07 de janeiro de 2018 – Domingo, Natal Epifania

 

A festa da “Epifania” (palavra grega que significa: manifestação [do Divino] na terra) é um segundo Natal. A Bíblia não informa sobre o dia em que Jesus nasceu (Lc 2,8 diz apenas que era noite). A Igreja Ocidental escolheu como data do nascimento de Cristo o solstício (na época 24-25/12; hoje é 21/12) para substituir a festa pagã do “sol invictus” (o sol não vencido pela escuridão do inverno) em Roma, mas o verdadeiro “sol da justiça” e “luz do mundo” é o Cristo (cf. Ml 3,20; Jo 8,12).

No Oriente, porém, havia o costume de celebrar Natal em 06 de janeiro, talvez para substituir no Egito a festa helenista do deus solar Aion que, segundo a mitologia, nasceu da virgem Kore (cf. o deus egípcio Horus e sua mãe Isis) na noite de 05 a 06 de janeiro; no dia 06 tirava-se a água salvífica do rio Nilo. Também havia uma celebração da “epifania” no culto do imperador romano que se baseava na travessia de Júlio César do rio Rubicon em 10 de janeiro do ano 49 a.C.

A água e a manifestação do Divino continuavam como conteúdo da festa da Epifania cristã. No dia 06, a seita cristã dos basilidianos celebrava o batismo de Jesus (segundo eles, foi pelo batismo que Jesus se tornou Filho de Deus). Para todos os cristãos, Epifania significava a presença do Divino na pessoa de Jesus Cristo, seu nascimento e a adoração dos pastores e dos magos, seu batismo no Rio Jordão e seu primeiro milagre (transformando água em vinho nas bodas de Caná; cf. Jo 2,1-12). Todos estes acontecimentos são epifania e conteúdo da sua festa oriental.

Outra coisa foi a reforma do calendário pelo papa Grigório XIII: para corrigir uma inexatidão, o dia 04/10 foi seguido logo pelo 15/10 no ano de 1582. As regiões protestantes adotaram esta reforma no séculos 18 e 17. Na Rússia, foi adota pela a revolução comunista que perseguia a religião, portanto, a igreja ortodoxa russa continua até hoje com o calendário antigo (juliano) celebrando Natal hoje 13 dias depois da data nossa, que é 06 de janeiro. Outras igrejas ortodoxas (por ex. na Grécia) celebram Natal também no dia 25/12.

Na Igreja Ocidental desmembrou-se o conteúdo da epifania: primeiro no sec. IV, o nascimento em Belém (dia 25/12), e em 1959, o batismo do Senhor (no domingo após Epifania) e o casamento de Caná (no segundo domingo, Ano C). Então ficou como conteúdo do dia 06 a adoração dos magos do Oriente (na tradição são “três reis” magos, cujos nomes são, segundo uma lenda, Caspar, Melquior e Baltasar). A adoração dos magos manifestou Jesus como Deus e Salvador do mundo inteiro e não apenas de Israel. No Brasil, a festa é transferida para o 1º domingo depois de 1º de janeiro.

 

1ª Leitura: Is 60,1-6

A leitura do Antigo Testamento (AT) nos traz uma profecia do Terceiro Isaías (Trito-Isaías: Is 56-66), um discípulo do Segundo Isaías que atualizou as profecias do seu mestre no tempo do pós-exílio cerca de 520 a.C.. Como o Segundo Isaías havia anunciado, Ciro II, rei da Pérsia, conquistou a Babilônia e permitiu a volta dos judeus do exílio para reconstruir sua pátria. Mas as dificuldades enfrentadas na sua terra desanimaram os judeus. Trito-Isaías renova a esperança na graça de Deus e a manifestação da sua glória.

A leitura de hoje nos apresenta um poema com esplêndidas imagens e entusiasmo nacional, o triunfo da luz em Jerusalém e a peregrinação dos povos. O ponto de partida da inspiração pode ser o poema do monte em 2,2-5.

Levanta-te, acende as luzes, (Jerusalém), porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a glória do Senhor (v. 1).

O duplo imperativo inicial se liga com 51,17 e 52,1. O nome da cidade (acrescentado pela nossa liturgia) é subentendido. A glória do Senhor é a nova aurora (compara-se com 40,5).

Umas traduções em grego, aramaico (Targum), latim (velha e Vulgata) leem: “Sê luz, Jerusalém”.

Eis que está a terra envolvida em trevas, e nuvens escuras cobrem os povos; mas sobre ti apareceu o Senhor, e sua glória já se manifesta sobre ti. Os povos caminham à tua luz e os reis ao clarão de tua aurora (vv. 2-3).

A luz banha primeiro a cidade, e está a reflete em torno, a distância de onde se inicia a peregrinação dos povos a Jerusalém e dos reis “à tua luz” (cf. os reis magos em Mt 2,1-12). Em 2,5 a Casa de Jacó (Israel) inicia a marcha “na luz do Senhor”. Compare-se com a “glória” em Ez 10-11 e 43,1-5.

Levanta os olhos ao redor e vê: todos se reuniram e vieram a ti; teus filhos vêm chegando de longe com tuas filhas, carregadas nos braços (v. 4).

Do alto do monte Sião em que está construída a cidade, ela deve contemplar a peregrinação convergente: caravanas do oriente (v. 6), frotas de navios do poente (v. 5). Reconhecerá seus “filhos que vem chegando” (43,6; 49,18.22); é a terceira reunião, a definitiva, mais gloriosa que o êxodo do Egito ou a volta do exílio de Babilônia.

Ao vê-los, ficarás radiante, com o coração vibrando e batendo forte, pois com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poderio de suas nações; será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor (vv. 5-6).

Os tesouros do mar vêm do Oeste, em barcos fenícios ou gregos; as riquezas do Oriente e do Egito vêm com as caravanas dos desertos da Síria. “Madiã” (Midian), “Efa” e “Sabá” são povos da Arábia (cf. 45,14; Gn 25,1-4): Midian: tribos árabes, a leste do golfo de Ácaba (cf. Jz 6,1-6); Efá: clã aparentado aos midianitas (Gn 25,4; 1Cr 1,33), mencionado em um texto assírio, e cuja localização talvez esteja conservada em Gwafa, perto de Tebuk (Arábia Saudita). A gente de Sabá (Sheba) ou sabeus, a distinguir da gente de Sebá (43,3; 45,14), constituiria um grupo de Arábia do sul (cf. 1Rs 10; Sl 72,10-15).

A Bíblia do Peregrino (p. 1824) comenta as palavras traduzidas aqui por “radiante”, “riquezas (tráfico) de além-mar” e “inundação (multidão)”: “Radiante”: verbo homófono de confluir (2,2). “Tráfico”: a palavra significa ruído e multidão; aplica-se ao movimento das ondas marítimas (17,12; 51,15; Sl 46,4). As vagas agora são o tráfico comercial dos que trazem e descarregam tesouros. Uma interpretação mais moderada traduz “marinheiros ou tripulação marinha”. Multidão, “inundação”, aplica-se também ao mar (Dt 33,19; Jó 22,11; 38,34), ou a uma tropa montada (2Rs 9,17; Ez 26,10). No contexto conserva certa ambiguidade imaginativa.    

A caminhada dos reis pagãos “à tua luz” (v. 3), as alusões aos tesouros do Oriente e a perspectiva universalista (vv. 5-6) levaram a liturgia a aplicar este texto ao mistério da Epifania.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 696) comenta:

O estilo inspira-se no do Segundo Isaías, e o cap. 60 retoma muitas fórmulas, sobretudo do cap. 49, mas também de outros poemas do Segundo Isaías. Jerusalém acaba de sair da humilhação, ela reencontrou o seu altar, mas ainda aguarda a restauração do seu Templo, uma população mais numerosa e uma tranquilidade maior. Estamos na mesma situação que a visada, no outono de 520, pelo profeta Ageu (Ag 2,7-9). – O poema desenvolveu-se como um canto, com repetição e orquestração dos temas que se entrecruzam e que podem resumir-se assim: mergulhada na noite, Jerusalém será iluminada (vv. 1-3) de maneira definitiva (vv. 19-20); abandonada, ela reencontrará tanto os seus filhos como uma multidão de estrangeiros, que dotarão de materiais precisos e de oferendas para o seu Templo (vv. 4-18); a conclusão deixa entrever para o povo de Deus conversão e crescimento extraordinário (vv. 21-22). Ver em Ap 21,9-27 numerosos trechos de Is 60.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 952) compara a leitura com o conflito atual em torno de Jerusalém: Hino que exalta Jerusalém, colocando-a no centro religioso e econômico para todos os povos (cf. 33,17-24). Esta cidade futura, descrita em Is 54-55, será o lugar da paz, ou seja, da segurança, felicidade, bem-estar econômico e espiritual. Cidade onde não haverá mais violência nem destruição (cf. Ap 21). Na realidade do período exílico e pós-exílico, é compreensível o sonho de uma Jerusalém restaurada e tornada centro do universo; pregar esta visão hoje, porém, provocaria exclusão e violência.

2ª Leitura: Ef 3,2-3a.5-6

A Carta aos Efésios faz parte das cartas do cativeiro (Ef, Fl, Cl, Fm). Paulo está preso (Ef 3,1; 4,1; 6,20; cf. Fm 9.10.13.27; Cl 4,3.10.18); rodeado dos mesmos companheiros, encarrega Tíquico de idêntica missão (Cl 4,7-8; Ef 6,21-22). Enquanto Fl e Fm foram escritos pelo próprio Paulo, as cartas Ef e Cl apresentam estilo e teologia diferentes e uma situação posterior. Por isso, muitos peritos consideram estas duas cartas Deuteropaulinas, ou seja, escritas por discípulos de Paulo (talvez por Epafras, cf. Cl 1,7; 4,12?) em nome dele por volta de 80 d.C.. Ef retoma várias expressões de Cl e depende dela. O conteúdo de Ef é uma longa meditação sobre o mistério da igreja como plenificação da obra de Deus (Ef 1-3) e uma exortação aos batizados (Ef 4-6).

O nome “Éfeso” não consta no endereço do texto original, talvez fosse uma carta circular às comunidades da região próxima de Éfeso, ou que fossa a mesma carta dirigida à igreja de Laodiceia, citada em Cl 4,16. Éfeso era a terceira maior cidade do Império Romano e cultuava a deusa Ártemis (cf. At 19-20; Ap 2,17).

Na leitura de hoje, o autor da carta volta falar do “mistério” da salvação (cf. 1,9; Rm 16,25; Cl 2,2s). Aqui, mistério não tem o sentido esotérico de coisas incompreensíveis. Significa o desígnio (projeto) de Deus que visa a salvar toda humanidade, através de Jesus Cristo, e se manifesta na igreja pelo ministério de Paulo. Pela revelação desse mistério, os gentios (os povos não-judeus, os pagãos) são chamados a participar do povo de Deus. O Cristo (Messias) não é monopólio de Israel, mas veio para todas as nações (cf. Lc 2,31s; Mt 28,19). Na versão latina, a palavra grega mistérion é traduzido por sacramentum (revela-se este mistério na Igreja Católica, quer dizer, na Igreja para todas as nações, cf. LG 1).

(Irmãos,) Se ao menos soubésseis da graça que Deus me concedeu para realizar o seu plano a vosso respeito, como, por revelação, tive conhecimento do mistério (vv. 2-3a).

“Graça” é um termo frequente nas cartas de Paulo. Aqui não significa o perdão para justificar os pecadores (cf. Rm 5,15-21 etc.), mas a graça do apostolado junto aos gentios (cf. v. 7s; Rm 1,5; 15,15s; 1Tm 2,7; Gl 2,9; Fl 1,7; At 9,15). Lit. “da economia da graça de Deus que me foi dada em vossa intenção”, expressão sobrecarregada, que combina uma fórmula muito paulina: “a graça (de Deus) que me foi dada” (Rm 12,3; 15,15; 1Cor 3,10; Gl 2,9) com Cl 1,25: “a economia de Deus me foi dada”. Esta economia é a maneira com que Deus abre caminho à execução do seu plano salvador e situa o lugar de Paulo neste projeto. Sobre o ministério de Paulo em Éfeso, cf. At 19.

Paulo teve revelações extraordinárias (cf. 2Cor 12,1.7). Deve-se pensar aqui sobretudo na “revelação” do caminho de Damasco (cf. Gl 1,16; At 9,15; 22,21; 26,16-18).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2269) explica os dois termos “revelação” e “mistério”:

  1. a) O termo “revelação” tem três sentidos principais no NT: a) a vinda de Jesus na glória (cf. 1Cor 1,7; 2Ts 1,7); b) a revelação apostólica, relativa ao Evangelho e à vocação daquele que é seu mensageiro (Gl 1,12.16,25); c) a revelação profética, relativa a este ou àquele aspecto da vontade de Deus e da obediência cristã (ex. 1Cor 14,6; Gl 2,2). Trata-se aqui do segundo sentido, a revelação apostólica.
  2. b) Tema fundamental de Ef e Cl, o “mistério” refere-se ao desígnio eterno de Deus, outrora escondido aos homens e agora revelado (Ef 1,9-10; 3,3-10; Cl 1,26-27; cf. já Rm 16,25-26; 1Cor 2,7-9). Essa ideia vem menos do helenismo de que da apocalíptica judaica (cf. Dn 2,21-23.28-30.47; o livro de Henoc e os textos de Qumran). Para a epístola, o mistério se realizou em Jesus Cristo e descobre todas as suas implicações na igreja, graças ao mistério do apóstolo: chamamento dos pagãos à salvação, reconciliação do apóstolo: chamamento dos pagãos à salvação, reconciliação dos judeus e das nações reunidos em um mesmo corpo, união conjugal de Cristo e sua Igreja, submissão do universo inteiro a Cristo. O mistério é objetivo específico do evangelho der Paulo, ligado aqui à sua vocação única entre os apóstolos. Ef 3,1-13 volta às ideias de Ef 2,11-22, referindo-as à pessoa de Paulo.

Nossa liturgia omite os vv. 3b-4 que se referem a leitura da carta de Cl.

Este mistério, Deus não o fez conhecer aos homens das gerações passadas mas acaba de o revelar agora, pelo Espírito, aos seus santos apóstolos e profetas: (v. 5)

“Seus santos apóstolos e profetas (cf. 2,20 onde os “santos” podem ser os membros do povo de Deus batizados (cf. 1,1; At 9,13 etc.). A perspectiva celeste desta carta (cf. Dn 7,25.27) e suas afinidades com o judaísmo tardio (por ex. Qumran) podem aludir também aos anjos, à comunidade do céu (cf. Cl 1,12; Hb 12,22-23). Pensa-se ainda nos judeu-cristãos representando o resto santo de Israel, ao qual os pagão-cristãos são associados (cf. Rm 15,25; 1Cor 16,1; 2Cor 8,4; 9,12). Da Igreja em Jerusalém, o título passa a todos os cristãos (cf. Rm 1,7; 12,13).

Ef interpreta neste sentido preciso o texto paralelo Cl 1,26s, no qual a revelação era concedida a todos os santos. Os profetas aqui mencionados são do NT (cf. 2,20), inspirados da nova economia, ativos na Igreja (p. ex. At 11,27; 13,1; 15,32; 21,10; 1Cor 12,28). Os do AT tiveram uma percepção ainda obscura e imperfeita do ministério de Cristo (cf. 1Pd 1,10-12; Mt 13,17).

Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho (v. 6).

Este é o conteúdo deste mistério: Os povos pagãos que se convertem a Cristo são coerdeiros com os judeu-cristãos (cf. 2,19), são membros do mesmo corpo, da Igreja (cf. 1,22s; 1Cor 12,12s) e associados às mesmas “alianças da promessa” (2,12s). O “Evangelho” é como a promulgação que torna efetivo o cumprimento para quem queira aceitá-lo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2808) comenta:

Quando Paulo (o eu da carta) se declara apóstolo dos pagãos, não pensa só numa divisão territorial, mas implica uma descoberta: que o Messias esperado pelos judeus veio também para os pagãos, não é monopólio de Israel. Esse é um grande segredo que Deus manteve guardado por muitos séculos. Abraão se afasta de sua família, de seu país, Ismael fica de fora, como também Esaú. Se alguns textos do AT se abriam aos pagãos, algumas cláusulas do texto ou os leitores lhes punham limites, reduzindo-os aos pagãos submetidos a Israel ou convertidos plenamente.

Citemos alguns textos: “as nações, os confins da terra”, submetidos (Sl 2); Jerusalém mãe de povos “nascidos aí” (Sl 87); culto ao Senhor (Sl 102,16.23); Egito e Assíria (Is 56; 19,19-25) etc. Mas os pagãos não podiam partilhar a herança com Israel (cf. Gn 21,10; Jz 11,2) nem formar um corpo com ele. Pois bem, a riqueza do Messias transborda e agora é dividida entre todos. Essa é a grande revelação que estimulava Paulo em seu ministério e da qual ele se orgulha.

 

Evangelho: Mt 2,1-12

Depois de ter apresentado no cap. 1 a pessoa de Jesus, filho (descendente) de Davi, de Abraão e filho de Deus, Mt, no cap. 2, define a sua missão como salvação oferecida aos pagãos, cujos sábios (magos) ele atrai para a sua luz (vv. 1-12), e como sofrimento no seio do seu próprio povo, cujas experiências dolorosas revive: o primeiro exílio no Egito (vv. 13-15), o segundo cativeiro (vv. 16-18, citando Jeremias), a volta humilde do pequeno “Resto”, naçur (vv. 19-23).

Essas narrativas ensinam, em forma de haggadá, ou seja, por meio de acontecimentos, aquilo que Lc 2,30-34 ensina pelas palavras proféticas de Simeão (cf. Lc 2,29-35). Uma haggadá é uma interpretação judaica que se serve de lendas, parábolas etc. e não obriga como a lei.

A adoração dos magos era o cumprimento dos oráculos messiânicos a respeito da homenagem que as nações prestariam ao Deus de Israel (Nm 24,17; Is 49,23; 60,5s; Sl 72,10-15). A tradição leu neste episódio a epifania ou manifestação do Salvador aos pagãos, ligando com o anúncio de Gn 49,10: “Não se afastará de Judá o cetro, nem o bastão de comando de entre seus joelhos, até que lhe tragam tributo e os povos (pagãos) lhe prestem homenagem”.

O evangelho de hoje levanta umas questões que serão tratadas no final deste comentário: Jesus nasceu em que ano? Astrologia é um caminho para Deus? Como entender as diferenças entre os evangelistas Mt e Lc a respeito da volta a Nazaré ou da fuga ao Egito.

Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: “Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (vv. 1-2).

O episódio é centrado no tema da realeza, Herodes, chamado o Grande (37-4 a.C.), é rei da Judéia, um rei estrangeiro, idumeu (um povo vizinho, não judeu), nomeado e protegido por César Augusto e pelo senado romano; é visto como ilegítimo por parte da população (cf. Dt 17,15).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1857) comenta: Herodes Magno nasceu por volta de 73 a.C. Filho de Antípater, mordomo de João Hircano II (63-40), em 47 foi nomeado estratego da Galiléia, depois da Celessíria, em 41, tetrarca da Judéia, e em 40, rei da Judéia, pelo senado romano. Conquistou Jerusalém em 37, exterminou os hasmoneus e recebeu de Augusto o Traconítide, a Batanéia e a Auranítide. Hábil político, grande construtor de cidades helenísticas, apoiou-se no partido dos fariseus; morreu em 4 a.C., sendo que o nascimento de Jesus pode ser fixado dois anos antes. Ao pôr o rei Herodes em contado com Jesus, Mt prenuncia o conflito que vai opor às autoridades oficiais o verdadeiro rei e salvador do seu povo (1,21; 2,2). Outro tema próprio de Mateus: aquele que as autoridades do povo rejeitaram é adorado pelas nações pagãs, representadas pelos magos.

“Alguns magos”, o texto não fala nem de reis nem de três (sobre o “três reis” e seus nomes, cf. comentário no v. 11! A palavra grega magos é vaga e assumia significados diversos: sacerdotes persas, mágicos, propagandistas religiosos, charlatães… O grego bíblico só o emprega em Dn 2,2.10. Aqui, poderia designar astrólogos babilônios, talvez postos em contato com o messianismo judaico; nada indica que sejam reis.

“Do Oriente” é a região por excelência dos sábios astrólogos.No oriente”, outra tradução possível: “ao surgir” (mesma expressão em v. 9). O grego anatolê significa o “levante” geográfico = oriente, ou o levante ou surgir de um astro. Aqui vale o segundo significado. Os magos dizem “sua estrela”, com um possessivo que a dá por conhecido. A respeito desta estrela cf. v. 9.

Os magos buscam o “rei dos judeus”. Em Mt, só os pagãos empregam este termo (cf. 27,11.29.37); os judeus utilizam “rei de Israel“ (27,42).

A Bíblia do Peregrino (p. 2320) comenta: Uns “magos” orientais (astronomia e astrologia não eram separadas então; veja-se Dn 2,2.10 em grego), que o narrador supõe conhecedores de tradições judaicas (talvez o oráculo de Balaão, Nm 24,17 sobre a estrela de Jacó que avança), acorrem a render homenagem ao provável herdeiro, tratando-o com título de “Rei dos judeus” (será o título da cruz, 27,11.29.37).

Ao saber disso, o rei Herodes ficou perturbado assim como toda a cidade de Jerusalém (v. 3).

Jesus nasceu em Belém, na cidade de Davi (Lc 2,4), como descendente de Davi, potencialmente sucessor legítimo (cf. Am 9,11; Ez 37,24; Jr 30,9; 33,15). Para Herodes é um rival perigoso, a ser eliminado. Concordam com Herodes cortesãos e vizinhos complacentes da capital; “toda Jerusalém” é enfático e intencional, antecipando uma oposição (cf. 21,10).

Reunindo todos os sumos sacerdotes e os mestres da Lei, perguntava-lhes onde o Messias deveria nascer (v. 4).

Lc mostra Herodes conhecedor da esperança messiânica dos judeus. Aqui temos os doutores interpretando a profecia sobre o Messias anunciado e esperado, os “sumos sacerdotes” e costumavam ser saduceus, e os “mestres da Lei”, fariseus.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1839) comenta: Também chamados “doutores da Lei” (Lc 5,17; At 5,34), ou ainda “legistas” (Lc 7,30; 10,25; etc.), os escribas tinham a função de intérpretes das Escrituras, particularmente da Lei mosaica, para tirar daí as regras de comportamento da vida judaica (cf. Esd 7,6.11; Eclo 39,2…). Esse papel lhes assegurava prestígio e influência no seio do povo. Eram recrutados sobretudo, embora não exclusivamente, dentre os fariseus (3,7…). Juntamente com os chefes, constituíam o Grande Sinédrio.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1857s) comenta: Herodes convocou os responsáveis oficiais pela vida religiosa do povo; os “sumos sacerdotes” são os membros das grandes famílias sacerdotais de Jerusalém; os “escribas” são os intérpretes oficiais da lei. Esses dois grupos encontram-se reunidos contra Jesus em 21,15; Mt associa com mais frequência os sumos sacerdotes aos anciãos do povo (26,3.47; 27,1 etc.). O sentido em ambos os casos é o mesmo: os verdadeiros responsáveis pelo drama são os chefes do povo.

Eles responderam: “Em Belém, na Judéia, pois assim foi escrito pelo profeta: E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (vv. 5-6).

Não é a estrela que leva ao verdadeiro messias, mas a palavra de Deus. Põe na boca dos conselheiros de Herodes uma profecia sobre Belém, cuja importância é assim ressaltada por Mt.

Esta citação de Mq 5,1 está combinada com 2Sm 5,2 de modo muito original; ela não corresponde exatamente ao texto do AT, nem hebraico nem grego. A profecia de Mq 5,1 opõe a humildade aldeia de Belém às prerrogativas da capital Jerusalém. A mesma oposição rege o presente relato. Mas para Mateus, Belém já não é humilde (“de modo algum és a menor”, mas gloriosa por causa de seus dois filhos (Davi, Jesus). Cf. 2Sm 5,2 para o título de “pastor”. Davi era pastor de ovelhas antes de se tornar guerreiro e rei; cf. 1Sm 16. Reis e chefes do povo eram comparados com pastores que devem cuidar do seu povo, cf. Ez 34).

Então Herodes chamou em segredo os magos e procurou saber deles cuidadosamente quando a estrela tinha aparecido. Depois os enviou a Belém, dizendo: “Ide e procurai obter informações exatas sobre o menino. E, quando o encontrardes, avisai-me, para que também eu vá adorá-lo” (vv. 7-8).

“Prestar-lhe homenagem”: reconhecendo sua dignidade superior. Mas na boca de Herodes é expressão de ironia perversa, a fim de despistar os visitantes. Na verdade, o falso rei pretende matar seu rival recém-nascido (cf. vv. 13-18, evangelho de 28 de dezembro). Herodes era capaz disso, mandou matar até uma das suas mulheres e alguns dos próprios filhos por medo de uma conspiração.

Ivonil Parraz na revista Vida Pastoral (jan./fev. 2017) comenta: Nessa narrativa de Mateus encontra-se em resumo tudo o que Jesus vai enfrentar ao longo de sua vida: fúria e perseguição do poder político; indiferença e rejeição do poder religioso. Quem acolherá Jesus? Todos aqueles que buscam sinceramente Deus! Pois se o buscam é porque já o possuem!

Os magos seguem a estrela. Em Jerusalém, ela deixa de brilhar. Talvez porque no centro do poder o que predomina são as trevas: perseguição, morte, corrupção, toda espécie de falcatruas. Tudo vale para não perder o poder! 

Depois que ouviram o rei, eles partiram. E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até parar sobre o lugar onde estava o menino. Ao verem de novo a estrela, os magos sentiram uma alegria muito grande (vv. 9-10).

A astúcia maligna de Herodes é vencida pelo milagre da estrela e pela fidelidade dos visitantes. Evidentemente, o evangelista pensa num astro miraculoso, para o qual é inútil buscar uma explicação natural (em 1630, Johannes Kepler pensava numa conjunção muito brilhante de Júpiter e Saturno no signo de peixes no ano 7 a.C.; outros pensam no surgimento de uma Supernova; um cometa, porém, era um mal presságio).

Este astro é um símbolo messiânico. Ele muda seu percurso: do leste ao oeste, agora do norte ao sul (Belém fica ao sul de Jerusalém). Não corresponde aos astros que conforme o modo de pensar antigo, não raro, determinavam o destino dos heróis. De preferência, é o astro que, da parte de Deus, designa Jesus para a adoração dos magos como rei messiânico (cf. também Nm 24,17).

Mt escreveu cerca de 10 anos depois da destruição do templo de Jerusalém na Guerra Judaica pelos romanos em 70. Em 131-135 d.C. aconteceu uma segunda revolta judaica contra Roma. Simeão Bar Kosba apoderou-se de Jerusalém e foi reconhecido por Rabi Akiba como messias, chamado Bar Kókba (“filho da estrela” do oráculo de Nm 24,17). Mas o romanos destruíram Jerusalém definitivamente e Bar Kokba foi morto. No centro da bandeira atual de Israel, está a estrela de Davi (símbolo do rei messiânico).

A menção enfática da “alegria muito grande” não é uma simples nota psicológica, mas retoma uma longa tradição do AT.

Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram (v. 11a).

Entram na “casa” (de José), não numa gruta usada como dormitório. Em Mt, a família sagrada não mora ainda em Nazaré, mas em Belém. Só depois da estadia no Egito, escolhe Nazaré (vv. 22s).

“Viram o menino com Maria, sua mãe”. O texto de hoje não menciona José. Na tradição bíblica, a mãe do rei ou do herdeiro, tem papel preponderante (cf. Sl 45,10). “A mãe do menino” pode aludir a Mq 5,2: “até que a mãe dê à luz”. A mãe com o menino será uma imagem favorita da iconografia cristã.

Segundo uma tradição judaica, a “adoração” (prostração) só se deve prestar a Deus (Est 3,1-6; cf. Gn 17,3; 18,2 etc.). Mt quer dizer, que os magos (povos estrangeiros) reconhecem Jesus não apenas com “rei” (v. 2), mas como manifestação (epifania) de Deus; cf. Emanuel – Deus conosco em 1,23).

Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra (v. 11b).

Os magos trazem o tributo dos pagãos ao rei menino (Is 60,6; Zc 8,20-22; Sl 72,10-15; 102,13). Omitem-se as descrições, já conhecidas em textos do AT. A expectativa messiânica judaica contava, para o rei esperado, com as homenagens e oferendas de todas as nações (cf. Is 60,6, leitura de hoje). Aqui se oferecem três presentes caros: riqueza (ouro) e perfumes tradicionais (incenso e mirra) da Arábia (Ct 3,6; Jr 6,20; Ez 27,22).

Na exegese antiga, as três oferendas simbolizam a realeza (ouro), a divindade (orações com incenso, cf. Sl 141,2; Ap 8,4) e a paixão (mirra era usada para cura e também para sepultura, cf. Jo 19,39; ou consagração, cf. Ex 30,22-30). Uma antífona na liturgia da horas diz: “ouro para o grande rei, incenso para o verdadeiro Deus e mirra para a sepultura (o homem mortal)”.

A preciosidade dos presentes e a alusão a Is 60,3 e Sl 72,10 deram origem à tradição de chamar os magos de “reis” (Tertuliano no séc. III) e pelo número das oferendas de “três” magos (Origenes no séc. II). Na tradição latina, desde o séc. VI (Excerpta Latina Barbari, p. 51B) são chamados com os nomes “Gaspar, Melchior (ou Belchior) e Baltasar” (na Síria, na Armênia e na Etiópia com nomes diferentes).

Na arte, foram retratadas inicialmente com gorros de sábios persas, depois como reis de três idades (jovem, adulto, idoso) e provindos de três continentes (Ásia, Europa e África, desde o séc. 12, um negro). Na literatura dos séc. 19 e 20 (Henry van Dyke 1895; Edzard Schaper 1961) surgiu a lenda de um quarto rei ou sábio que se atrasou, não chegou em tempo ao nascimento de Jesus em Belém, mas à sua morte em Gólgota (o que corresponde a ideia de Mt 2 de prefigurar a rejeição e perseguição de Jesus pelos líderes do seu povo).

Durante a Idade Média começa a devoção dos Reis Magos. Pela lenda, Santa Helena depositou as (supostas) relíquias deles em Constantinopla (Istambul), depois foram transladadas até Milão. Em 1164, o imperador Frederico Barbarossa as deu à catedral de Colônia na Alemanha (onde ainda se encontram) com a intenção que a presença dos “primeiros reis cristãos” reforcem sua independência diante do papa.

Em várias partes do mundo, há festas e celebrações em honra aos Magos. Com o nome de Festa de Santos Reis ou há importantes manifestações culturais e folclóricas no Brasil (reisados).

Avisados em sonho para não voltarem a Herodes, retornaram para a sua terra, seguindo outro caminho (v. 12).

Em Mt, a história é regida pelos sonhos de José (1,20; 2,13.19,22) e dos magos (cf. 27,19: a mulher de Pilatos) pelos quais a família sagrada consegue escapar da matança das crianças em Belém que se segue. Os magos não voltam mais a Herodes que representa poder, falsidade e morte, optaram por “outro caminho”, o rei pobre Jesus que representa “a verdade e a vida” (Jo 14,6). No sermão da montanha, Jesus convida a escolher entre “o caminho largo que leva a perdição” e “o caminho apertado que leva à Vida” (7,13s).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1187) comenta: O nascimento de Jesus produz as mais diversas reações. Quem diz conhecer as Escrituras e confia apenas no próprio saber fica incomodado e sem ação: é incapaz de se alegrar com o cumprimento das promessas proféticas. O rei de plantão, apegado a seu próprio poder, e aliado das forças políticas mais importantes do momento, se alarma, achando que surgiu um rival. Já outros, estrangeiros, sensíveis às indicações e à novidade, buscam o Salvador. Como se vê, um cenário tenso, que vai marcar toda a atividade de Jesus, até à cruz.

Ainda restam três questões levantadas por este evangelho:

  1. Jesus nasceu em que ano?

Se Jesus nasceu sob o reinado de Herodes (Mt 2,1; Lc 1,5), deve ter nascido por volta do ano 5 ou 4 a.C., porque Herodes morreu em 4 a.C.; então Jesus nasceu “antes de Cristo”, um absurdo?

Houve um erro do monge Dionísio Exíguo, encarregado de fazer o cálculo no séc. VI, quando não se queria mais contar os anos a partir da fundação de Roma (753 a.C.). Ele tomou ao pé da letra os 30 anos em Lc 3,23 (“cerca de trinta anos”). Portanto, a “era cristã” começa alguns anos depois do real nascimento de Cristo (cf. Lc 2,2; 3,1), mas não há como corrigir (sem pensar em todo esforço e gastos que seriam necessários para mudar os livros de história e até as datas pessoais), porque não sabemos o ano exato em que Jesus nasceu.

  1. Astrologia é um caminho para Deus?

“Uns magos do Oriente” representam a sabedoria dos povos pagão na época. Astronomia e astrologia não eram separadas então. Observar o movimento das estrelas e planetas era muito importante para fazer o calendário e se preparar para a época da seca e da chuva, das cheias dos rios etc. Hoje os “magos” seriam os cientistas e técnicos; magia era a maneira pré-científica de entender e influenciar as leis da natureza (imaginada povoada de espíritos e deuses). Seguindo apenas à estrela, os magos chegaram perto, mas ao rei falso (Herodes). Só a Palavra de Deus leva ao lugar certo, ao messias, à salvação. Até a estrela muda seu percurso, obedecendo à palavra de Deus (v. 9). Na Bíblia, o culto dos astros (cf. 2Rs 17,16; 21,3.5; 2Cr 33,3; Is 47,13; Dn 2,2; cf. Jz 5,20; Jó 38,7) é reprovado (Dt 4,19; Sf 1,5; Sb 13,1-9), são apenas criaturas, “luzeiros no firmamento” para fazer o calendário (Gn 1,14). Neste contexto, faz sentido ler o anúncio das “festas móveis durante o ano” previsto na liturgia da epifania.

Hoje a astrologia não passa de superstição e fraude. A astronomia mostra claramente que através da precessão (mudança de eixo) do planeta terra, os” signos” do zodíaco (as constelações de estrelas por onde passa o sol durante o ano) mudaram ao passar de dois mil anos, quer dizer: em 06 de janeiro, o sol não está no signo do capricórnio (como diz o horóscopo da astrologia), mas no do sagitário ainda, e assim adiante (cf. no site calsky.com, ir para deep sky, clicar a data e hora, escolher o ângulo Zenith).

Mas as estrelas influenciam a vida na terra? Certamente o sol com sua massa, que faz a terra girar em torno dele, e sua energia (luz, calor) que gera vida. Também a lua, por sua massa gravitacional, influencia as marés da terra, ou seja, as alterações do nível das águas do mar. Mas na hora do nascimento, a massa do obstetra p. ex. influencia muito mais do que lua, estrelas e planetas. Já St.º Agostinho recomendou conferir a vida diferente de cada um de gêmeos para refutar a astrologia. O homem celebrado o mais rico do Brasil, Eike Batista, confiou na astrologia e deu errado.

  1. Como entender as diferenças entre os evangelistas Mt e Lc a respeito da volta a Nazaré ou da fuga ao Egito?

Em Lc não há notícias nem sobre a visita dos magos nem sobre uma fuga ou uma estadia no Egito relatadas em Mt 2. Mt e Lc escrevem na mesma época (cerca de 80 d.C.), mas em lugares diferentes um do outro sem conhecer-se. Ambos usam duas fontes em comum: o evangelho de Mc (escrito em 70 d.C.) e uma coleção catequética que continha palavras de Jesus (bem-aventuranças, parábolas etc.; o texto desta fonte, chamada Q (do alemão Quelle = fonte), se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir de textos comuns em Mt e Lc). Fora destas duas fontes estão as narrativas da infância e das aparições do ressuscitado, nessas Mt e Lc concordam apenas em poucos pontos, porém essenciais: em Mt 1-2 e em Lc 1-2, Jesus foi concebido do Espírito Santo, nasceu da virgem Maria em Belém no tempo de Herodes e foi criado em Nazaré; José é pai adotivo e descendente de Davi. Nos detalhes, porém, há muitas diferenças entre Mt e Lc.

Em Lc, Maria e José já moravam em Nazaré desde o início e só se deslocaram a Belém por causa do recenseamento. Depois do nascimento do menino em Belém (onde não encontraram um lugar) e a apresentação no Templo de Jerusalém 40 dias depois, voltam para casa em Nazaré (Lc 2,39). Em Mt, a história é diferente: Desde o início, Maria e José já moravam em Belém numa “casa” onde Jesus nasceu (Mt 2,11), depois fogem para Egito (Mt 2,13s) para escapar da perseguição de Herodes e voltam para Israel só depois da morte de Herodes; e por causa do filho mais cruel de Herodes, Arquelau, reinar em Jerusalém, a Sagrada Família não vai mais para sua casa em Belém (6 km de Jerusalém), mas migra para a Nazaré, povoado distante na Galileia (Mt 2,19-23).

Não é fácil conciliar os dois relatos. Ou Lc omitiu a fuga ao Egito (por qual motivo? Ou nem sabia dela?), ou Mt inventou-a. Lc parece ter informações de Maria (cf. Lc 2,29.51) ou da família de Jesus. Porque ele não nos contaria nada deste encontro com os magos do Oriente e a estadia no Egito? Fez isso só porque, para ele, a pregação aos estrangeiros começa a partir de Pentecostes (cf. At 1,8; 2,1-11; cf. a omissão de Mc 6,45-8,26 no evangelho de Lc)?

A maioria dos exegetas modernos considera o relato da visita dos magos e da fuga ao Egito uma ideia teológica de Mt. “Ao contrário da anunciação, a adoração dos magos não toca em nenhum aspecto essencial da fé. Poderia ser uma criação de Mt, inspirada por uma ideia teológica; em tal caso, nada cairia por terra” (Daniélou, citado por Bento XVI, Infância de Jesus, p. 99).

Assim, Mt poderia seguido uma tradição judaica de narrativas (hagadá, midrash) que inventavam ou ampliavam relatos sobre Moisés e outros personagens. O evangelista não quer dar um testemunho falso da história, mas revelar seu sentido espiritual: através desta introdução em forma de narração, Mt ajuda e motiva seus leitores judeu-cristãos a lerem e entenderem que Jesus não é só o Messias de Israel (cf. genealogia em Mt 1,1-17), mas também um novo Moisés. Sua narrativa tem um paralelo anterior na infância de Moisés, descrita pelas tradições rabínicas: segundo estas, quando o nascimento do menino foi anunciado, ou por meio de visões, ou por intermédio dos mágicos, o Faraó mandou chacinar as crianças recém-nascidas. Pode-se comparar com a sorte de Jesus com a de Moisés: salvo da morte dos meninos recém-nascidos (Ex 2,1-9), perseguido para ser morto (Ex 2,15), em marcha com a família (Ex 4,20), entrando e saindo do Egito. Nenhuma fonte fora da Bíblia, porém, comprova o massacre de crianças no Egito ou em Belém.

O evangelista Lc, porém, segue sua pesquisa histórica para convencer seus leitores greco-romanos. No seu prólogo, fala de “testemunhas oculares” e “acurada investigação de tudo desde o princípio” (1,1-4). Portanto, a narração de Lc que fala da volta da família sagrada a Nazaré, em vez de fugir ao Egito, é bem mais provável.

Mas a narração de Mt tem uma verdade profunda, não histórica, mas teológica: Mesmo que seu próprio povo (Jerusalém) o rejeite, Jesus é o messias legítimo (estrela, Belém) e salvador de todos, também dos pagãos que se aproximam para adorá-lo (cumprindo as antigas profecias e acontecendo na Igreja “católica” já na época de Mt). Em Mt, Jesus é o novo Moisés: o menino perseguido e salvo como Moisés no Egito tornar-se-á o futuro libertador, anunciará a nova lei no sermão da montanha (Mt 5-7; cf. Sinai) e se despedirá também num monte (Mt 28,16-28; cf. Dt 34). Neste sentido, Mt 1-2 é uma introdução adequada para seus leitores judeu-cristãos.

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