07 agosto de 2017 – Segunda-feira, 18ª semana

Leitura: Nm 11,4b-15

Depois de um recenseamento dos israelitas que deu o nome ao livro de Números, retomam-se as narrativas da caminhada dos israelitas pelo deserto durante quarenta anos (cf. 14,34; Ex 16,35). A partida do Sinai começa em cap. 10. A narrativa sobre o maná na leitura de hoje pode ser mais antiga por não estar relacionada ao sábado como em Ex 16.

A leitura de hoje nos apresenta um cansaço duplo: O povo cansou-se da comida monótona (vv. 4-9) e Moisés cansou do seu papel de líder deste povo (vv. 10-15). A continuação do capítulo (omitida pela nossa liturgia) apresenta a solução destes dois problemas: aves chamadas codornizes enriquecerão a dieta do deserto com carne (v. 13; cf. Ex 16,8.12) e a liderança de Moisés tornar-se-á menos pesada com a descentralização e colaboração de 70 anciãos ou juízes (vv. 16s.24b-30; cf. Ex 18,13-27). A narrativa de 11,4-34 combina estas duas tradições: uma sobre o maná e as codornizes (vv. 4-13; 18-24a; 31-34) e outra inserida sobre o dom do Espírito aos anciãos (vv. 14-17; 24b-30). No livro de Êxodo, os episódios separados do maná (Ex 16) e a instituição dos juízes (Ex 18) se situam entre a saída do Egito e a chegada ao Sinai, em Nm 11 são colocados juntos depois da partida do Sinai no caminho a Kades (cf. v. 35; 12,16; 13,26). Nos dois casos, elementos de tradição diferente foram agrupados num quadro geográfico artificial.

Já ouvimos do maná e das codornizes em Ex 16 em que um relato da “tradição sacerdotal” mesclou numa só narração a passagem das codornizes e o dom do maná (junto com a instituição do sábado; cf. a leitura e o comentário da 4ª feira da 16ª semana). O Maná e as codornizes reunidos na mesma narrativa de Ex 16 colocaram um problema: O maná é devido à secreção de insetos que vivem em certas tamargeiras, mas somente na região central do Sinai: ele é colhido em maio-junho. As codornizes, cansadas pela travessia do mediterrâneo na volta da sua migração para a Europa, por volta de setembro morrem em grande quantidade sobre a costa, ao norte da península, levadas pelo vento (cf. Nm 11,31). Estas narrativas podem combinar a lembrança de dois grupos que deixaram separadamente o Egito e cujos itinerários naturais servem para ilustrar a providência especial de Deus pelo seu povo.

Os filhos de Israel começaram a lamentar-se, dizendo: ”Quem nos dará carne para comer? (v. 4b).

Esta “multidão” (v. 4a) dos filhos de Israel já consta na partida do Egito em Ex 12,38. São “seiscentos mil homens” (v. 21; Ex 12,37). Impossível um povo inteiro andar no deserto bem alimentado. A palavra hebraica êlef significa “mil”, mas também “família, clã, unidade militar” (assim se poderia reduzir para apenas 25.000 pessoas). Não há nenhum registro egípcio do êxodo. Historicamente é mais provável que vários grupos menores haviam fugido do Egito em etapas e depois se juntaram com pastores e camponeses formando o povo de Israel.

A queixa dos israelitas continua a série das murmurações de Ex 14,11-12; 15,23-25; 16,2-3; 17,2-7 e continuará com mais casos. A queixa supõe que não dispõem (mais) de rebanhos (cf. Ex 12,38).

Vêm-nos à memória os peixes que comíamos de graça no Egito, os pepinos e os melões, as verduras, as cebolas e os alhos. Aqui nada tem gosto ao nosso paladar, não vemos outra coisa a não ser o maná” (vv. 5-6).

A dieta egípcia está descrita corretamente, faltando só a cerveja (ainda sem o lúpulo que vem dos povos germânicos) que os construtores das pirâmides recebiam junto com pães, segundo arqueólogos.

O maná era parecido com a semente do coentro e amarelado como certa resina. O povo se dispersava para o recolher e o moía num moinho, ou socava num pilão. Depois o cozinhavam numa panela e faziam broas com gosto de pão amassado com azeite. À noite, quando o orvalho caía no acampamento, caía também o maná (vv. 7-9).

A descrição do maná não coincide com a de Ex 16,31. Segundo Ex 16,21, o calor solar o dissolvia, aqui o calor do fogo o cozinha. A etimologia popular do termo “maná”, cuja significação exata é desconhecida, é a aclamação dos israelitas ao encontrar o maná: “man-hu = o que é isso?” (Ex 16,15). A seiva de um arbusto do deserto que ressuda e se solidifica, pode servir de alimento complementar.

A reflexão de Israel interpretou esse fato de várias maneiras. Para Nm 11,4-6 e 21,5, o maná é apenas um alimento desprezível, uma simples guloseima para enganar a fome. Para textos mais tardios (Sl 105,40; 78,24-25: Ne 9,15.20; Sb 16,20-21), o maná aparece como um alimento maravilhoso, sinal da solicitude de Deus, “trigo celeste” (Sl 78,24) ou “pão celeste” (Sl 105,4; cf. o discurso de Jo 6). Para Ex 16 (como para Dt 8,3), provém de Deus, mas como uma “prova”; é na verdade, uma comida misteriosa e frágil (Ex 16,15.21) através da qual se passa a exigir a obediência à lei do sábado (Ex 16,27-30). Só quando terminar o tempo do deserto, tempo de prova, o maná dará lugar aos produtos da terra prometida (Ex 16,35; cf. Js 5,12). Celebrado nos Salmos e na Sabedoria, o alimento do maná torna-se para a tradição cristã (cf. Jo 6,26-58), a figura da eucaristia, alimento espiritual da Igreja, verdadeiro Israel, durante seu êxodo terreno (viático) Sobre o maná no NT, cf. Jo 6,32; 1Cor 10,3; Mc 6,30-44p.

Moisés ouviu, pois, o povo lamentar-se em cada família, cada um à entrada de sua tenda (v. 10).

Javé Deus ouvia o clamor do seu povo oprimido na escravidão (cf. Ex 3,7) e acabou de libertá-lo com grandes sinais e prodígios (Ex 7-14) e deu a lei da liberdade (os dez mandamentos em Ex 20). Após esta libertação surgem as dificuldades e obstáculos que desafiam a coragem do povo para construir uma nova realidade. Surge a tentação de se acomodar numa simples lembrança do passado, onde a falta de liberdade era compensada pela possibilidade de consumir bens variados. O povo apagou da memória a imagem da opressão (cf. Ex 1,11-14; 5,6-14) e recorda somente a abundância dos alimentos. Ao invés de dar passos para conseguir o novo alimento, o leite e mel prometidos na terra de Canaã (cf. Ex 3,8), quer voltar para a escravidão do Egito. Incrível que exercem maior atração os bens da escravidão do que a liberdade que custa sacrifício e exige renúncia. Ser livre é uma conquista contínua, e a maior tentação é a de vender a liberdade “a preço de banana”.

Então o Senhor tomou-se de uma cólera violenta, e Moisés, achando também tal coisa intolerável, disse ao Senhor: ”Por que maltrataste assim o teu povo? Por que gozo tão pouco do teu favor, a ponte de descarregares sobre mim o peso de todo este povo? Acaso fui eu quem concebeu e deu à luz todo este povo, para que me digas: “Carrega-o ao colo, como a ama costuma fazer com a criança; e leva-o à terra que juraste dar a seus pais! Onde conseguirei carne para dar a toda esta gente? Pois se lamentam contra mim, dizendo: ”Dá-nos carne para comer!” (vv. 11-13).

Estas queixas do povo provocaram a ira de Javé e o desgosto de Moisés. O povo não pode jogar nas costas do líder a responsabilidade pelo próprio destino, nem o líder, em sã consciência, pode assumir tal responsabilidade, por isso Moisés se queixa também a Javé.

A súplica de Moisés é admirável pela intimidade revelada. É queixa amorosa e audácia comedida. O Senhor maltrata um servo que o tem servido fielmente e o amo sai perdendo. O servo não alcança o favor esperado (Ex 33,12.13.16). O povo é uma carga imposta por Deus, não escolhida ambiciosamente por Moisés. Moisés não está obrigado a levar a carga; não é mãe do povo nem a nutriz. Quem é a mãe? A ela compete alimentar o povo menino, ainda que seja manhoso; que mostre nele o seu carinho (sobre a imagem materna, cf. Is 49,14s; 66,12; Sl 131). Embora a imagem materna não se costuma aplicar a Deus, ele carregou o seu povo (Ex 19,4; Dt 32,11). O Papa Francisco compara a Igreja como mãe que deve ficar próxima das pessoas, e não se comunicar só por cartas, documentos ou digitalmente.

Já não posso suportar sozinho o peso de todo este povo: é grande demais para mim. Se queres continuar a tratar-me assim, peço-te que me tires a vida, se achei graça a teus olhos, para que eu não veja mais tamanha desgraça” (vv. 14-15).

Além do mais, Moisés não pode carregar este povo porque não tem forças para tanto, o povo chora sempre descontente. Oprimido (deprimido) pelo peso da responsabilidade, Moisés pede a Deus que o faça morrer (cf. Elias em 1Rs 19,4 e Jonas em Jn 4,3).

A intercessão de Moisés (cf. 12,13; 14,10-19; Ex 32,6-14; 33,12-23) prepara a inserção da narrativa sobre os 70 anciãos. À queixa de Moisés responde o Senhor, bifurcando sua ação: para o povo, codornizes até se fartar e provocar náuseas (cf. vv.19-20), para Moisés, colaboradores experientes, os 70 anciãos que receberão uma parte do espírito profético de Moisés (vv. 16-17.24-30), possivelmente justificando a instituição pós-exílica que dará origem ao Sinédrio (2Cr 19,8-11; Esd 10,8; 1Mc 12,6; cf. Mt 26,3; Jo 11,47 etc.).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 165) comenta o bloco de 9,15-20,29 (leituras desta semana): Este bloco, semelhante a Ex 15,22-18,27, unindo diversas narrativas de murmurações no deserto, rebeliões, pecados e novo tributos, reforça a concentração da autoridade e da direção política e religiosa nas mãos da teocracia sacerdotal judaíta, que exige total obediência.

Evangelho: Mt 14,13-21

O evangelho de Mt segue o roteiro de Mc 6,30-44 que narra o banquete da vida (multiplicação dos pães após o banquete da morte (de João Batista por Herodes; cf. evangelho de sábado passado). O evangelho de hoje se divide em três partes: introdução, diálogo, milagre.

Quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado. Mas quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé (v. 13).

Mt salienta o comportamento de Jesus: ele não é fanático, querendo enfrentar imediatamente Herodes, mas se retira, parte de barco (não de Nazaré, onde estava em 13,58; Nazaré não tem acesso ao mar da Galileia como Cafarnaum). Mas também não é fatalista, deixando as coisas correr como estão. Ele continua fiel à missão de servir ao seu povo. O povo ainda segue Jesus, é Igreja em potencial.

Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes (v. 14).

Conforme sua tendência de resumir, Mt omite a introdução longa de Mc 6,30-34 (descanso num lugar deserto após a missão). Jesus não foge da multidão, mas “encheu-se de compaixão por eles”.  Mt já a descreveu “como rebanho sem pastor” em 9,36 (cf. Mc 6,34; Nm 27,17; 1Rs 22,17; Jr 10,21; 23,1-2; Ez 34,5-6.15; Zc 10,2). O ofício do pastor é feito de cuidado e compaixão. Sem ensinamentos (Mc 6,34), Jesus logo cura os doentes, porque sua misericórdia e sua compaixão se manifestam nas curas (cf. 9,27.35s; 15,22.29-32; 17,15; 20,30s.34). Depois destas curas, a multiplicação dos pães não deve ser entendida somente simbólica ou sacramental, mas como algo mais concreto.

Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: “Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!” (v. 15)

Em Mt, a multidão não parece ser tal pobre, porque se supõe que as pessoas possam comprar seu alimento. Talvez o horário “ao entardecer” indica que o evangelista vivia numa cidade, porque lá havia mais o costume do jantar como refeição principal.

Jesus porém lhes disse: “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!” Os discípulos responderam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (vv. 16-17).

A resposta de Jesus já deixa sentir o que vai fazer, porque o povo não precisa sair. Ele é o soberano que parece exigir coisa impossível. O diálogo não apresenta a falta de compreensão dos discípulos (falando do salário de 200 dias em Mc 6,37), mas sua falta de fé, ou seja, apenas duvidam: “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (v. 17). Mt alude com frequência à fé fraca dos discípulos ou da comunidade em diálogos antes de realizar um milagre (8,26; 9,22.28s; cf. 14,31; 16,8). A fé não se fundamenta em milagres, mas por eles se espera e pede. Não é com a lógica do mercado, mas com a colaboração e partilha dos discípulos que Jesus sacia a multidão.

Jesus disse: “Trazei-os aqui.” Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida partiu os pães, e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuíram às multidões (vv. 18-19).

Mt omitiu a acomodação do povo em grupos de cinquenta (Mc 6,40). Para ele, esta alusão ao povo de Israel no deserto organizado por Moisés (cf. Ex 18,21.25; Nm 31,14; Dt 1,15) não tem tanta importância aqui. Como todo judeu piedoso, Jesus reza antes da refeição dando graças e distribui os pães. Num ambiente judaico, a benção não é benzer os pães, mas um louvor a Deus (benção = bem-dizer). Os leitores judeu-cristãos de Mt se lembram das suas próprias refeições (o pai de família reza e parte o pão para todos da sua casa) e também da comunhão com o Senhor na Eucaristia. Este sentido sacramental já se encontra em Mc 6,40 e Mt o reforça não falando mais da distribuição dos peixes. Obviamente Jesus precisa da colaboração dos discípulos ao partir e distribuir os pães para esta multidão.

Todos comeram e ficaram satisfeitos, e dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios. E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças (vv. 20-21).

Apesar da sua tendência de resumir, Mt acrescenta aqui as mulheres e crianças. Os números são simbólicos: cinco pães para 5000 pessoas lembram o pentateuco (cinco livros de Moisés, os primeiros livros da Bíblia) e os 12 cestos que sobram, lembram as 12 tribos de Israel. Em 15,32-39 e Mc 8,1-9 conta-se outra multiplicação dos pães, desta vez para os pagãos fora da terra de Israel e com outros números: sete pães, sete cestos e 4000 pessoas lembram os sete dias da criação (cf. sete diáconos para os helenistas em At 6,1-6; sete povos pagãos em Canaã; cf. Dt 7,1) e os quatro pontos cardeais (norte, sul, leste e oeste). No AT, há de considerar o pastor que dá descanso e comida às ovelhas (Sl 23), o maná no deserto (Ex 16), os milagres de Elias e Eliseu (1Rs 17,1-16; 2Rs 4,1-7.42-44) e os banquetes em Isaías (Is 25,6-8; 55,1-2; 65,13-14). Um milagre semelhante nos é contado em Jo 2,1-12, com o vinho no casamento em Caná.

Para Mt, o mais importante aqui é a soberania e a compaixão de Jesus que faz experimentar seu poder de curar e saciar o povo. Assim a comunidade cristã pode também fazer suas experiências com Jesus ressuscitado que se faz presente nela no seu dia a dia (cf. “Emanuel” em 1,23; 28,20; o pedido do Pai Nosso e a providência divina em 6,11.25-34). Ao total temos seis relatos da multiplicação de pães nos quatro evangelhos. Isto mostra a importância que os primeiros cristãos deram, provavelmente nas suas assembleias eucarísticas. Apesar da separação da eucaristia da refeição comum (cf. 1Cor 11,17-34), fica para nós o incentivo de partilhar e não desperdiçar os alimentos. Se todos dessem o que têm, ninguém passaria fome (cf. At. 2,44s; 4,32.34s).

O site a CNBB comenta: Uma das coisas mais importantes que nos são apresentadas a partir do sacramento da Eucaristia é a sua dimensão apostólica. A Eucaristia está intimamente ligada ao seguimento de Jesus e ao nosso agir apostólico. Quando os discípulos indagam Jesus sobre a situação da fome do povo, Jesus responde: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Em seguida, ele multiplica os pães. Assim, nós vemos a necessidade que existe de todos nós participarmos da missão de Jesus para podermos participar do verdadeiro pão multiplicado que é o sacramento da Eucarística.

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