08 de junho de 2016 – 10ª semana 4ª feira

Leitura: 1Rs 18,20-39

A leitura de hoje apresenta o duelo dos deuses, ou seja, uma aposta provocada por Elias para o povo se decidir: Quem é o verdadeiro Deus: Yhwh (Javé, traduzido por “Senhor”), o Deus de Israel, ou Baal, o deus fenício/cananeu que a rainha Jezabel importou e cujo culto seu marido Acab promove em Israel? Baal era o deus da tempestade e fertilidade. Javé, porém, havia mandado uma seca para mostrar a impotência de Baal (cf. 17,1).

“Passados muitos dias, … no terceiro ano” (18,1), Elias voltou a Israel e convidou o rei Acab a reunir “no monte Carmelo, junto de mim, todo Israel, bem como os 450 profetas do Baal e os 450 profetas de Aserá que comem à mesa de Jezabel” (v. 19). Dos 450 profetas de Aserá (ou Astarte, deusa do amor e da fecundidade, associada a Baal) não se fala mais (pode ser uma glosa, cf. Jz 2,11-13).

Havia extáticos videntes, adivinhos, extáticos e inspirados (os próprios autores bíblicos os chamam de “profetas”, cf. Jr 29,8s) entre os povos vizinhos de Israel e eles formavam associações numerosas, como também os profetas de Javé (18,4). Aqui se trata dos devotos de Baal de Tiro, chamados a Israel por Jezabel, que os sustentava.

Acab convocou todos os filhos de Israel e reuniu os profetas de Baal no monte Carmelo (v. 20).

O “monte Carmelo”, próximo de Fenícia, foi um lugar de culto de todas as religiões que sucederam na Palestina; Karmel também era o nome dado a uma divindade que presidia à tempestade e à chuva, semelhante à Baal.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 391s) comenta: O monte Carmelo, tradicionalmente situado em território israelita, ficava na verdade em território fenício. Ali havia um santuário de Baal e também um altar de Javé, que tinha sido destruído (v. 30). A redação deuteronomista ironiza o mito a respeito de Baal, que morria no inverno para ressuscitar na estação da chuva.

A Bíblia do Peregrino (p. 650s) comenta: No novo episódio, passamos dos baais ao Baal de Tiro, e da casa real a todo Israel. Chegou o momento da grande decisão diante das infidelidades, compromissos e concessões. Vem-nos a memória não tanto Moises no Sinai, quanto Josué em Siquém (Js 24), exigindo do povo uma cabal decisão religiosa.

O monte Carmelo tem algo de espinhaço que divide obliquamente o reino em duas metades, com uma vertente olhando para o norte, e outro para o sul (esquerda e direita na orientação israelita); algo como as duas direções da Ebal e do Garizim (Js 8,30-35). Neste momento vai celebrar-se o grande julgamento de Deus, uma espécie de ordálio presidido por seu profeta.

Então Elias, aproximando-se de todo o povo, disse: “Até quando andareis mancando com os dois pés? Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o; mas, se é Baal, segui a ele”. O povo não respondeu uma palavra (v. 21).

A Bíblia do Peregrino (p. 651) comenta: Sem introduções, a primeira frase coloca a necessidade de escolher. O povo pensa que sempre será útil garantir o apoio das duas divindades, Baal e Yhwh; Elias zomba de semelhante pretensão com um jogo de palavras. Apela, implicitamente, ao primeiro mandamento: o Senhor não admite diante de si outro deus. Querer o dualismo é considerá-los ou transformá-los em muletas (ou ramos).

O pensamento de Elias parece claro: “Escolhei entre o Senhor e Baal, em vez de adorar ao mesmo tempo um e outro”, mas a expressão que emprega não é tanto: “Até quando andareis mancando com os dois pés?” O sentido da última palavra não é seguro, e pode ser traduzido de diversas maneiras: “Até quando mancareis com as duas pernas (jarretes)?”, “Até quando claudicareis dos dois pés?”, “Até quando saltitareis, hesitando, na encruzilhada dos caminhos?”. O v. 26 mostra que Elias se refere a uma dança ritual fenícia em honra da divindade: os israelitas “dançam” ora para Javé, ora para Baal.

A Bíblia do Peregrino (p. 651) comenta: O povo não responde, porque a alternativa não admite resposta ou porque tem medo de si decidir. O silencio é um fator importante nessa narração; também o verdadeiro Deus responderá sem palavras. O verbo “nh” (= responder) repete-se oito vezes no relato. Um eixo semântico da perícopes é a oposição gritos/silêncio. Também contrasta a calma de Elias, um só, com a agitação orgiástica de quatrocentos e cinquenta.

Então Elias disse ao povo: “Eu sou o único profeta do Senhor que resta, ao passo que os profetas de Baal são quatrocentos e cinquenta. Deem-nos dois novilhos; que eles escolham um novilho e, depois de cortá-lo em pedaços, coloquem-no sobre a lenha, mas sem pôr fogo por baixo. Eu prepararei depois o outro novilho e o colocarei sobre a lenha e tampouco lhe porei fogo. Em seguida, invocareis o nome de vosso deus e eu invocarei o nome do Senhor. O Deus que ouvir, enviando fogo, este é o Deus verdadeiro”. Todo o povo respondeu, dizendo: “Ótima proposição” (vv. 22-24).

“O Deus que ouvir (lit. responder), enviando fogo, este é o Deus” O deus que o enviar o fogo (raio, relâmpago) demonstrará ser o Deus verdadeiro”, cósmico, responsável pela a chuva e o êxito das colheitas. Ele decide a validade das oferendas, aceitando ou rejeitando; é inútil fazer sacrifício a outro deus. Não se trata apenas de decidir qual deles, Javé ou Baal, é o senhor da montanha ou é mais poderoso, mas em sentido absoluto, qual é Deus: a palavra de Elias, sua oração (vv 36s) e a aclamação do povo (v. 39) expressam que é a fé monoteísta que está em jogo nesta competição.

Elias disse então aos profetas de Baal: “Escolhei vós um novilho e começai, pois sois maioria. E invocai o nome de vosso deus, mas não lhe ponhais fogo”. Eles tomaram o novilho que lhes foi dado e prepararam-no. E invocavam o nome de Baal desde a manhã até ao meio-dia, dizendo: “Baal, ouve-nos!” Mas não se ouvia voz alguma e ninguém que respondesse. E dançavam ao redor do altar que tinham levantado. Ao meio-dia, Elias zombou deles, dizendo: “Gritai mais alto, pois sendo um deus, tem suas ocupações. Porventura ausentou-se ou está de viagem; ou talvez esteja dormindo e é preciso que o acordem” (vv. 25-27).

“Invocavam o nome de Baal desde a manhã até ao meio-dia, dizendo: ‘Baal, ouve (lit. responde) -nos!’” O fato de já ser meio-dia sublinha a zombaria de Elias quanto aos limites do antropomorfismo para representar Deus. Mas como símbolo pode ser usado corretamente, por ex. nos salmos, os israelitas podem gritar ao Senhor que desperte e volte (Sl 44,24; 73,20; cf. 35,23; 59,6; 78,65; 80,3); Is 15,9).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 532) comenta: A crítica pertinente de Elias visa, por um lado à maneira demasiado humana pela qual se representavam as divindades kenaanitas. Por outro, prende-se ao fato de que Baal (ao contrário do Senhor, vivo, sempre presente e ativo) era considerado como um deus periodicamente ausente, ou adormecido, ou até momentaneamente morto, como o demonstram os textos de Ugarit.

Então eles gritavam ainda mais forte, e retalhavam-se, segundo o seu costume, com espadas e lanças, até o sangue escorrer. Passado o meio-dia, entraram em transe até a hora do sacrifício vespertino. Mas não se ouviu voz nenhuma, nem resposta nem sinal de atenção (vv. 28-29).

“Retalhavam-se, segundo o seu costume, com espadas e lanças, até o sangue escorrer”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 532) comenta: Esta prática que é uma cerimônia fúnebre em honra de Baal, se acha atestada nos textos de Ugarit: por ocasião da morte do Baal, o deus El “faz a floresta ressoar com seus clamores, rasgar as faces e o queixo, lavra a articulação do braço (o ombro) e o peito como se fosse um jardim. Rasga suas costas (formando aí) como um vale, eleva a voz e grita…” (texto Gordon 67 VL 18-23).

“Entraram em transe” lit. profetizaram. Também os grupos dos profetas de Javé podem entrar em transe (junto com o rei Saul em 1Sm 10,5s).

“Até a hora do sacrifício vespertino”; aqui a menção da oferenda da tarde (Ex 29,39; Nm 28,4; 2Rs 16,15; Sl 141,2) é uma simples indicação da hora avançada ou uma alusão (cf. a aproximação do altar em seguida).

Então Elias disse a todo o povo: “Aproximai-vos de mim”. Todo o povo veio para perto dele. E ele refez o altar do Senhor que tinha sido demolido. Tomou doze pedras, segundo o número das doze tribos dos filhos de Jacó, a quem Deus tinha dito: “Teu nome será Israel”, e edificou com as pedras um altar ao nome do Senhor. Fez em redor do altar um rego, capaz de conter duas medidas de sementes. Empilhou a lenha, esquartejou o novilho e colocou-o sobre a lenha, e disse: “Enchei quatro talhas de água e derramai-a sobre o holocausto e sobre a lenha”. Depois, disse: “Outra vez”. E eles assim fizeram uma segunda vez. E acrescentou: “Ainda uma terceira vez”. E assim foi feito. A água correu em voltar do altar e o rego ficou completamente cheio (vv. 30-35).

O altar de Javé no Carmelo foi demolido pelos israelitas partidários do baalismo.

Os vv. 31-32a parecem ser uma glosa (acréscimo posterior) referindo-se às “doze pedras” (representam as 12 tribos) erguidas por Moisés (Ex 24,4). Apesar da divisão em dois reinos (do Norte e do Sul; cf. 1Rs 12), a tradição religiosa sempre considerou o povo uma unidade de doze tribos (cf. Is 8,14; Jr 16,14s; 31,1.31; Ez 37,16-19; etc.)

A intervenção de Elias é descrita com detalhes que atrasam o desfecho e tornam tensa a ação. Não pratica nenhum rito mágico para chamar chuva, mas quer tornar mais deslumbrante o milagre do fogo. Em contraste com os pagãos extáticos dançando em transe, todas as ações de Elias são calculadas, executadas com ordem e controle. Além da sua função específica, os elementos podem ter função simbólica. A aspersão de água destina-se provavelmente a marcar o poder de Deus e a fé do profeta Elias; talvez alusão a um rito, simbolizando a chuva esperada. O fogo é elemento divino que vence a água que os homens lhes opõem. Referindo-se ao êxodo e à passagem pelo mar vermelho, Sb 19,20 comenta: “O fogo ganhava força na agua, e a água esquecia sua condição de extintor”.

Chegada a hora do sacrifício, o profeta Elias aproximou-se e disse: “Senhor, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, mostra hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo e que é por ordem tua que fiz estas coisas. Ouve-me, Senhor, ouve-me, para que este povo reconheça que tu, Senhor, és Deus, e que és tu que convertes os seus corações!” (vv. 36-37).

Na oração, Elias quer que o milagre prove várias: 1° aos profetas de Baal e ao séquito estrangeiro de Jezabel (“mostra hoje”, lit. “saiba-se”, v. 36), que eles nada têm a fazer em Israel, onde Javé é Deus e foi ele que enviou Elias como seu “servo” e profeta legítimo (v. 36b; cf. Ex 4,5; Nm 16,28; Jó 12,28-30; 1Cor 4,1-5; 2Cor 10,18), 2° aos israelitas (“este povo [re]conheça”, v. 37), que Javé é o verdadeiro e único Deus, que converte a ele os corações. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 533) comenta: “Conhecer” em hebraico, significa mais do que um conhecimento racional; poder-se-ia aqui traduzir por “fazer a experiência, estar convencido, crer”. Com efeito, o acontecimento do Carmelo tem como motivação a fé que Israel deposita no Senhor, Cf. v. 21.

Então caiu o fogo do Senhor, que devorou o holocausto, a lenha, as pedras e a poeira, e secou a água que estava no rego (v. 38).

A Bíblia do Peregrino (p. 652) comenta: A resposta acontece em silencio; o raio sem o acompanhamento normal de trovão. Os cinco complementos mostram o poder desse fogo divino sobre todos os elementos: animais, madeira, pedra, terra, agua. Lv 9,24.

Vendo isto, o povo todo prostrou-se com o rosto em terra, exclamando: “É o Senhor que é Deus, é o Senhor que é Deus!” (v. 39).

O povo cai em gesto de adoração (prostração) e responde com uma profissão da fé, lembrando o Shema de Dt 6,4: “Escuta, Israel, o Senhor (Javé) é o único senhor (Deus)” (cf .a conclusão da aliança de Siquém, Js 24,24) e o nome do profeta Elias (Eli-Jahu significa: meu Deus é Javé).

Nossa liturgia omite o final deste episódio, a ordem de Elias de prender e degolar os 450 profetas de Baal (v. 40). Na época, o Javé oficial era um Deus ciumento e violento, e na guerra entre Javé e Baal, os servos de Baal têm o destino dos vencidos. Por esta ação, Elias foi perseguido por Jezabel e tinha que fugir (cap. 19).

 

Evangelho: Mt 5,17-19

O evangelista Mt tem uma visão muito mais positiva da Lei judaica do que o apóstolo Paulo que escreveu para cristãos que vieram do paganismo. Mt, porém, se dirige a leitores judeu-cristãos que vivem ainda no meio de muitos outros judeus, embora fora de Israel, talvez em Antioquia na Síria ou em Alexandria no Egito. Esta visão se caracteriza pelo “melhor cumprimento”, não pela ruptura. O apóstolo Mateus não era fariseu, que rompeu com a tradição judaica como Saulo-Paulo, mas um coletor de impostos (9,9; 10,3), e o evangelista era um escriba que sabe, “semelhante a um pai de família tirar do seu tesouro coisas velhas e novas” (13,52).

Depois de propor “felicidades” (bem-aventuranças, vv. 1-12; cf. comentário de segunda-feira) em lugar de “mandamentos” no início do sermão, Jesus expõe sua posição diante da lei. Por “lei”, entende-se a Torá (hebraico: orientação, ou seja, a “Lei de Moisés” que contém os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados em grego: Pentateuco). Aqui, Jesus se pronuncia primeiro em termos genéricos (vv. 17-20), incluindo toda escritura na fórmula consagrada “lei e profetas”, depois numa série de antíteses (vv. 21-48).

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhe pleno cumprimento (v. 17).

A expressão “a lei e os profetas” (cf. 7,12; 22,40; cf. Lc 24,27; Mc 9,4p) designa esta parte da Bíblia que nós chamamos de Antigo Testamento (AT) e que era a única Escritura sagrada dos judeus. A Bíblia hebraica se divide em três partes (T-N-Q), Torá (a “lei” de Moises ou Pentateuco: os primeiros cinco livros Gn, Ex, Lv, Nm, Dt ), Nebiim (os “profetas”: 1-2Sm; 1-2Rs; Is, Jr; Ez e os 12 profetas menores) e Quetubim (“escritos” sapiencias: Sl, Jó, Pr…; cf. Lc 24,44).

Contra conclusões precipitadas (talvez derivadas da teologia de Paulo que substituiu a lei pela fé, a circuncisão pelo batismo, etc.), Mt quer apresentar Jesus como mestre que aperfeiçoa a lei em vez de aboli-la.

Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra (v. 18)

Esta frase, Mt já encontrou numa fonte comum (chamada Q) com Lc (cf. Lc 16,17), mas fora do sermão. “Nem uma só letra ou vírgula”, lit.: “nem um iota nem o mínimo traço”. O iota é a letra menor do alfabeto hebraico; os traços talvez designem a ponta ou a barra que distinguem as letras (por ex.: C e G), num tempo posterior (texto masorético, entre 750 e 1000 d.C.), traços e pontos indicam os vocais (cf. o ponto do i), já que o alfabeto hebraico só contém consoantes.

O sentido de v. 18 é que nenhum pormenor da lei deve ser menosprezado. A lei se cumpre quando seus múltiplos preceitos são postos em prática. As profecias, como predições, se cumprem quando o anunciado acontece. Mt não se cansa em citar profecias cumpridas durante a vida de Jesus (cf. 1,22; 2,7.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (v. 19).

Não se deve pensar, porém, que Jesus ensina cumprir a lei como ensinam os fariseus (cf. Mc 1,22, copiado por Mt 7,28s no final do sermão). Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma burocracia escravizante. Jesus revela o sentido mais profundo da lei, a vontade de Deus, buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que o ser humano tenha vida e relações mais fraternas. Depois Jesus resume toda lei na Regra de Ouro (7,12p) e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (22,34-40; cf. Jo 13,34: Rm 13,8-10: Gl 5,14; Cl 3,14).

O amor e a misericórdia são a perfeição na Lei (cf. v. 48) e a justiça maior. “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vos não entrareis no Reino dos Céus.” (v. 20, omitido pela leitura de hoje).

A maneira como Jesus dá pleno cumprimento às leis do AT é diferente do legalismo dos hipócritas, fariseus e mestres da lei que “só falam e não praticam” (23,3). Para Mt, é importante a ética, ou seja, praticar a vontade de Deus (cf. 7,21). A justiça dos cristãos, que deve superar a dos doutores da lei e dos fariseus (cf. v. 20), não consiste em cumprir ao pé da letra os mínimos detalhes da lei, mas na criatividade do coração que ama: “Tudo o que você desejam que as outras façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os Profetas” (Regra de Ouro em 7,12). A interpretação de Jesus (seu “jugo leve”, cf. 11,30) a respeito da Lei é o mandamento maior do amor: “Ame o Senhor teu Deus com todo o teu coração,… ame seu próximo como a si mesmo. Toda lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (22,34-40p; citando Dt 6,5 e Lv 19,18).

Com esta interpretação, o evangelista Mateus ainda se encontra com os pensamentos do apóstolo Paulo que costumava polemizar contra a lei judaica. “Cristo é o fim da lei” (Rm 10,4), ou pode se entender, é a “finalidade da lei”; a palavra grega pode exprimir ao mesmo tempo a ideia de meta, de termo e de realização.

Para o mestre da lei, Saulo de Tarso, a Lei era a salvação; mas depois da sua conversão, Saulo-Paulo reconheceu, que “ninguém se tornará justo diante de Deus através da observância da Lei, pois a função da Lei é da consciência do pecado. Agora, porém, independentemente da Lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas. É a justiça de Deus que se realiza através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam” (Rm 3,20-22). Paulo sabe que “a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12), mas a Lei não salva, sim conscientiza e condena. O Tribunal Supremo dos Judeus (Sinédrio) condenou Jesus por sua interpretação (e prática) diferente da Lei. Não só a Lei, antes é a promessa, a graça e a fé que importam. “Não torno inútil a graça de Deus porque se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu em vão” (Gl 2,21). “Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gn 2,16). “A lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2).

Paulo escreveu contra aqueles que queriam obrigar pela lei a circuncisão dos cristãos que vieram do paganismo, enquanto para Paulo basta batizá-los como sinal da fé em Jesus Cristo. Por isso ele opôs a Lei (a circuncisão, a carne, as obras) à fé (a graça, a promessa, o espírito). Mas ele reconhece também que a liberdade da lei (da circuncisão) não dispensa do amor ao próximo: “Pois toda Lei encontra sua plenitude num só mandamento: “Ame seu próximo como a se mesmo… Carreguem os fardos uns dos outros, assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 5,14; 6,2).

A oposição de Paulo (só a fé salva, não as obras da lei) de um lado, e de Mateus (não abolir, mas cumprir a lei) junto com Tiago (a fé sem obra é morta; cf. Tg 3,14-26) no outro lado, explica-se pelo público diferente. Paulo escreveu para os pagãos e queria poupá-los muitas exigências da lei cultual, mas não da ética (amor ao próximo). Tg e Mt escreveram para judeu-cristãos que viviam dentro da lei judaica e valorizavam a sabedoria da Lei de Moises e dos Profetas, mas agora são convidados a interpretá-los conforme a lei máxima do amor a Deus e ao próximo.

Sem normas, sem regras, sem leis, uma sociedade não pode existir; também a Igreja Católica tem seu Código Canônico com 1752 leis (cânones). São Filipe Neri disse: “Para ser obedecido, precisa de poucas normas. Eu escolhi a caridade.”

No site da CNBB comenta: Todos nós estamos de acordo que devemos obedecer a Deus, mas não estamos muito de acordo se perguntarmos por que devemos obedecer a Deus. Isto porque existem duas formas de obediência. A primeira é a obediência de quem reconhece o poder de quem manda e se submete a este poder por causa das vantagens da obediência ou das consequências da desobediência. É aquele que diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. A segunda é de quem reconhece os valores que motivam a autoridade e assume esses valores como próprios, vendo na obediência a grande forma de concretização desses valores. Jesus não veio mudar a lei, mas mostrar as suas motivações, os seus valores, a fim de que a sua observância não seja um jugo, mas uma forma de realização pessoal.

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