07 de junho de 2017 – Quarta-feira, 9ª semana

Leitura: Tb 3,1-11a.16-17a

As orações ocupam um lugar especial no livro de Tb. Hoje ouvimos as duas súplicas paralelas de Tobit (vv. 2-6) e de Sara (vv. 11-15; repetida por Tobias em 8,5-7) que iniciam a ação, provocando a intervenção do arcanjo Rafael (v. 17). A súplica de 3,2-6 reflete o desespero de quem chega a esta conclusão: “é melhor morrer que viver” (v. 6). Na pessoa de Tobit, reflete-se a diáspora dos judeus, a história de um povo que perdeu os bens, a terra, a liberdade e, por fim, se vê ameaçado na reputação, ao ser desacreditado até pelos mais próximos. Só lhe resta suplicar a Deus.

Tomado de grande tristeza, pus-me a suspirar e a chorar. E, depois, comecei a rezar, entre gemidos: ”Senhor, tu és justo e justas são todas as tuas obras. Todos os teus caminhos são misericórdia e verdade e és tu quem julga o mundo. Agora, Senhor, lembra-te de mim, olha para mim, e não me castigues por causa de meus pecados, de minhas transgressões ou de meus pais, que pecaram diante de ti. Porque não obedecemos aos teus preceitos, entregaste-nos à pilhagem, ao cativeiro e à morte, e fizeste de nós assunto de provérbios, alvo de zombaria e de injúria em todas as nações, entre as quais nos dispersaste. Agora, porém, vejo que são verdadeiros os teus numerosos julgamentos, quando me tratas segundo os meus pecados e os pecados de meus pais, pois não cumprimos teus mandamentos nem caminhamos na verdade diante de ti (vv. 1-5).

Para a nossa surpresa, as primeiras palavras da oração não retratam a sua situação de dor, mas contemplam a grandeza e justiça de Deus. É uma adoração e uma declaração de confiança ilimitada no Senhor. “Senhor, tu és justo e justas são todas as tuas obras. Todos os teus caminhos são misericórdia e verdade” (v. 2; cf. Sl 7,10.12; 9,5; 11,7; 25,10; 94,2; 119,137; Gn 18,25). “Lembra-te de mim” (v. 3; Sl 25,6-7; 106,4). Depois, quando se debruça sobre a própria situação pessoal, confessa humildemente o próprio pecado: “Não me entregues por causa de meus pecados, de minhas transgressões ou de meus pais…” (vv. 3-4; cf. Sl 79,8). Mais do que pensar nos pecados dos outros e mais do que suspeitar da bondade de Deus, bate no peito, reconhecendo o próprio pecado, a raiz mais profunda dos problemas que são “pilhagem, … cativeiro … assunto de provérbios, … alvo de zombaria e de injúria em todas as nações, entre as quais nos dispersaste” (v. 4; cf. Esd 9,7; Sl 44,14-15; Jr 24,9; 29,18; 42,18; Ez 22,4).

Pelo conjunto e pelos vários detalhes esta oração se enquadra no contexto genérico das orações penitenciais do pós-exílio (Dn gr. 3,26-45; 9,4-19; Esd 0,6-15; Ne 9,5-37; Br 1,15-3,8). Parece estranho que Tobit pronuncie uma confissão penitencial depois de ter enumerado suas virtudes (cap. 1). E não basta para justificá-lo o exemplo de Esdras e Neemias, porque estes falam em nome da comunidade, ao passo que Tobit fala em nome próprio. A explicação provável é que Tobit se solidariza com os seus, aceita a situação global como consequências de culpa coletiva (cf. 2,6). Daí a mistura de singular e plural no texto. A mistura é observada já no Sl 106,4-6 e em Esd 9,6 e Dn 9,4-5.

Trata-me, pois, como te aprouver. Ordena que seja retomado de mim o meu espírito, para que eu desapareça da face da terra e me transforme em terra. Para mim é melhor morrer do que viver, pois tenho ouvido injúrias caluniosas e sinto em mim profunda tristeza. Senhor, ordena que eu seja libertado desta angústia. Deixa-me ir para a morada eterna e não afastes, Senhor, de mim a tua face. Para mim é preferível morrer a ver tão grande angústia em minha vida, ouvindo ainda tais injúrias” (v. 6).

A oração penitencial costuma incluir os seguintes elementos: confessa que Deus é inocente em suas relações com o povo; confessa o pecado; aceita a desgraça como castigo merecido; pede perdão e libertação da desgraça. Tobit respeita o esquema e muda a última peça: a libertação que pede é a morte (v. 6). Assim expressa sua situação desesperadora: como Moisés (Nm 11,15), Elias (1Rs 19,4), Jonas (Jn 4,3.8):  “Ordena que seja retomado de mim o meu espírito, para que eu desapareça da face da terra, e me transforme em terra” (v. 6; cf. Sl 104,29). ”Senhor, ordena, que eu seja libertado desta angústia. Deixa-me ir para a morada eterna” (a morada dos mortos, cf. Sl 49,15.20; Ecl 12,5). “É preferível morrer” (cf. Jô 7,15; Eclo 30,17).

Aqui termina o relato na primeira pessoa (desde 1,3) e passa para um narrador anônimo.

Naquele mesmo dia, Sara, filha de Ragüel, que morava em Ecbátana, na Média, teve também que ouvir injúrias de uma das escravas de seu pai. Ela fora dada em casamento a sete homens, mas o perverso demônio Asmodeu havia-os matado, antes de estarem com ela, como esposa (vv. 7-8a).

À miséria de Tobit, o autor junta a dor e uma súplica paralela de uma mulher, Sara, 300 km de distância em Ecbátana, na Média. “Sara … teve também que ouvir injúrias de uma escrava do seu pai” (v. 7). Sara tinha-se casado com sete homens, porém, em todas às vezes “o perverso demônio Asmodeu havia os matado antes de estarem com ela como esposa” (v. 8). O nome de Asmodeu não consta em outra parte da Bíblia e significa “aquele que faz perecer” (cf. o anjo destruidor de 2Sm 24,16; Sb 18,25; At 9,11). Desta sorte seria a antítese do anjo Rafael cujo nome significa “Deus cura” (v. 17). No mundo antigo, doenças e falecimentos estranhos eram não raro imputados a demônios ou espíritos malignos (cf. Mt 9,32; Mc 3,22par; Lc 11,14; 13,11.16).

A escrava disse-lhe: “És tu que sufocas teus maridos! Já foste dada a sete homens e de nenhum até agora tiveste proveito. Por que nos espancas por terem morrido os teus maridos? Vai-te embora com eles e jamais vejamos filho ou filha nascidos de ti!” (vv. 8b-9).

O insulto da criada é gravíssimo, seria dizer-lhe que está enfeitiçada ou endemoninhada. Ao insulto acrescenta uma maldição terrível: que morra sem filhos (cf. Gn 30,1s; Sm 1,7s).

Naquele dia, Sara ficou com a alma cheia de tristeza e pôs-se a chorar. E subiu ao aposento de seu pai, no andar superior, com a intenção de se enforcar. Mas, pensando melhor, disse consigo mesma: “Não quero que venham injuriar a meu pai e dizer-lhe: ‘Tinhas uma filha muito querida e ela enforcou-se por causa de suas desgraças’. Assim, eu faria baixar à sepultura a velhice amargurada de meu pai. É melhor para mim, em vez de me enforcar, pedir ao Senhor que me faça morrer, para não mais ouvir injúrias em minha vida” (v. 8b-10)

A situação de Sara é mais grave que a de Tobit e leva-a a pensar em suicídio, “com a intenção de se enforcar, mas pensando melhor” rejeita a ideia: “Não quero que venham injuriar a meu pai … Assim, eu faria baixar à sepultura a velhice amargurada de meu pai. É melhor para mim, em vez de me enforcar, pedir ao Senhor que me faça morrer” (v. 10). A ideia do suicídio é estranha ao judaísmo. Os únicos casos de suicídio mencionados na Bíblia dizem respeito a heróis ameaçados de morte cruel ou desonrosa por seus inimigos (Jz 9,54; 16,30; 1Sm 31,4-5; 2Mc 14,41-46) ou de traidores (2Sm 17,23; 1Rs 16,18; Mt 27,5).

No mesmo instante, estendendo as mãos em direção à janela, fez esta oração: “Tu és bendito, Deus de misericórdia, e é bendito eternamente o teu nome!” (v. 11a).

“Estendendo as mãos em direção à janela, fez esta oração” (v. 11; cf. Dn 6,11: “As janelas do seu aposento superior estavam orientadas para Jerusalém”, na direção da oração ritual, cf. Sl 134,2; 1Rs 8,38.44.44.48). A oração de Sara começa igualmente com um louvor a Deus (v. 11; cf. v. 2), em seguida (omitido pela liturgia de hoje) pede “faze que eu seja libertada desta terra” (v. 13; cf. v. 6) e finalmente se conforma com uma vida sem insultos: “Se não te aprouver fazer-me morrer, trata-me com compaixão para que eu não ouça mais insultos” (v. 16). A oração confiante indica o caminho da vida e liberta de angústias.

Na mesma hora, a prece dos dois foi ouvida perante a glória de Deus. E Rafael foi enviado para curar a ambos (vv. 16-17a).

O paralelismo das orações e seu atendimento dá ocasião de juntar os dois dramas dando uma solução que será narrada a seguir (cf. as visões paralelas de Saulo e Ananias em At 9 e de Pedro e Cornélio em At 10). Rafael é um dos sete anjos que tem acesso junto à glória do Senhor (4,4; 12,12.14; cf. Ap 8,2). Seu nome rafa-El já se explica aqui: “Deus cura”. Na Bíblia, ele só aparece neste livro (fora de alguns apócrifos) em que resolverá os problemas de Tobit de Sara com ajuda de Tobias.

Evangelho: Mc 12,18-27

No evangelho de hoje continua o confronto de Jesus com as autoridades. Depois dos “sacerdotes, dos anciãos e escribas” (representantes do sinédrio, cf. Mc 11,27-12,12) e os “fariseus e herodianos” (Mc 12,13-17), hoje temos os “saduceus” que perguntam sobre a ressurreição.

Os saduceus se baseiam na legislação (Dt 25,5-10) para propor um caso divertido que ponha em ridículo a crença na ressurreição. São eles que caem no ridículo (cf. Pr 29,9), ao mostrarem que não entendem as coisas mais elementares acerca de Deus, do destino humano, da Escritura.

Vieram ter com Jesus alguns saduceus, os quais afirmam que não existe ressurreição e lhe propuseram este caso: ”Mestre, Moisés deu-nos esta prescrição: ‘Se morrer o irmão de alguém, e deixar a esposa sem filhos, o irmão desse homem deve casar-se com a viúva, a fim de garantir a descendência de seu irmão.’ Ora, havia sete irmãos: o mais velho casou-se, e morreu sem deixar descendência. O segundo casou-se com a viúva, e morreu sem deixar descendência. E a mesma coisa aconteceu com o terceiro. E nenhum dos sete deixou descendência. Por último, morreu também a mulher. Na ressurreição, quando eles ressuscitarem, de quem será ela mulher? Por que os sete se casaram com ela!” (vv. 18-23).

Os saduceus eram um partido religioso com maioria no sinédrio (supremo conselho e tribunal). Eram de famílias tradicionais dos sacerdotes no templo e da aristocracia em Jerusalém. Seu nome deriva de Zadoc, líder dos sacerdotes no tempo de Salomão. Eram mais liberais à influência greco-romana, mas conservadores na religião. Seguiam a velha tradição e não admitiam outra vida (cf. Jó 14,10-19; Sl 88 etc.); não a liam na Escritura nem aceitavam uma tradição oral dos rabinos. Aceitaram como Sagrada Escritura apenas a Torá (Lei de Moisés, em grego Pentateuco que são apenas os primeiros cinco livros da Bíblia). Outro partido, os fariseus, tinha mais influência nas sinagogas, seguiam a nova tradição profética (cf. Dn 12,1 e o testemunho de 2Mc 7; talvez Sl 73,24), acreditando em outra vida e na ressurreição e imaginavam-na como um retorno a vida em condições de total bem-estar. Paulo se aproveitará desta diferença entre saduceus e fariseus (cf. At 23,8).

O caso aqui apresentado está artificial e engenhosamente construído sobre a base da lei do levirato (v. 19; Dt 25,1-10), que procurava assegurar a descendência (e a propriedade) de um defunto sem filhos e, com isso, acolher uma viúva. Se os sete irmãos ressuscitassem, a mulher voltará ao primeiro para dar-lhe um filho e conservar seu nome? A conclusão é que a lei do levirato desacredita, ridiculariza a ideia da ressurreição e aos que creem nela, também Jesus.

Jesus respondeu: “Acaso, vós não estais enganados, por não conhecerdes as Escrituras, nem o poder de Deus? Com efeito, quando os mortos ressuscitarem, os homens e as mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu (vv. 24-25).

Jesus afirma a ressurreição, baseada no poder e na fidelidade de Deus (Ex 3,6.15-16). Não apela a uma imortalidade natural da alma, mas ao “poder” (v. 24) vivificante de Deus. Mas não consistirá num prolongamento ou repetição da vida terrena. “Quando os mortos ressuscitarem, os homens e as mulheres não se casarão, pois serão como os anjos do céu” (v. 25). Depois da morte a condição das pessoas é totalmente diferente da atual (os fariseus imaginavam a vida no céu igual à vida aqui na terra). Abre-se para nós uma dimensão de vida muito diferente, onde os laços humanos, mesmo importantes e sagrados, são substituídos e compensados pela vida nova no Espírito (cf. 1Cor 15,42-49). Projetar para o futuro as condições atuais da vida presente, é empobrecer o mundo de Deus. Serão como anjos, terão uma vida diferente. Não serão mais condicionados pelos limites carnais que caracterizam este nosso modo de ser. Visto que já não morrem, não fará falta a geração para perpetuar o nome. Pela comparação com os anjos e o lugar celeste, esta claro que Jesus fala da ressurreição gloriosa dos justos.

Quanto ao fato da ressurreição dos mortos, não lestes, no livro de Moisés, na passagem da sarça ardente, como Deus lhe falou: ‘Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó’? Ora, ele não é Deus de mortos, mas de vivos! Vós estais muito enganados” (vv. 26-27).

O argumento da Escritura tinha força para aqueles ouvintes, mas só aceitavam a lei de Moisés, Jesus então cita dela, da auto-apresentação de Javé na sarça ardente diante de Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 6,6). E conclui lapidarmente: “Ele não é Deus de mortos, mas de vivos!”

Os israelitas podiam chamar Yhwh (Javé) de “nosso Deus”, por que era “seu Deus” (enquanto outros povos adoravam outros deuses); também o indivíduo no singular. Mas os mortos não podiam invocar o “nosso Deus” (p. ex. Sl 88,11-13); não era o Deus deles. Em contraste com a crença geral se leem os vislumbres de Sl 16,11; 17,15; 73,23-28. Em outras culturas circundantes, imaginavam a existência de deuses próprios do reino dos mortos (Osíris, Nergal, Plutão etc.). O Pai de Jesus é Deus de mortos só para que cessem de estar mortos.

 O site da CNBB comenta: Tem gente que sente o maior prazer em discutir religião. Essas discussões, na verdade, não significam a busca de uma melhor compreensão da fé com a finalidade de possibilitar uma resposta de qualidade aos apelativos dos valores evangélicos, mas na maioria das vezes se constituem numa discussão sobre posições unilaterais e não negociáveis, muitas vezes posições pessoais, que só servem para aprofundar diferenças e criar divisões e em nada contribuem para que todos possam chegar à verdade, muito menos para viver segundo ela.

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