08 de Fevereiro de 2019, Sexta-feira: Ouvindo isto, Herodes disse: “Ele é João Batista. Eu mandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!” (v. 16).

Leitura: Hb 13,1-8

No último capítulo, o autor anônimo de Hb dá vários conselhos confirmados com citações da Escritura.

Perseverai no amor fraterno (v. 1).

O primeiro conselho, o “amor fraterno” (filadélfia) é o amor entre cristãos, chamados “irmãos” (cf. Rm 12,10; 1Ts 4,9; 1Pd 1,24; 3,8; 2Pd 1,7; 1Jo 3,14-18). Este amor-caridade deve se expressar em atitudes concretas como hospitalidade, solidariedade, desinteresse.

Não esqueçais a hospitalidade; pois, graças a ela, alguns hospedaram anjos, sem o perceber (v. 2).

A “hospitalidade” era condição para viajantes e missionários se deslocarem na antiguidade, costume sagrado; “graças a ela, alguns hospedaram anjos sem o perceber“, como Abraão e outros (Gn 18,2-3; 19,12; Tb 5,4-5; Jz 6,11-24; 13,3-23). Exaltada nas parábolas de Lc 10,34; 11,5; 14,12 (bom samaritano; o amigo que se deixa comover; os convidados), a hospitalidade passa a ser, na parábola do juízo final, um modo de acolher o próprio juiz, Cristo (Mt 25,35.43).

Lembrai-vos dos prisioneiros, como se estivésseis presos com eles, e dos que são maltratados, pois também vós tendes um corpo! (v. 3).

A solidariedade com os presos e torturados é necessária, porque estes foram tirados da vista da sociedade e seu sofrimento fica escondido. Entre os detentos, porém, há também inocentes e cristãos perseguidos. Entre os detentos da Bíblia encontram-se José (Gn 39,20-40,23; 41,14), Jeremias (Jr 38), João Batista (Mt 11,2-3p; Mc 1,14p; 6,17-29p), Jesus (Mc 14,46-50; 15,1.16-20; Jo 18,1-12.22; 19,1-5 etc.), Pedro, João e Paulo (At 4-5; 12; 21-28).

A autor apela a empatia geral, ou seja, sentir (as dores) com os outros: “também vós tendes um corpo” (cf. a motivação para o 3º mandamento em Dt 5,15). O corpo e a matéria foram desprezados nas filosofias neoplatônicas e maniqueístas, mas não se pode pensar só no Espírito e se esquecer do sofrimento alheio.

Na descrição do julgamento final, o critério decisivo é a solidariedade para com os famintos, migrantes, doentes e também com os presos (Mt 25,31-46).

O matrimônio seja honrado por todos e o leito conjugal, sem mancha; porque Deus julgará os imorais e adúlteros. Que o amor ao dinheiro não inspire a vossa conduta. Contentai-vos com o que tendes, porque ele próprio disse: “Eu nunca te deixarei, jamais te abandonarei”. De modo que podemos dizer, com ousadia: “O Senhor é meu auxílio, jamais temerei; que poderá fazer-me o homem? ” (vv. 4-6).

Adultério (cf. 1Cor 6,13-19; 1Ts 4,4s; Ef 5,5; 1Pd 3,7) e cobiça do dinheiro (Cl são mencionados juntos porque é preciso “contentar-se com o que se tem” (Lc 3,14; 1Tm 6,8; cf. Pr 5-7; Ecl 23), porque Deus é nosso auxilio, não nos abandonará (o autor cita livremente Dt 31,6; Sl 27,1; 118,6). O texto, que lembra Dt 21,6, não se encontra sob esta forma nestes termos, nem no original hebraico nem na versão grega. Ora, o filósofo judeu Filon de Alexandria o cita exatamente nesses termos. Essa observação apoia a ideia de Lutero sugerindo como autor desta carta um certo Apolo (cf. 1Cor 1,12; 3,4-11.22; Tt 3, 13) cuja descrição em At 18,24-28 se encaixa bastante ao perfil do autor de Hb: origem judaica, educação helenista em Alexandria onde atuava o filósofo judeu Filon, conhecimento das Escrituras e reputação de eloquência. Mas isso não basta para atribuir a carta a Apolo, pois estas características podem ser encontradas em outras pessoas apostólicas da época. Aliás, outras observações indicam que o autor teria escrito a carta (“exortação” 13,22) no fim do séc. I; talvez, o autor poderia ser um discípulo de Apolo.

Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a palavra de Deus, e considerando o fim de sua vida, imitai-lhes a fé. Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje e por toda a eternidade (vv. 7-8).

Os leitores devem-se lembrar dos “dirigentes” (v. 7; cf. v. 17). Falando para uma segunda geração cristã, o autor pensa aqui nos apóstolos que pregavam a fé e já morreram como mártires (cf. 10,32s; Tt 1,5). Acima daqueles que passaram e de nós que passamos, “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e por toda eternidade” (v. 8; cf. o lema do projeto da evangelização rumo ao novo milênio). Ele é o centro da fé e abraça todas as idades, gerações e épocas. Ele não muda, em consequência não se muda a doutrina sobre ele (cf. v. 9), mas é necessário, compreendê-lo e anunciá-lo com novo ardor e novos métodos (cf. a atualização “aggiornamento” do Concílio Vaticano II). Deus não muda, mas nossa compreensão dele pode mudar, p. ex. aprofunda-se nossa compreensão do criador conhecendo mais sobre o universo através das ciências, ou compreende-se melhor a Escritura estudando o contexto histórico em que se situam a intenção e as expressões do autor bíblico (Ef 3,18-21).

Evangelho: Mc 6,14-29

O evangelista encontrou um bom lugar no seu livro para encaixar a notícia da morte de João Batista, o “precursor” (cf. 1,2), cuja prisão já foi mencionada bem antes (1,14). Depois do envio dos apóstolos (vv. 7-13; evangelho de ontem), há de esperar o resultado desta missão. Então, antes de narrar a volta dos discípulos em v. 30, Mc encaixa a notícia da morte do Batista durante um banquete de Herodes (banquete da morte). Depois, a volta dos apóstolos emboca noutro banquete, a multiplicação dos pães, banquete da vida (vv. 30-44, evangelho

O rei Herodes ouviu falar de Jesus, cujo nome se tinha tornado muito conhecido (v. 14a).

O alcance da mensagem de Jesus se ampliou, até “o rei Herodes ouviu falar de Jesus”. Não é o Herodes Grande que perseguiu o menino Jesus (Mt 2), mas um dos seus filhos que dividiram o governo sobre território do pai. Herodes Antipas era governador (“rei”; Mt 14,1: “tetrarca”) da Galileia e Pereia (Transjordânia) na época de Jesus.

Alguns diziam: “João Batista ressuscitou dos mortos. Por isso os poderes agem nesse homem.” Outros diziam: “É Elias.” Outros ainda diziam: “É um profeta como um dos profetas” (vv. 14b-15).

Poucos entendem quem é Jesus, o confundem com João Batista ou Elias ou outro profeta (cf. 8,27-29). João Batista e Jesus tinham quase a mesma idade e eram parentes (cf. Lc 1,36). João Batista deixou um impacto de modo que Jesus parecesse uma cópia dele (“ressuscitou”, seguidor? cf. Mt 3,14s) e não João como precursor de Jesus. Na opinião do povo, o profeta Elias, arrebatado ao céu (2Rs 2,11), voltaria para preparar o povo para a vinda do messias (Ml 3,1.23-24; Mc 9,11-13; Mt 17,10-13). O povo não levou em conta as diferenças entre Jesus e João relatadas no quarto evangelho (Jesus não batizou; João não realizou milagres nem transmitiu o Espírito, cf. Jo 1,19-36; 3,22-30; 4,1-2).

Ouvindo isto, Herodes disse: “Ele é João Batista. Eu mandei cortar a cabeça dele, mas ele ressuscitou!” (v. 16).

Herodes achou que João ressuscitou em Jesus (cf. v. 14b); talvez sua consciência ficasse pesada pelas circunstâncias da morte do Batista que Mc relata em seguida em técnica retrospectiva.

Herodes tinha mandado prender João, e colocá-lo acorrentado na prisão. Fez isso por causa de Herodíades, mulher do seu irmão Filipe, com quem se tinha casado. João dizia a Herodes: “Não te é permitido ficar com a mulher do teu irmão. ” Por isso Herodíades o odiava e queria matá-lo, mas não podia. Com efeito, Herodes tinha medo de João, pois sabia que ele era justo e santo, e por isso o protegia. Gostava de ouvi-lo, embora ficasse embaraçado quando o escutava. (vv. 17-20).

Com grande maestria literária, Marcos nos conta o martírio do Batista. Começa descrevendo a situação na corte de Herodes. O motivo da prisão nos evangelhos é a crítica de João a respeito do casamento ilegítimo do governador. Para um historiador contemporâneo, José Flávio (37-100 d.C.), o motivo era outro: Herodes prendeu João por sua crítica social e política.

Em Mc, mesmo na prisão, o profeta não se cala e continua falando. Herodes Antipas parece ter herdado um pouco do caráter psicótico do seu pai. Seu comportamento é ambíguo: gosta de escutar João, embora fique embaraçado; pela influência da sua mulher, colocou João na prisão, mas tem medo dele, porque era o homem de Deus (“justo e santo”).

A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã ao rei Davi, 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades; tudo isso nos lembra o drama do fraco rei Acab, cuja esposa Jezabel o incitava ao crime (1Rs 21), e o profeta justo e santo, Elias, acabou perseguido e ameaçado de morte (cf. 1Rs 18-19; 21; Elias é modelo do Batista, cf. 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13).

Finalmente, chegou o dia oportuno. Era o aniversário de Herodes, e ele fez um grande banquete para os grandes da corte, os oficiais e os cidadãos importantes da Galileia. A filha de Herodíades entrou e dançou, agradando a Herodes e seus convidados. Então o rei disse à moça: “Pede-me o que quiseres e eu to darei. ” E lhe jurou dizendo: “Eu te darei qualquer coisa que me pedires, ainda que seja a metade do meu reino.” (vv. 21-23).

A morte de João acontece dentro de um banquete de poderosos. Assim, o profeta que pregava a conversão, o início de transformação radical pela vinda do messias (cf. 1,4-8) é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, Jesus celebrará o banquete da vida com o povo necessitado (a narrativa seguinte é a multiplicação dos pães em 6,30-44).

Marcos segue a técnica narrativa bíblica: reprime suas emoções, como se narrasse a frio, e deixa que os fatos comovam o leitor. Muitos escritores e músicos exploraram o potencial dramático desse relato. Celebra-se o aniversário do rei em clima de festa. É a ocasião de fazer benefícios e conceder perdão. A princesa faz o papel de bailarina (cf. Ct 7,1-7) num solo de exibição oferecido a um público masculino. O aplauso é geral, e o rei, numa demonstração de magnificência, promete dar-lhe quanto pedir, e o jura com uma fórmula hiperbólica (cf. Est 5,3.6; 7,2). Jurando (v. 26), Herodes abusa do nome divino, seu juramento leva ao crime. O nome da moça, Salomé, consta em documentos fora da Bíblia.

Ela saiu e perguntou à mãe: “O que vou pedir?” A mãe respondeu: “A cabeça de João Batista.” E, voltando depressa para junto do rei, pediu: “Quero que me dês agora, num prato, a cabeça de João Batista.” O rei ficou muito triste, mas não pôde recusar. Ele tinha feito o juramento diante dos convidados. (vv. 24-26).

Herodíades aproveita a ocasião propícia. O inesperado pedido da princesa coloca o rei numa posição comprometida: dividido entre sua estima/temor (v. 20) pelo Batista e o juramento pronunciado diante dos convidados. O pedido invalida sem mais o juramento. Um juramento não pode justificar um crime de assassinato. Mas o rei cede à sensualidade e aos compromissos de corte.

Imediatamente, o rei mandou que um soldado fosse buscar a cabeça de João. O soldado saiu, degolou-o na prisão, trouxe a cabeça num prato e a deu à moça. Ela a entregou à sua mãe. Ao saberem disso, os discípulos de João foram lá, levaram o cadáver e o sepultaram (vv. 27-29).

A festa tem um final macabro. O quadro denuncia sem afetação a imoralidade e corrupção dos dirigentes. Uma cena semelhante, embora de signo contrário, é Judite levando e mostrando a cabeça de Holofernes (Jt 13). Uma tradição judaica sobre Ester fala da cabeça da rainha Vasti (cf. Est 1,9-2,1) levada numa bandeja à sala. A princesa Salomé levando o prato com a cabeça de João Batista cortada tem acendido a fantasia de escritores e artistas e convertido João e Salomé em figuras arquetípicas. Mas o fim trágico de João está prefigurando antes de tudo a morte de Jesus e também sua sepultura.

João Batista é “precursor” de Jesus na vida (seis meses mais velho, cf. Lc 1,36) e na morte (martírio). O leitor, porém, ouvirá o primeiro anúncio explícito da paixão de Jesus só em 8,31, mas já pode vislumbrar que Jesus poderá tomar o mesmo destino de profeta (cf. 2,20; 3,6).

O site da CNBB comenta: Todas as pessoas que participam da missão de Jesus, participam também do seu tríplice múnus: sacerdotal, profético e real. Participam do sacerdócio de Cristo através da busca da santificação pessoal e comunitária, da oração, da intercessão, etc. Participa do múnus profético através da palavra que denuncia o pecado e anuncia o Reino e participa do múnus régio pelo serviço aos irmãos e irmãs. A participação no múnus profético exige compromisso com a verdade e os valores morais, que atrai a ira de todos os que são contrários à proposta de Jesus, e, como no caso de João Batista, acarreta em ódio, vingança, perseguição e pode até levar à morte.

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