas doenças. E aqueles que estavam atormentados por espíritos maus também foram curados. A multidão toda procurava tocar em Jesus, porque uma força saía dele, e curava a todos (vv. 17-19).

Um novo sumário, de ensinamento e curas (em Mc 3,7-12 antecedeu ao chamado dos Doze), serve de fundo ao discurso que se segue. Como Moisés, Jesus desce da montanha para dirigir-se ao povo. O narrador insiste na multidão de discípulos e de povo vindo da capital e da sua província (não se menciona a Galileia; cf. Mc 3,7) até o litoral pagão de Tiro e Sidônia (cf. 10,13-14). Essa afluência significa primeiramente uma reunião da diáspora; num segundo tempo simboliza a Igreja de judeus e pagãos. Jesus atrai por seu ensinamento (cf. 11,31), é um dado que prepara o próximo discurso “num lugar plano”; e atrai por seu poder curador, que se transmite por contato. Podemos falar do poder de Deus encarnado em corpo humano, do poder vivificante que “nossas mãos tocaram” (1Jo 1,1). O povo vem de todas as partes ao encontro de Jesus, porque a ação dele faz nascer a esperança de uma sociedade nova, libertada da alienação e dos males que afligem os homens.

Lc copiou este sumário de Mc 3,7-12 (só antecipou o grito dos possessos a respeito do Filho de Deus em Lc 4,41). Mc tinha o colocado antes de Jesus subir a montanha e escolher seus apóstolos. Mt e Lc o apresentam antes de um sermão que em Mt acontece na montanha (5,1-7,29) e em Lc na planície (vv. 17.20-49; evangelhos dos próximos dias). Apesar desta diferença geográfica é surpreendente o fato que os dois evangelistas inserissem este sermão no mesmo lugar da narração, porque eles trabalham independentemente um do outro (cf. a narração divergente da infância de Jesus). Foi o Espírito Santo que inspirou esta inserção paralela ou existia uma versão redigida de Mc (Deutero-Marcos) que ambos usavam e na qual o sermão já estava inserido neste mesmo lugar?

O site da CNBB comenta: Jesus não quis realizar sozinho a obra do Reino, mas chamou apóstolos e discípulos para serem seus colaboradores. Nós, ao contrário, muitas vezes queremos fazer tudo sozinhos e afirmamos que os outros mais atrapalham que ajudam. Com isso, negamos a principal característica da obra evangelizadora que é a sua dimensão comunitário-participativa, além de nos fazermos auto-suficientes, perfeccionistas e maquiavélicos, pois em nome do resultado do trabalho evangelizador, excluímos os próprios evangelizadores, fazendo com que os fins justifiquem os meios e vivendo a mentalidade do mundo moderno da política de resultados, isto porque muitas vezes não somos evangelizadores, mas adoradores de nós mesmos.

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