08 de janeiro de 2018 – Segunda-feira, Natal – Batismo do Senhor

 

Com a festa do Batismo do Senhor encerra-se o Tempo do Natal e abre-se o Tempo Comum (é também o 1º domingo do Tempo Comum, a cor ainda é branca) no qual acompanharemos Jesus adulto nos evangelhos. Antigamente, a festa do Batismo do Senhor fazia parte da Epifania (manifestação do Divino). Igrejas orientais e algumas ortodoxas ainda celebram na Epifania o nascimento de Jesus, seu Batismo e o primeiro milagre em Canã. Na Igreja Católica, o nascimento de Jesus com a adoração dos pastores celebra-se em 25/12 (desde o séc. IV) e a Epifania (a adoração dos magos) em 06 de janeiro, da qual a festa do Batismo do Senhor foi desmembrada em 1959 e se celebra no domingo seguinte (ainda no ano C, celebra-se o casamento de Caná no 2º domingo do Tempo Comum, além de ser lido em 12/10 no Brasil).

 

1ª Leitura: Is 42,1-4.6-7

No livro do Deutero-(Segundo)-Isaias (Is 40-55; escrito no exílio da Babilônia por volta de 550 a.C.) encontram-se quatro cânticos de um “Servo” de Deus (41,1-4; 49,1-7; 50,1-9; 52,13-53,12; cf. leituras nos dias da Semana Santa). Quem é este servo? Já duas interpretações principais: a coletiva vê nele o povo judeu (cf. 41,8), a individual vê nele uma pessoa concreta, talvez um conhecido do profeta que deu sua vida pelo povo (cf. 52,13-53,12). A interpretação cristã vê neste servo uma profecia que se cumpriu plenamente em Jesus Cristo.

Quem apresenta este servo, é o próprio Javé-Deus pela boca do profeta. O primeiro canto (ou poesia) encontra-se nos vv. 1-4; os vv. 6-9 formam uma segunda parte, separada por uma nova introdução (os vv. 5.8-9 são omitidos na leitura de hoje). A palavra chave que aparece três vezes é mispat, traduzida por “julgamento” (vv. 1.3b), “justiça“ (v. 4) ou “direito”.

(Assim fala o Senhor:) Eis o meu servo – eu o recebo; eis o meu eleito – nele se compraz minh’ alma; pus meu espírito sobre ele, ele promoverá o julgamento das nações (v. 1).

O primeiro canto caracteriza o “eleito” do Senhor (Javé) de maneira aberta a várias interpretações: É uma pessoa ou uma figura coletiva? Deus elegeu Israel (cf. 41,8), mas elegeu também Davi, em quem pôs o seu espírito (v. 1; cf. 1Sm 16,13). Mas a figura deste “servo” é um contraste grande a um rei poderoso ou a um povo guerreiro.

Pelo gênero literário pode-se comparar a cena com a designação de Saul a Samuel para unção em 1Sm 9,15-17 (“Eis o homem de quem lhe disse ele governará sobre o meu povo”) ou a apresentação de um ministro (“servo”; cf. 1Rs 22,12) na corte celestial de Javé (cf. 40,1ss; 1Rs 22,19-22) que o profeta escutou em sua visão (cf. Is 6).

Javé o “recebe”, apoia o apresentado que não é um rei autônomo, mas um “servo” submisso a Javé e também seu “eleito”. Davi foi chamado simultaneamente “servo” de Javé (1Sm 7,8; 1wRs 11,13.32.34; 2Rs 19,34; 20,6; Jr 33,21s.26; Sl 78,70; 89,4) e seu “eleito” (1Rs 11,34; Sl 78,70; 89,4; Ag 2,23). Deus elegeu o servo (entre vários candidatos; 1Sm 10,24; 16,1-13), “nele se compraz” (2Sm 24,23) e pôs seu “espírito” nele (1Sm 16,13; cf. Nm 11,25,29). O espírito lhe confere certos dons e carismas (Is 11,2).

Sua missão é “promover o julgamento das nações”, ou seja, “levar o direito dos povos (pagãos)”. Os manuscritos diferem: “o” direito, o “meu” direito (de Javé) ou “seu” direito (do servo). Nos dois primeiros casos, seria o ideal da realeza em Israel: governar com justiça (2Sm 8,15; Is 32,1; Sl 72,1-4), proteger os pobres e oprimidos (Sl 72; Pr 29,4), julgar em certos casos (1Rs 3,28; 2Sm 15,2.6; Pr 16,10; já Jz 4,5). Diante da injustiça praticada na história dos reis esperava-se ansiosamente por um rei (“ungido” = messias) que exercesse a justiça (cf. Is 9,6; Jr 23,5; Ez 21,30-32; 34,16). Mas se a versão do “seu direito” prevalece, pode designar o direito constitucional que Samuel descreveu no início da monarquia: o rei tem direito de explorar seus súditos por confiscações e pela corveia e obrigar os filhos de Israel para servirem na guerra, nos cavalos (1Sm 8,11-17; cf. Mc 10,42).

Ele não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas. Não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega (vv. 2-3b).

O v. 2 apresenta a estratégia do servo eleito. Promoverá o (seu) direito não de maneira grossa e violenta (cf. Ecl 9,17: “Palavras calmas de sábios são mais ouvidas do que gritos de quem comanda insensatos”).

Pode-se ver neste servo eleito um antítipo dos juízes como Gideon que também estavam com o espírito do Senhor (Jz 3,10; 6,34) para promover o direito (Jz 4,5). Gideon “gritava conclamando” o povo para fora, para guerra santa (Jz 6,34s; cf. Jz 4,10.13; 7,19s.23s; 12,2). Caçava os inimigos já derrotados e os eliminou (Jz 7,23-25; 8,4-12.18-21; cf. Is 43,17 que aplica a imagem do pavio apagado aos inimigos derrotados da guerra)

O servo, ao contrário, evita barulho e violência. “Ele nem clama nem levanta a voz, … não quebra uma cana rachada nem apaga um pavio que ainda fumega” (vv. 2-3). Ele se nega a conclamar qualquer guerra santa, ainda que seja em defesa; ele representa a utopia da paz santa que convencerá os povos mais que qualquer agressão bélica (cf. Is 2,2-5).

Seria um impulso natural quebrar uma cana já rachada (cf. 2Rs 18,21; Ez 29,6s) ou apagar um pavio quando não há mais óleo para abastecer. Mas o servo eleito não faz isso, ele tem um cuidado sobrenatural, não promove o direito do mais forte, não comete eutanásia para com os candidatos à morte, não descarta os mais fracos, mas oferece seu direito de viver a eles (cf. Mt 5,3ss).

Mas promoverá o julgamento para obter a verdade. Não esmorecerá nem se deixará abater, enquanto não estabelecer a justiça na terra; os países distantes esperam seus ensinamentos (vv. 3c-4).

Podem variar as traduções: o servo “promoverá o julgamento para obter a verdade” (ou: promoverá “de verdade” ou “com fidelidade”; v. 3c).

O servo tem discrição e firmeza, sua atitude de cuidado coincide com sua perseverança. Não esmorecerá nem se deixa abater (ou: “ele não apagará e não quebrará”; alusão óbvia ao versículo anterior). Ele mantém sua meta e a alcança: “estabelecer a justiça na terra” (ou seja, “no país”), mas até “os países distantes” (lit. “as ilhas”, v. 4) esperam por seus ensinamentos (ou: “por sua lei”).

O par mispat (“julgamento”, “justiça”) e torá (orientação, lei, aqui traduzida por “ensinamento”) se encontra no contexto deuteronomista (Dt 33,10; Js 24,25s; 1Rs 2,3 etc.) e designa o conjunto das leis morais, cultuais e casuais (cf. Dt 12-26) que fazem de Israel um estado de direito solidário. Assim, Josué selou a aliança com o povo em Siquém (Js 24,25s).

Com ousadia conclui este primeiro canto: Os homens “nas ilhas” (países) mais distantes esperam pela torá (ensinamento, lei) do servo, esperam pela lei como se fossem israelitas piedosos (cf. Sl 119,43s). Um ensaio da missão aos pagãos já aconteceu em 2Rs 17,26-28.34.37 entre os samaritanos. Já na visão da paz universal em Is 2,2-5, todas as nações acorrerão a Jerusalém para ouvir a instrução, a lei, a palavra de Javé (cf. 51,4). A benção de Abraão se estenderá a todos os povos da terra (Gn 12,3).

Mas quem, afinal, é este servo? Deutero-Isaías apresenta uma figura que trará a salvação (paz como fruto da justiça e do seu ensinamento, cf. Is 32,17). A monarquia antiga decepcionou e faliu no exílio, mas não se pode voltar ao tempo antes da monarquia com Gideon e seus excessos de violência. O servo completará a ideia de um rei ideal da dinastia de Davi (messias, ungido com o espírito), levando o direito solidário (sem exploração nem violência) para além de Israel aos povos.

Mas quem será este servo real? Três possibilidades: 1. Uma pessoa desconhecida na comunidade do exílio em que se concentram estas esperanças 2. Ou o próprio profeta, Deutero-Isaías, que escutou sua apresentação na esfera celeste (cf. Is 6). Os profetas eram os oponentes tradicionais dos reis, agora ele mesmo representa um tipo contrário aos reis corruptos. 3. Ou, numa interpretação coletiva, o servo representa o povo eleito de Israel e seu papel no meio dos povos pagãos (45,14; 49,7; 55,3-5; cf. a eleição, o dom do espírito e apoio de Javé em 41,8-10; 43,10.20; 44,1-3; 45,4; 49,7).

O judaísmo helenista com sua tradução grega (LXX) interpretou o servo como imagem do povo de Israel, enquanto os judeus na Palestina o relacionaram ao messias que devia vir (cf. as traduções em aramaico, Targum).

No NT, os evangelhos aplicam a Jesus a figura do servo, especialmente Mateus: “Este é meu é o filho (servo) amado (eleito)” diz a voz do céu no batismo (cf. Sl 2,7), e o Espírito do messias em forma de pomba simboliza paz e amor, não violência (Mt 3,17 e paralelos; 12,17-21; 17,5). Também o papa Francisco apresenta traços deste servo na sua exortação de não descartar os fracos na vida e na fé, nem oprimir nem condená-los, mas cuidar e abraçá-los.

Eu, o Senhor, te chamei para a justiça e te tomei pela mão; eu te formei e te constituí como o centro de aliança do povo, luz das nações, para abrires os olhos dos cegos, tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas (vv. 6-7).

Deus “chama” o servo para justiça e salvação (cf. 41,4.9; 43,1; 46,11; 48,15; 49,1; 51,2; 54,6). Como um pai ao seu filho medroso e inseguro, ele o “toma pela mão”, (cf. Gn 19,16; Jz 16,26), e o constitui o centro (mediador) de “aliança do povo, luz das nações”. Isto não se refere só à vocação de Deutero-Isaías (40,6-8), mas ao chamado de Abraão com quem Deus já fez uma “aliança” que não só incluiu terra e descendência, mas também a benção para “todas as nações” (Gn 12,1-3; 17,4-8).

Depois de mencionar a criação de Deus (v. 5) e o chamado do servo igual a Abraão, agora se alude a Moisés. Chamando este príncipe do Egito em Ex 6,2-8, Javé Deus agiu em função da aliança: “Eu ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizaram e me lembrei da minha aliança” (Ex 6,5).

Deutero-Isaías entende o exílio como cativeiro na escuridão (cf. 42,16.22; 49,24-26; 50,10; 51,14). O servo eleito, pessoa humilde como Moisés (Nm 12,3), deve levar o povo a um novo êxodo (saída), desta vez não do Egito, mas da Babilônia, “tirar os cativos da prisão, livrar do cárcere os que vivem nas trevas” (v. 7). Este milagre de um novo êxodo irá “abrir os olhos” dos povos pagãos para reconhecerem o verdadeiro Deus, seu santo “nome” (v. 8; cf. Ex 3,14) e sua luz (cf. Ex 13,21s). A lei (tora) e o direito (mispat, cf. vv. 1-4) também são “luz” (cf. os 6,5; Mq 7,9; Sf 3,5; Sl 37,6) e são o conteúdo da “aliança pelo povo” (Js 24,25).

No texto hebraico de v. 7 não fica claro quem é o sujeito: Deus abrirá os olhos dos cegos ou o servo (tradição da nossa liturgia). Chamado por Deus, o servo eleito não submeterá os mais fracos ao seu domínio, mas seu agir acabará produzindo uma transformação radical. Os cegos enxergarão e os presos serão libertados (v. 7; cf. 61,1). O servo será estabelecido como “luz das nações” no segundo cântico (49,6; cf. Paulo em At 26,17s).

No NT, Jesus responde a pergunta do Batista que a cura de cegos está entre as obras pelos quais se reconhece o messias (Mt 11,5; Lc 7,22; cf. Is 29,18; 35,5; 42,7.18; Lc 4,18). Em Jo 8,12, ele se apresenta: “Eu sou a luz do mundo”. Simeão louva o menino Jesus como “luz para iluminar as nações e glória do teu povo, Israel” (Lc 2,31s).

  1. Voigt resumiu: O servo de Javé é um conceito de Deus, plenamente realizado em Jesus Cristo e no qual outros podem participar cada um de sua maneira, antes de Cristo, também depois dele (GPM N.F. 1983, 6; p. 91).

2ª Leitura: At 10,34-38

A segunda leitura é tirada da visita de Pedro ao centurião romano Cornélio. Sua pregação resultará no dom do Espírito “sobre todos os que ouviam a palavra” e no batismo deles. O fato de um judeu (Pedro) entrar na casa de um pagão (cf. v. 28; Mt 8,8p) e administrar o primeiro batismo aos pagãos (sem circuncisão) provoca escândalo entre os tradicionalistas (11,1-3); será debatido e resolvido no primeiro Concílio em Jerusalém (cf. At 15).

Pedro tomou a palavra e disse: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção entre as pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença (vv. 34-35).

Depois da saudação dos dois homens comunicando cada um o motivo deste encontro (duas revelações paralelas, cf. vv. 1-33), Pedro começa seu discurso catequético (ou melhor: kerygma, primeiro anúncio) que apresenta a lição primária de todo o fato: “Deus não faz distinções entre as pessoas” (cf. Dt 10,17; 2Cr 19,7; At 15,9; Gl 2,6; Mc 12,14p), aceita qualquer homem religioso e honrado, não leva em conta “a nação à que pertença”, a raça, a situação social, o gênero, a idade.

Quando diz “a quem respeita/venera a Deus”, o autor pensa logicamente no Deus verdadeiro. Como se chama a esse Deus? Mais de um texto bíblico sugere uma resposta tolerante (as parteiras do Egito: Ex 1,17; Melquisedec: Gn 14,18-20; cf. Sb 13,5s; as mulheres na genealogia de Mt 1,1-17). Em Lc 10, 25-37, o samaritano, um homem de uma religião rival, torna-se um bom exemplo.

Qualquer um, de qualquer raça ou nação, recebe de Deus a graça e a misericórdia. O evangelho de Jesus é “católico”, ou seja, universal, e deve vencer todas as barreiras erguidas pelos limites ou preconceitos humanos. Pelo batismo, os cristãos tornam-se filhos adotivos de Deus, membros da mesma família (Igreja), irmãos do mesmo povo (cf. Mt 28,19s; Gl 3,27-29). Esta consciência deve vencer barreiras e preconceitos (cf. Ef 2,11-22).

“Ele aceita” (lit.: lhe é agradável), terminologia cultual (cf. v. 4). É agradável a Deus um sacrifício irrepreensível ou aquele que o oferece (Lv 1,3; 19,5; 22,19-27). Isaías (56,7) anunciara que, no fim dos tempos, os sacrifícios dos gentios seriam agradáveis a Javé (cf. Ml 1,10s; cf. Rm 15,16; Fl 4,18; 1Pd 2,5).

Aqui, Pedro afirma que não são a pureza ou impureza rituais que tornam o homem agradável a Deus como um sacrifício, mas “ele aceita quem o teme e pratica a justiça”. No AT, o “temor de Deus” é o princípio da sabedoria (Pr 1,8; 9,10; 15,33; Jó 28,28; Eclo 1,14), um dom do Espírito, (Is 11,2); os que simpatizavam com a religião judaica, mas ainda não eram circuncidados eram chamados “tementes de Deus”, como o próprio Cornélio (vv. 2.22; cf. 13,16.26). A “justiça” é a qualidade de sua religiosidade e moral (cf. Sl 15,2) e, mais profundamente ainda, a fé em Jesus, que “purifica os corações” dos judeus e dos pagãos (15,9) – cf. Rm 14,18 e seu contexto, onde se trata de alimentos puros e impuros. O sentido da visão de Pedro (vv. 11-16) está agora plenamente revelado.

Deus enviou sua palavra aos israelitas e lhes anunciou a Boa-Nova da paz, por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos (v. 36).

Entrando no assunto, Pedro afirma a continuidade (AT e NT): “Deus enviou sua palavra aos israelitas” por meio dos profetas e agora “por meio de Jesus Cristo, que é o Senhor de todos”, envia a “Boa Nova da paz”, ou seja, a mensagem de salvação pela qual Deus anuncia a paz entre si e os homens (Is 52,7; Sl 107,20; 147,18). Se a mensagem foi dirigida a Israel primeiro (cf. 13,46), ela o é agora a “todos” os seres humanos sem exceção, porque Jesus é o Cristo (Messias de Israel) e Senhor de todos. Na boca de Pedro, o segundo título “Senhor” soará com a plenitude que os cristãos lhe reconhecem (cf. 2,36; Rm 10,9; 14,8s; Fl 2,9-11 etc.).    

Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia, depois do batismo pregado por João: como Jesus de Nazaré foi ungido por Deus com o Espírito Santo e com poder. Ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio; porque Deus estava com ele (vv. 37-38).

Diferente das pregações diante de pagãos que falam do Deus Criador e chama à conversão (14,15ss; 17,24ss), a pregação diante de Cornélio se refere ao que os ouvintes já sabem. Como tementes a Deus, já participam da sinagoga (sem serem circuncidados) e devem ter ouvido “o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (cf. v. 39; Lc 4,14.37.44; 23,5).

Segue o roteiro resumido do Evangelho (de Mc que Lc usou como modelo): iniciando com o batismo por João em que “Jesus de Nazaré” se tornou “Cristo” (=”ungido”);  Jesus não foi “ungido” rei-messias com óleo de crisma pelo sumo sacerdote (cf. 1Sm 16,13; 1Rs 1,38s; Sl 2,2.7), mas “por Deus com o Espírito” (cf. Is 42,1; Lc 4,4.18.; At 4,27), os ouvintes ouviram falar também dos seus milagres (“com poder”, “fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio”; cf. 4,9; Lc 13,16; Lc 4,18s = Is 61,1s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2123) comenta: A afirmação capital dos vv. 34-35 introduz um novo exemplo de pregação apostólica (cf. 2,14…). Após uma declaração sobre o sentido da vinda de Jesus (v. 36), as etapas do seu ministério são brevemente evocadas segundo o plano dos evangelhos sinóticos (vv. 37-39a) até a sua consumação: a morte, a ressurreição e as aparições, a missão confiada aos apóstolos (vv. 39b-42); no fim, um apelo implícito a fé, confirmado pelo testemunho dos profetas (v. 43). A linguagem dos vv. 36-39, particularmente difícil e complicada, reflete-se na tradução.

Evangelho: Mc 1,7-11 (Ano B)

O evangelho de hoje nos apresenta o batismo de Jesus por João Batista. Mc é o primeiro evangelho que foi escrito (por volta de 70 d.C.). É uma obra anônima (como todos os quatro evangelhos). A tradição a atribuiu a João Marcos (cf. At 12,12.25; 13,5.13; 15,37-39; Cl 4,10; Fm 24; 1Pd 5,13), companheiro de Paulo e de Pedro. Mc inicia seu evangelho sem narrar a infância de Jesus, mas com seu batismo já como adulto. Mc entrelaça a história de João Batista e de Jesus: João é apresentado pela Palavra de Deus (Ml 3,1; Is 40,3) como precursor do messias (cf. vv. 2-3), depois é narrado sua atividade e pregação. Também Jesus é apresentado pela Palavra de Deus (voz do céu em v. 11), em seguida Mc narra sua atividade e pregação do seu evangelho (esta começa só depois da prisão de João Batista, v. 14).

Em Mc, João é descrito na sua atividade de pregador austero no deserto e praticando um batismo de conversão para o perdão dos pecados (vv. 4-6), mas Mc não nos transmite o conteúdo da sua pregação de penitência e juízo próximo (cf. Mt 3,7-10.12p; Lc 3,10-14), apenas as palavras que apontam para o “mais forte” que “virá depois”. No 2º Domingo do Ano B da nossa liturgia já foi lido o início do Evangelho que apresenta João Batista (vv. 1-8).

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta:

A boa notícia foi anunciada pelos profetas e agora João Batista a prepara. Marcos o identificava como o anjo prometido no êxodo: “Enviarei na frente meu anjo” (Ex 33,2), como o arauto de Is 40,3 (definido, segundo o grego, para destacar o deserto) e como o Elias que retorna (Ml 3,1). No vestuário e na austeridade, imita Elias (2Rs 1,8; Zc 13,4).

Prega no “deserto”, lugar do caminho de volta para Deus: “escuta-se nas dunas pranto suplicante dos israelitas… Aqui estamos, viemos a ti” (Jr 3,21-22; cf. Os 2,16 etc.). Lá acorrem, atraídos por sua fama, os que na Judéia e em Jerusalém não acham resposta, os que não se satisfazem com as liturgias penitenciais e os ritos de expiação do templo. Prega um “batismo de arrependimento” (metánoia), que se expressa na confissão pública dos pecados: “propus confessar meus delitos ao Senhor” (Sl 32,5), para obter o perdão de Deus: “e tu perdoastes minha culpa e meu pecado” (idem), e na imersão na água purificadora (cf. Ez 36,25). O batismo é o rito que representa e sela a reconciliação.

Dessa maneira, os judeus refazem a viagem dos israelitas pelo deserto e a passagem do Jordão (Js 3-4); não só como recordação, mas inaugurando uma era. Com isso se preparam, não para entrar na terra prometida, mas para receber o Senhor que chega (cf. Js 5,14; Sl 96, e 98). Esse Senhor (Kyrios, Yhwh) e agora o Messias.

(Naquele tempo, João Batista) pregava, dizendo: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo” (vv. 7-8).

Essa é a “proclamação” da voz no deserto (v. 3) ou pregação do arauto que Mc pega da tradição da fonte Q (uma coleção desaparecida de palavras que se deixa reconstruir a partir de Mt e Lc que a usavam; cf. Mt 3,11; Lc 3,16): a chegada do outro com mais autoridade.

A frase das sandálias com o gesto de agachar-se é provável alusão ao esposo da lei do levirato (Dt 25,1-5; Rt 4), como que sugerindo que ele não vai suplantar o Messias. Os quatro evangelistas e At 13,25 mencionam esta frase: o símbolo se esclarece na versão do evangelho de João (Jo 1,27.30; 3,28s). Uma longa tradição transmite essa interpretação teológica das sandálias, ao passo que outra tradição, também antiga, reduz o tema a uma expressão ética de humildade.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 1923) comenta:

Conforme Mc, toda a pregação de João se refere Àquele que “vem depois” dele, ou em seu seguimento, lit. “atrás dele”). A expressão, que denota a dignidade, como num cortejo (cf. 1,17.20; 8,33.34), ressalta o contraste entre João e Jesus: aquele que vem depois é na realidade “mais forte”. A força, atributo do Messias (cf. Is 11,2; 49,25; 53,12; Sl de Salomão 17,24), manifestar-se-á na luta de Jesus contra Satanás (3,27 …). E aquele que vem na frente não passa, na realidade de um criado, calçar ou desatar as sandálias de alguém era uma tarefa própria do escravo (cf. Jo 13,4-17)… Esta palavra [v. 8] evidencia a distância entre a atividade de João caracterizada pelo batismo de água, e a do Messias, definida como um batismo no Espírito Santo. Mc não menciona o fogo (cf. Mt 3,11…). De preferência a Pentecostes ou ao batismo cristão (At 11,16; 19,1-6), o que parece ser designado aqui como purificação e santificação escatológica pelo Espírito Santo é a obra global da salvação inaugurada por Jesus (a seita de Qumran esperava-a para o fim dos tempos. Regra 3,6-8).

A água é elemento fundamental e símbolo da vida. Todas as religiões têm seus ritos de ablução ou purificação (cf. o banho no rio Rio Ganges, que é uma deusa na Índia). O batismo de João era algo novo e único, que rendeu a João o apelido Batista. Não era igual ao batismo de prosélitos (pagãos que se converteram e se purificaram para poderem entrar em contato com os judeus) nem aos banhos cotidianos da seita dos essênios que se retiraram ao deserto (comunidade de Qumran) para levar uma vida pura longe da corrupção do templo na capital de Jerusalém.

João é mais do que uma testemunha qualificada, mas o profeta de conversão que confere o batismo. Talvez João não tenha pensado no messias, mas antes no Senhor (Javé) “que virá” em breve para fazer o julgamento (com fogo) e no qual não basta apenas pertencer ao povo eleito, mas precisa de conversão pessoal para se salvar. Mas não é a água (o rito do batismo) que salva. O batismo de João (mergulhar no rio Jordão) seria mais uma confirmação: o selo ao perdão que a pessoa recebe por sua conversão interior e confissão pública. Como sinal de conversão, obviamente, João não ministrava o batismo a crianças.

O batismo de João era um pedido de perdão (quem perdoa é o juiz, ou seja, Deus; cf. 2,5-7), só com água, mas sem Espírito (cf. At 11,15s; 19,1-6) e sem poder (milagres, cf. At 10,37). O batismo de Jesus, ou seja, o batismo cristão significa: filiação divina (cf. v. 11) através do Espírito (não da carne, cf. Jo 1,12s) e, portanto, confere a herança da vida eterna (Rm 6,4; 8,15-17). Com este novo significado, o batismo começou ser ministrado também a crianças substituindo a circuncisão como sinal de pertença ao povo eleito (depois do Concílio em Jerusalém que desobrigou da circuncisão em At 15, Paulo batiza famílias inteiras em At 16).

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta: “O que vem” ou há de vir, o vindouro (equivale ao nosso futuro) podia ser título do Messias. É ele que traz o autêntico batismo: não de água que limpa, mas do Espírito Santo que vivifica e consagra; não água de rio, mais vento ou “alento” que desce do céu e transforma o deserto em jardim (cf. Is 32,15).

Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no rio Jordão (v. 9).

Pela narração, a entrada em cena de Jesus já o faz aparecer como sendo aquele que João anunciava. Veio do norte, de outra região, não de Jerusalém nem da Judeia, de onde as multidões se aproximavam de João (v. 5). O título do Evangelho já apresentou: “Jesus Cristo (messias), Filho de Deus” (v. 1). Agora ele é caracterizado por sua proveniência insignificativa: “de Nazaré”, um pequeno povoado “da Galileia”; um judeu do interior de uma região desprezada pela elite da capital (cf. Jo 1,46; Mt 4,15: “Galileia, terra dos pagãos”). Nazaré reaparece em 6,1-6p (cf. Lc 1,26; Mt 2,23; no título da cruz apenas em Jo 19,19: “Nazareno”; como nome dado aos cristãos cf. At 24,5). Para Mc, Galileia é a terra onde será acolhida a mensagem de Jesus, ao contrário da capital Jerusalém (cf. 16,7).

Recebe de João o batismo, como outro sentido: seu “submergir” (batizar era mergulhar, descer nas águas) e “subir” (v. 10) pode apontar em imagem para sua morte e ressurreição (cf. Rm 6,4; Fl 2,5-11; Jo 3,13 etc.). O interesse volta-se menos para o seu batismo que para a revelação celeste que se lhe seguiu (vv. 10-11).

E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele (v. 10).

Mc não fala de testemunha alguma, exceto Jesus: Só ele “viu o céu se abrindo”, lit. “os céus se rasgando” como um tecido (cf. a cortina do santuário em 15,38). É o que pediam os israelitas em Is 63,19; sinal de que Deus intervém para realizar suas promessas, aqui pelo enviado do Espírito Santo (cf. Testamento de Levi 18,6 e de Judá 24,2). Ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa como sendo o salvador prometido, o ungido (messias-rei; cf. Is 11,2; 42,1; 61,1; 63,11), como o Espirito desceu durante a unção de Saul e Davi para capacitá-lo para o governo.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: O Espírito que pairava sobre as águas da primeira criação (Gn 1,2) aparece aqui no prelúdio da nova criação. Por um lado, ele unge Jesus para a sua missão messiânica (At 10,38), que de ora em diante há de dirigir (Mt 4,1p; Lc 4,14.18; 10,21; Mt 12,18.28); por outro lado, como o entenderam os Padres da Igreja, santifica a água e prepara o batismo cristão (cf. At 1,5…).

“Espírito” é uma palavra feminina em hebraico (ruah) e neutra em grego (pneuma), significando também “vento, ar” (cf. Gn 1,2; At 2,2). Como o Espirito é invisível como o ar, um animal que vive nos ares, um pássaro, é símbolo propício. Mas porque uma pomba e não uma águia (cf. Dt 32,11) que simbolizava o Império Romano, ou um falcão (o símbolo do deus Hórus no Egito que protegeu o faraó), ou uma coruja (símbolo da deusa virgem da sabedoria, Atena para os gregos, Minerva para os romanos)?

A pomba é símbolo da paz e do amor (cf. Ct 1,15; 2,14; 4,1; 5,2; 6,9; já na mitologia do Antigo Oriente acompanhava a deusa do amor, Ishtar), também de simplicidade (Os 7,16; Mt 10,16; Lc 2,24). Ela traz um ramo de oliveira depois do dilúvio em Gn 8,8, símbolo da nova vida e criação reconciliada. Corresponde a atitude do servo de Deus em Is 42,1-4 (1ª leitura de hoje) que não usa de violência como se esperava de um messias guerreiro como Davi para libertar seu povo da opressão estrangeira. Mc escreve no meio (ou fim) da Guerra Judaica (66-70 d.C.) contra os romanos, da qual os cristãos não participavam.

E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer” (v. 11).

E se escuta uma voz celeste, de Deus, que pronuncia seu testemunho definitivo sobre Jesus.

Essa expressão designa, antes de tudo, Jesus como o verdadeiro Servo anunciado por Isaías (cf. 1ª leitura). Entretanto, o termo “Filho”, que acaba por substituir o termo “Servo” (graças ao duplo sentido da palavra grega pãis, já em Is 42,1 grego), salienta o caráter messiânico e propriamente filial da sua relação com o Pai. É o Filho querido e bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22.2.12.16), objeto de sua predileção, lit. “em ti eu pus o meu beneplácito” (cf. Is 42,1).

No Antigo Israel, o rei foi ungido na hora da sua posse (quando subiu ao trono) pelo sumo sacerdote (Salomão por Sadoc em 1Rs 1,39; Saul e Davi por Samuel em 1Sm 10,1; 16,13) e declarado filho (adotivo) de Deus: “Tu és meu filho, hoje te gerei” (Sl 2,7; cf. 2Sm 7,14), como no Egito o rei (faraó) foi proclamado Filho do Deus solar (Horus-Re).

No batismo, Jesus recebeu a declaração (voz do Pai) e a unção (Espírito) de ser o messias. Como Mc não relata a concepção virginal de Maria (6,3 pode ser uma alusão: “filho de Maria”, não de José), uns acharam que Jesus se tornou Filho de Deus só no batismo e por adoção (por ex. a seita dos basilidianos. Paulo também não se refere ao filho da virgem, cf. Rm 1,3s; Gl 4,4). Mas aqui se trata de uma posse alternativa no deserto (no lugar do templo corrupto), acompanhado por um profeta-mensageiro (como Elias, cf. Ml 3,23s) e não por um sumo sacerdote. Daqui em diante, Jesus vai atuar como messias e vencer o mal (Satanás, os demônios, a morte).

O título “Filho de Deus” (1,1) fica definido e exaltado. O testemunho do Pai é pronunciado desde a primeira aparição de Jesus e deve iluminar quanto segue. Tal é a riqueza da “boa notícia” (vv. 1.15). Na transfiguração, a voz falará de novo, desta vez aos três apóstolos: “Este é meu filho amado, escutai-o” (9,2). Escute-se seu eco na voz do centurião pagão na hora da cruz (depois de “se rasgar” a cortina do templo): “Verdadeiramente, este era o filho de Deus” (15,39). Forma quase uma inclusão de todo o evangelho.

Em Mc, só Jesus sabe o segredo de ser o messias (Filho de Deus). Quando os demônios ou pessoas curadas querem divulgar sua identidade, Jesus manda calar, porque só na cruz se revelará o verdadeiro significado do seu ser messiânico: não salvar por guerra ou violência, mas vencer o pecado e a morte na cruz.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1225) comenta: No momento do batismo, revela-se a identidade de Jesus: ele é o Filho de Deus. Mas o entendimento adequado de quem ele é depende da compreensão do sentido de seu agir. O Servo de Javé (Is 42,1-4) é o modelo, com sua ação discreta e solidária.

Obs.: A tradição cristã começou batizar crianças por causa desta diferença entre o batismo de João e o batismo de Jesus. Já os apóstolos batizaram famílias inteiras e não só no rio (cf. At 10,24.48; 16,15.31-33). O batismo de crianças substituiu a circuncisão dos meninos como sinal de pertença ao povo eleito (cf. Gn 17; At 15). O batismo cristão continua sendo um sinal de fé e conversão dos pecados; crianças pequenas não são capazes de se converter (não sabem o certo e o errado), não têm pecados individuais, mas recebem o perdão do pecado original (cf. Rm 5,12-21). Aliás, Jesus sendo batizado por João já é um exemplo de que o batismo pode ser ministrado a pessoas sem pecado (Mt 3,14s; cf. a acolhida das crianças em Mc 10,13-16). No batismo cristão, o batizado recebe ainda o Espírito que nos faz filhos e filhas de Deus e herdeiros do Reino (da vida eterna, cf. Rm 6,4-11; 8,14-17; 1Cor 12,13; Gl 3,26-29; 4,6s). A ordem de Jesus de batizar fez o batismo um sacramento considerado necessário para salvação para quem ouvir a mensagem (cf. Mt 28,19; Mc 16,16; Jo 3,5).

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